quarta-feira, 25 de julho de 2007

Cântico Negro

Para Michael Vogt

Agora que a noite é total apetece-me coisas simples, sem-vontade, daí este vodka morno num copo quadrado de vidro grosso sem pés nem cabeça. Proposta: falemos da morte como quem fala do tempo, não há nada mais simples do que o fim, é um bom tema para uma noite como esta, digo-to eu que não principio nem acabo. E vou mais longe, para que esta noite total não seja triste: serás tão mais feliz na vida quanto mais pensares na morte, há uma espécie de catarse nesse pensamento, a alma fica mais branca, o sangue mais vermelho, a vida mais real. Somos dois lados do mesmo corpo, por isso te digo: lembra-te da morte para te lembrares da vida. Os outros – os que não pensam nela – amam o que é fácil. Eu, que não tenho luz nenhuma senão a luz do dia, desejo para a minha morte que outros venham comigo, detesto ir sozinho a sítios que não conheço, não sei por onde vou e fico nervoso, aflito, perdido. Por isso, na hora da morte, desejo que alguém me estenda os braços e me diga com olhos doces "Vem por aqui". Desejo o mesmo para ti e para todos os que me são queridos. Hoje apetece-me falar da morte como quem fala do tempo (há dias assim), amanhã falaremos de outra coisa. Alguém chorará por ti, não te preocupes, somos todos muito bons quando morremos, é um final bonito para os mortos. Depois, quando chegares ao reino de Hades, sugar-te-ão o sal da pele, a espuma, o sangue, os cânticos dos lábios. E nós, os vivos, para quem o fim é sempre triste, cantaremos por ti.