terça-feira, 31 de julho de 2007

A máquina de sonhos

Na casa das máquinas havia uma máquina de sonhos e o rapaz sonhava acordado com os sonhos que ela fabricava. No sábado de manhã, antes de os pais acordarem, o rapaz vestia o roupão e calçava os sapatos porque a casa das máquinas era sempre fria. A mãe tinha estendido uma esteira no chão para o rapaz não se sentar na pedra gelada e ele aí ficava toda a manhã, de pernas cruzadas sobre o tapete mágico, trabalhando na sua máquina de sonhos. O rapaz dizia à irmã "Sou cientista" e ficava horas a pensar em sonhos, a fazer medições, a colocar hipóteses. A máquina tinha vários botões: um que rodava, outro que se puxava, outro que andava para os lados, outro que tinha luzinhas e outro que era um interruptor. O rapaz explicava à irmã: "Na máquina dos sonhos escolhe-se primeiro o meio de transporte! Ou seja, tens de escolher entre o meio terrestre, marítimo, aéreo, tubular ou espacial. Depois escolhes o resto!", o que incluía a velocidade, o volume, a área, a temperatura exterior e interior, o nível de pressão sonora, de pressão atmosférica, de pressão hidrostática, de pressão arterial, entre outros. Há semanas que a irmã tentava descobrir um sonho qualquer que quisesse sonhar.
Naquela manhã, o rapaz anunciou na cozinha "Já está!" e os pais bateram palmas. A mãe disse que queria ir à Lua e o pai perguntou se podia ser o primeiro a experimentar a máquina dos sonhos. O rapaz disse que sim, agarrou-o pela mão e levou-o à casa das máquinas. Quando lá chegaram, perguntou surpreendido: "E vais assim, de pijama?". O pai encolheu os ombros despreocupado: "Mas eu não vou a lado nenhum! Quero sonhar que estou a comer uma laranja doce!". O rapaz ficou em silêncio, era um sonho francamente estúpido e tentou convencer o pai a sonhar com outra coisa (sem êxito). O filho começou então a fazer anotações no caderno, desenhou alguns esquemas, tocou na língua como quem explora, suspirou, coçou a cabeça. O pai disse: "Bem, depois chama-me para eu vir sonhar com a minha laranja". A irmã queria ficar a ver mas o rapaz expulsou-a dizendo: "Preciso de silêncio".
Horas mais tarde o rapaz chamou o pai: "Anda comer laranja!". Com grande pompa e circunstância, o rapaz abriu a porta redonda da máquina de sonhos e disse em jeito de quem ensina: "Como tudo na vida, esta máquina não faz tudo por ti. Usa a tua imaginação!".

