A mulher saiu do duche de 5 minutos e meio, viu o seu reflexo no espelho ainda baço e perguntou: "Quem és tu?". É que, de repente, parecia-lhe que a mulher do outro lado era um pouco mais forte, um pouco mais alta, um pouco mais bonita. A mulher aproximou-se do espelho e limpou-o com uma toalha irritada. "Sou o outro lado espelho" ouviu da sua boca e riu-se de si própria. O reflexo ria-se também, depois ficaram as duas muito sérias, os lábios cerrados, duas testas inclinadas para a frente, tinham rugas tão profundas que mais pareciam feridas. Os cabelos da mulher estavam molhados e afunilavam nas pontas. Caíam gotas de água nos ombros magros, escorriam pelos seios murchos iguais às almofadinhas de cheiros inúteis que a avó fazia nos Natais. Uma gota mais robusta caía agora pelo ventre sempre maior do que desejara (a esperança estúpida de que ninguém o visse senão ela) e hesitava numa subida mais íngreme até morrer no umbigo. A imagem do espelho era definitivamente mais bonita do que a mulher e essa certeza enervava-a. As duas mulheres olharam-se fixamente e, num acesso de raiva, lançaram as mãos pelo espelho para puxarem o cabelo uma à outra. Os berros de uma eram iguais aos da outra, tinham unhas com demasiado cálcio e arranhavam-se com violência. Uma sangrava da testa, a outra da boca, estavam agora as duas deste lado e pontapeavam-se. A mais fraca escorregou no chão e, durante a queda, a outra agarrou-lhe o pescoço com um só punho erguendo-a à bruta. Depois, com a ajuda da outra mão, atirou-a contra a parede. A mulher caiu de costas no outro lado do espelho e aí ficou deitada engolindo tragos de oxigénio. A outra ficou a vê-la. Finalmente, olhou à sua volta e abriu todas as portas da casa de banho à procura de álcool para desinfectar as feridas. Por vezes dizia "Au!", mas não muito alto para a outra não ouvir. Depois cortou calmamente as unhas já que seis delas se tinham partido. Saiu da casa de banho, entrou no quarto, mexeu na roupa e gritou de lá para cá: "Que falta de gosto!". Vestiu qualquer coisa à pressa e regressou ao espelho para se maquilhar. Enquanto ali estava, o lápis preto contra as pálpebras dos olhos que estavam postos nos olhos do reflexo, pensou: "A lei do mais forte!". Depois acenou para o espelho como quem se despede dos comboios no apeadeiro. E enquanto movia o braço direito no ar, a sua imagem respondia-lhe com o esquerdo. Ou seja, uma era o inverso da outra.