segunda-feira, 30 de julho de 2007

O outro lado do espelho

A mulher saiu do duche de 5 minutos e meio, viu o seu reflexo no espelho ainda baço e perguntou: "Quem és tu?". É que, de repente, parecia-lhe que a mulher do outro lado era um pouco mais forte, um pouco mais alta, um pouco mais bonita. A mulher aproximou-se do espelho e limpou-o com uma toalha irritada. "Sou o outro lado espelho" ouviu da sua boca e riu-se de si própria. O reflexo ria-se também, depois ficaram as duas muito sérias, os lábios cerrados, duas testas inclinadas para a frente, tinham rugas tão profundas que mais pareciam feridas. Os cabelos da mulher estavam molhados e afunilavam nas pontas. Caíam gotas de água nos ombros magros, escorriam pelos seios murchos iguais às almofadinhas de cheiros inúteis que a avó fazia nos Natais. Uma gota mais robusta caía agora pelo ventre sempre maior do que desejara (a esperança estúpida de que ninguém o visse senão ela) e hesitava numa subida mais íngreme até morrer no umbigo. A imagem do espelho era definitivamente mais bonita do que a mulher e essa certeza enervava-a. As duas mulheres olharam-se fixamente e, num acesso de raiva, lançaram as mãos pelo espelho para puxarem o cabelo uma à outra. Os berros de uma eram iguais aos da outra, tinham unhas com demasiado cálcio e arranhavam-se com violência. Uma sangrava da testa, a outra da boca, estavam agora as duas deste lado e pontapeavam-se. A mais fraca escorregou no chão e, durante a queda, a outra agarrou-lhe o pescoço com um só punho erguendo-a à bruta. Depois, com a ajuda da outra mão, atirou-a contra a parede. A mulher caiu de costas no outro lado do espelho e aí ficou deitada engolindo tragos de oxigénio. A outra ficou a vê-la. Finalmente, olhou à sua volta e abriu todas as portas da casa de banho à procura de álcool para desinfectar as feridas. Por vezes dizia "Au!", mas não muito alto para a outra não ouvir. Depois cortou calmamente as unhas já que seis delas se tinham partido. Saiu da casa de banho, entrou no quarto, mexeu na roupa e gritou de lá para cá: "Que falta de gosto!". Vestiu qualquer coisa à pressa e regressou ao espelho para se maquilhar. Enquanto ali estava, o lápis preto contra as pálpebras dos olhos que estavam postos nos olhos do reflexo, pensou: "A lei do mais forte!". Depois acenou para o espelho como quem se despede dos comboios no apeadeiro. E enquanto movia o braço direito no ar, a sua imagem respondia-lhe com o esquerdo. Ou seja, uma era o inverso da outra.

sexta-feira, 27 de julho de 2007

O planeta azul

Nos dias bons sonhava com o corpo caminhando contra o vento (e não com o vento contra o corpo). Mas o planeta era sempre o mesmo, muito redondo e demasiado pequeno para as pernas sempre longas. Explicava ao médico: "Não é o planeta do Principezinho porque não tem crateras e é azul". A psicóloga queria saber sobre a paisagem e ela explicava ao pormenor as várias estrelas ao longe, os planetas do lado que eram afinal rostos de pessoas desconhecidas. Havia também um mar ao fundo diferente do mar da Terra por cair de cima para baixo, escorrendo por uma parede invisível. O psiquiatra perguntou-lhe se via o seu planeta quando estava acordada e ela riu-se divertida. Nos sonhos maus havia uma nuvem redonda que era maior do que o planeta. Nessas alturas, tentava fugir do nevoeiro mas o corpo ficava no mesmo sítio e era o planeta que rodava debaixo dos pés. A naturista falou-lhe dos efeitos de uma nutrição desequilibrada. Também sonhava que abria os braços e se atirava para o espaço mas, por mais que saltasse, voltava sempre a cair no seu planeta. Falou deste sonho num almoço de domingo e a mãe disse-lhe: "Se calhar estás com falta de espaço!". A filha concordou. Nesse domingo foi de comboio para Bruxelas só porque era o próximo comboio a partir. Ao chegar à estação central viu uma placa de rua a apontar para a direita. Leu "Grand Place" e achou apropriado ir vê-la. Entrou na praça por um dos vértices, respirou fundo e sentou-se no centro. Adormeceu sem querer passados alguns minutos. Sonhou outra vez com o corpo contra o vento e, ao acordar, viu um homem ao seu lado. Estava sentado numa cadeira e fumava cachimbo. Aos pés do homem estava uma tela e ao lado dessa tela havia mais telas. Ela levantou-se e pensou "Este vento é igual ao do meu sonho". Depois olhou para os quadros. A imagem do meio era a mais confusa, tinha estrelas, planetas, nuvens, água, vento e luas. No centro da tela viu o seu planeta e perguntou ao homem o nome do quadro. O homem disse: "Universo Paralelo" e ela sorriu. Contou-lhe do seu sonho repetido e o homem ouviu atentamente. No final ela perguntou: "Que quererá isto dizer?" e ele encolheu os ombros. "Não sei, mas é uma sorte teres um planeta só para ti". Ela concordou e voltou satisfeita para a estação.

quinta-feira, 26 de julho de 2007

Conto infantil para adultos: A lição do zangão

Um zangão fora visto de ferrão para o ar e a rolar no chão com uma operária, na hora de produção da cera. Disseram as línguas beras que eram amantes. A abelha rainha levantou-se de rompante e mandou chamá-los para os matar. A operária encolheu as asas, mas o zangão entrou na sua casa dando ar de sua graça e, antes de a rainha falar, pôs-se logo a explicar: "Peço perdão, querida rainha, há aqui confusão, sou um zangão muito sério e não cometo adultérios nem nada que se pareça. Queira Sua Alteza reconsiderar a sua sentença pois acabo de salvar esta operária da morte". Tentando a sua sorte, contou o zangão: "Foi um grande espalhafato, jamais se vira tal caso!". A pobre operária, a meio do seu trabalho, caíra num favo muito farto ficando encharcada em mel desde o topo das antenas até à ponta do ferrão e então o zangão entrou em acção. Fora uma verdadeira aventura: agarrara a operária pela cintura, mas também ele ficara encharcado. E o resultado fora ficarem os dois colados! Finalmente, sendo o caso urgente, resolveram comer o mel um do outro, o que implicara um enorme esforço por parte da operária e do zangão. A abelha rainha deu um grande sermão e, para acabar com a confusão, mandou a operária trabalhar e o zangão passear.
Coitadinha da rainha, mal sabia ela que esta era apenas a primeira donzela a apaixonar-se pelo zangão que, exibindo o seu ferrão, tinha conquistado o coração de todas elas. Por conseguinte, no dia seguinte, o zangão voltou à colmeia e volta e meia lá foi visto com outra operária, de ferrão para o ar e a rolar pelo chão, na hora de produção da cera. Era deveras uma questão bem séria e a seguir foi a tragédia! Quando a abelha rainha os mandou chamar para os matar, todas as abelhas se atiraram para o mel para salvarem o zangão da sua punição. E o zangão, em vez de socorrer as abelhas, esticou as asas e as antenas e pôs-se a voar dali para fora. Ora ora, coitadinhas das donzelas que morreram afogadas no seu próprio mel. E coitadinha da rainha que chorou noite e dia pelas suas filhas. Quem sobreviveu disse adeus à colmeia vazia e Sua Alteza, cheia de firmeza, ia a sair do palácio quando chegou o zangão armando a confusão: "Peço a sua atenção, cara rainha! Tenho um plano para esta colmeia: dou-te um milhão de filhos e dividimos o reino a meias!". Não tendo à mão outra solução, a rainha aceitou a proposta do zangão. Jamais se assistira a tal caso pois naquela colmeia, agora cheia de abelhas, havia um zangão que reinava.

(Receita: para conquistar uma mulher e respectivo reino junte uma colher de mel e um beijo. Mexa bem em lume brando até a massa ganhar consistência. Sirva quente.)

quarta-feira, 25 de julho de 2007

Cântico Negro

Para Michael Vogt

Agora que a noite é total apetece-me coisas simples, sem-vontade, daí este vodka morno num copo quadrado de vidro grosso sem pés nem cabeça. Proposta: falemos da morte como quem fala do tempo, não há nada mais simples do que o fim, é um bom tema para uma noite como esta, digo-to eu que não principio nem acabo. E vou mais longe, para que esta noite total não seja triste: serás tão mais feliz na vida quanto mais pensares na morte, há uma espécie de catarse nesse pensamento, a alma fica mais branca, o sangue mais vermelho, a vida mais real. Somos dois lados do mesmo corpo, por isso te digo: lembra-te da morte para te lembrares da vida. Os outros – os que não pensam nela – amam o que é fácil. Eu, que não tenho luz nenhuma senão a luz do dia, desejo para a minha morte que outros venham comigo, detesto ir sozinho a sítios que não conheço, não sei por onde vou e fico nervoso, aflito, perdido. Por isso, na hora da morte, desejo que alguém me estenda os braços e me diga com olhos doces "Vem por aqui". Desejo o mesmo para ti e para todos os que me são queridos. Hoje apetece-me falar da morte como quem fala do tempo (há dias assim), amanhã falaremos de outra coisa. Alguém chorará por ti, não te preocupes, somos todos muito bons quando morremos, é um final bonito para os mortos. Depois, quando chegares ao reino de Hades, sugar-te-ão o sal da pele, a espuma, o sangue, os cânticos dos lábios. E nós, os vivos, para quem o fim é sempre triste, cantaremos por ti.

terça-feira, 24 de julho de 2007

Discurso recursivo

Era um monte que tinha socalcos onde havia vinhas atrás das quais se erguia uma casa cuja fachada amarela tinha quatro janelas de tamanhos diferentes das quais uma estava aberta para fora deixando ver a mulher que tinha dentro a qual estava sentada num sofá tricotando um longo novelo que a filha lhe oferecera a qual tinha pena da mãe cujo marido morrera há pouco tempo o qual era viticultor e bom bebedor o que não era mau nos dias de festa mas que não era bom para a saúde pela qual a mulher rezara todas as noites que eram sempre frias no alto do monte que tinha socalcos onde havia vinhas atrás das quais se erguia uma casa cuja fachada azul tinha uma longa varanda onde se espreguiçava um gato que começou a lamber as patas que lambiam depois o rosto o qual era bonito e meigo à excepção dos olhos selvagens que eram cinzentos como o céu daquela tarde que descia devagar sobre aquele monte que tinha socalcos onde havia vinhas atrás das quais se erguia uma casa cuja fachada vermelha tinha uma porta vermelha por cima da qual havia um telhado de barro por baixo do qual estava um ninho redondo dentro do qual dormiam as andorinhas mais jovens que tinham chegado há uns dias com as andorinhas-mãe que voavam agora à altura da janela amarela que estava aberta para fora deixando ver a mulher que tinha dentro a qual estava de pé acenando para as andorinhas que eram tão belas que a faziam esquecer a morte e agradecer a Deus o qual estava no céu acenando para o monte que tinha socalcos e que vendo toda a sua obra a considerou muito boa.

segunda-feira, 23 de julho de 2007

A mulherzinha

Por volta das 9 horas, a mulherzinha saía de casa e descia a rua para ir ao alfarrabista embora já não ligasse propriamente a livros devido aos problemas que tinha na vista. Tenho cataratas, dizia sempre ao alfarrabista e a mulherzinha gostava do volume daquela palavra na boca por as sílabas serem curtas e saberem a água salgada. Tenho as cataratas do Iguaçu nos olhos, pensava (mas não dizia).
No fundo da loja do alfarrabista havia um armário largo com postais dentro. A mulherzinha escolhia uma gaveta ao acaso e dedilhava centenas de postais durante centenas de minutos até encontrar um retrato de que gostasse (um homem apoiado na bengala, uma mulher penteando longos cabelos, uma família à beira de um lago, duas crianças de mãos dadas). De quando em quando comprava postais de animais – um cavalo, um cão, um gato – mas era raro.
Por volta das 11, a mulherzinha voltava para casa arfando de cansaço e antes de se sentar na cadeira de baloiço, fazia um chá de jasmim na cozinha. Trazia um tabuleiro cheio de loiça que ia falando sozinha a cada passo até sossegar na mesa da sala. Havia o bule, a chávena, o pires, a colher de prata, o açucareiro e o pratinho com bolachas, raramente se esquecia de alguma peça. A mulherzinha bebia o chá de jasmim, comia as bolachas e depois recostava-se na cadeira, baloiçando-se ao som do postal novo.
Ontem trouxera o retrato de uma jovem de rosto escondido atrás de uma sombrinha, tinha sido uma boa escolha. Imaginara-se jovem burguesa sem cataratas nem artroses passeando-se no passeio público do século XIX. Encontrara o Senhor Veloso e a sua esposa, falaram do tempo e dos novos projectos arquitectónicos para a cidade, era realmente escandaloso acabar-se com o passeio público. No final da tarde juntara-se a Aurora Bonifácio, uma brasileira alegre de Porto Alegre e bebera chá da Índia no seu terraço. Tinha sido uma óptima tarde. No final, a mulherzinha dera um nome à personagem, escrevera-o no verso do postal e colocara-o na caixa destinada aos retratos.
Hoje trouxera a imagem de uma mulher idosa sentada numa cadeira de baloiço (de vez em quando também era preciso ser-se velha). Pegou na lupa para ver a sua personagem e ficou espantada ao reconhecer-se a si própria. A mulherzinha levantou-se devagar, dirigiu-se ao espelho da entrada, olhou para ele como há muito não fazia e confirmou: Sou eu. Voltou a sentar-se na cadeira de baloiço e pensou durante muito tempo. Desta vez não havia sonhos para sonhar, portanto a mulherzinha pôs o postal na caixa sem lhe dar um nome e resolveu limpar o pó da sala.Na manhã seguinte, às 9 horas, a mulherzinha saiu de casa mas já não desceu até à loja do alfarrabista. Subiu devagar pelo passeio torto arfando pelo caminho, já não se lembrava onde ia dar aquela rua. No final houve uma brisa forte que a ajudou a respirar, era um vento húmido, bem feito, bem-vindo. A mulherzinha fechou os olhos para sentir melhor o vento e ao abri-los viu as cataratas de Iguaçu, caíam violentamente do outro lado da rua. A mulherzinha sorriu satisfeita, era uma paisagem lindíssima.

sexta-feira, 20 de julho de 2007

A frase

Não consigo pensar no que sinto, ponto final. Ela sabia a frase de cor e ia dizê-la assim que chegasse, à pressa, à pedrada, aos gritos. Bastar-lhe-ia dizer a primeira palavra para as outras saírem de seguida, em fila indiana, uma após a outra. Se ele não viesse a correr para a porta, já não a apanhava pois ela teria desaparecido por uma porta travessa. A frase era tão curta que não precisava de respirar a meio e talvez ainda tivesse fôlego para um beijo, se ele a agarrasse. Repetiu as palavras de si para si, era uma excelente frase para resumir o inexplicável: Não consigo pensar no que sinto.
Depois divagou um pouco. Era uma bela imagem aquela (se ele a agarrasse), ele a roubar-lhe um beijo, ela ainda em fuga. No fundo tudo seria mais simples, se a vida fosse uma banda desenhada. Pendurava-se as frases em qualquer lado com molas de madeira e o resto eram quadrados de imagens, sem pressa nem contradições: ela a dizer, ele a ouvir, ela a fugir, ele a puxar, ele a beijar, ela a deixar. Seriam as imagens perfeitas de eles próprios.
No cimo da rua aparecia então a casa e ela subia decidida, os passos largos e a cabeça erguida, tinha seis palavras coladas ao céu-da-boca e saboreou-as uma última vez antes de entrar. Ele esperava-a afinal cá fora e ela quase tropeçou nas pernas ao vê-lo. Nesse momento desconcentrou-se, esqueceu-se, desculpou-se e engoliu as palavras com a última leva de saliva. Os olhos dele puxavam os olhos dela, quatro olhos escancarados, extasiados, encadeados. Não disseram nada e os olhos dele começaram de repente a afastar-se, passaram brevemente pela testa dela e subiram em direcção ao céu. Ela olhou para onde ele olhava e o que viu espantou-a.
No alto da sua cabeça surgia um balão enorme que trazia escrito: Agarra-me. Depois olharam os dois para a rua e viram mil e um balões brancos alinhados no passeio. Diziam: Não consigo pensar no que sinto. Ficaram a ver os balões subir durante muito tempo, não disseram nada. No final, quando os balões desapareceram no céu, olharam-se novamente, os olhos de um dentro dos olhos do outro. No meio deles brotaram então mil e um balões vermelhos, tinham a forma de coração e pulsavam sozinhos. Ele agarrou-a com uma mão e com a outra os balões. Subiram lentamente até às nuvens. Eram a imagem perfeita de eles próprios, não pensavam no que sentiam.

quinta-feira, 19 de julho de 2007

A nuvem mais escura

No cinzento de Bruxelas há sempre uma nuvem mais escura do que as outras, uma nuvem mais condensada do que as outras e, por isso, mais chorosa. As outras nuvens dizem-lhe "Não chovas agora que ainda não é hora", mas a nuvem encolhe-se sobre si própria com as lágrimas na ponta dos olhos, à beira de um ataque de choro. Era uma nuvem, por assim dizer, mais sensível do que as outras e tinha o hábito de chover por motivos estranhos. Uma vez chorou uma intensa carga de água por causa do sol! Desculpou-se às outras nuvens dizendo que o sol lhe magoava os olhos, mas a verdade era que a nuvem mais escura do que as outras se emocionava com a luz. E hoje alguém lhe disse: "Gosto das lágrimas que trazes por dentro" e ela condensou-se mais um pouco, estava agora em estado quase líquido, era uma nuvem quase água. A nuvem mais clara (ou seja, a mais esclarecida e, portanto, possivelmente a mais velha) perguntou-lhe "Fizeram-te mal?" e a nuvem em estado quase líquido soluçou baixinho: "Não, fizeram-me um elogio!". "Então fizeram-te bem!" concluiu a nuvem mais clara "e o Bem liberta-te". A nuvem mais escura acenou com a cabeça. "Pois, eu sei! É por isso que preciso de chover!".

quarta-feira, 18 de julho de 2007

Pedaços

Para a Ana

O menino tinha um tique nervoso, que era afinal um hábito ou um vício, segundo a educadora de infância. De resto, era igual aos outros meninos: não gostava de se assoar, não brincava com meninas e não comia a sopa até ao fim. O tique nervoso, que era afinal um hábito ou um vício, era este: frequentemente, o menino encostava-se a um canto sozinho com uma folha de papel e rasgava-a devagarinho até os pedaços de papel desaparecerem de tão rasgados que estavam. No fim, a educadora varria os pedacinhos de papel em silêncio, mas havia sempre um ou outro que sobrevivia ao arrastão. O menino apanhava-os contente e guardava-os no bolso. A mãe era mais eficiente, pegava no Black & Decker e engolia todas as peças de uma só vez, dizendo coisas indecifráveis ao som do aspirador.
Um dia, ao ver o menino ocupado com os seus pedaços de papel, o pai perguntou: "O que é isso?" e o menino disse: "São as peças do jogo!". O pai gritou "Eureka!" e foi a correr comprar um puzzle de 16 peças, outro de 49, outro de 250, outro de 500 e finalmente outro de 1000. O menino encantou-se com tantas prendas, brincou com o primeiro puzzle, depois com o segundo até que, no final da tarde, se recolheu a um canto para rasgar as folhas de instruções. Nunca mais voltou a brincar com os puzzles.
Certo dia, semanas mais tarde, a mãe vinha de Black & Decker em punho e perguntou impaciente: "Para quê tantos pedaços de papel?" e o menino, debruçado sobre eles, respondeu: "Para serem muitos!". A mãe telefonou a correr para o marido e disse: "O menino não quer ser sozinho!" e, nessa mesma noite, mãe e pai trataram do assunto. Nove meses depois nascia a irmã e o menino encantou-se com a prenda: dava-lhe festinhas enquanto dormia, falava baixinho ao seu ouvido, ficava a vê-la tomar banho. De resto, nas horas mortas, encostava-se a um canto e rasgava papel.
Até que, numa manhã de Primavera, ninguém disse nada. O menino estava sozinho na sala a rasgar papel, tão sozinho que até o barulho do papel ecoava nas paredes. No fim, o menino suspirou. "Pena ter de se deitar fora o papel", pensou e de repente lembrou-se que podia colar os pedacinhos de papel. O menino passou toda a manhã a colar o papel ao chão e, quando já lhe doíam o pescoço e as pernas por causa da posição, ainda foi buscar as canetas de feltro e pintou todos os pedacinhos com cores diferentes. Só tinha 12 canetas mas misturou todos os tons possíveis, para que as cores não se repetissem.
Quando os pais chegaram, o menino apontou orgulhoso para o chão. A mãe levou a mão à boca e depois ao peito, o pai pousou a mão na cabeça e deixou-a ficar. Perguntaram ao mesmo tempo: "Mas o que é isto?" e o menino franziu a testa intrigado. Olhou para o chão, depois para os pais, voltou a olhar para o chão e depois para os pais. "Então não se vê logo que é um quadro?".

terça-feira, 17 de julho de 2007

A queda

Peço-te: anda cair comigo na toca do coelho enquanto a tarde cai. A queda parece-me mais bonita do que o voo por ser mais leve. Contamos até três em uníssono e atiramo-nos ao mesmo tempo (bem sei que não preciso de apertar o nariz, mas foi assim que me ensinaram a mergulhar). Olha para mim agora, os meus cabelos enrolam-se numa trança incompreensível, ficarão assim para sempre, jamais os poderei separar. Vamos brincar às cambalhotas ou boiar no vazio, podemos até virar a cabeça para baixo, juntar os pés, os ombros, os rostos, rodar sobre nós próprios, desenhar espirais infinitas ao som de gritos inaudíveis. Temos todo o tempo do mundo para darmos as mãos nesta toca sem fundo, não há um fim para este final de tarde. Os outros que fiquem com o tempo e o espaço, nós não precisamos disso.

segunda-feira, 16 de julho de 2007

Sonho de uma noite de Verão

"Cheira-me a Verão", anunciou contente com o nariz bem içado e os bigodes direitos, de pontas levantadas. Ao dizê-lo, crescia-lhe água na boca, como se o Verão tivesse sabor. Saiu de casa de rompante, vinha em bicos dos pés para o nariz chegar mais longe e, ao abrir a porta da rua, viu o sol inteiro, triunfando no céu sem nuvens, amarelo como nos sonhos. A água que trazia na boca escorria agora pelas esquinas dos lábios até ao chão. Havia uma árvore enorme à frente da casa e ele trepou-a agilmente até ao topo. No último ramo estava finalmente em frente ao sol e a água que escorria da boca secava agora nos lábios. Empoleirou-se e esticou os braços, mergulhando as mãos no sol. Encantado, levou as mãos à boca e provou o sol amanteigado. Lambeu primeiro o polegar da mão direita, depois o dedo indicador, depois todos os outros. Passou rapidamente para a mão esquerda e lambeu-a sofregamente. A seguir, ainda insatisfeito, saltou de cabeça para dentro do sol e ficou a nadar na sua via láctea durante horas. O rato acordou de repente com a luz da manhã e sorriu para o sol. Levantou-se prontamente e olhou em seu redor até avistar, no final do horizonte, um prédio enorme, da altura do sol. Orgulhou-se da sua esperteza e fez-se sozinho à estrada. Não queria partilhar o seu queijo com ninguém.

sexta-feira, 13 de julho de 2007

A mulher do eléctrico

Todas as manhãs, a mulher do eléctrico apanhava o 23 na Gare du Midi e saía em Heysel. Era um trajecto demasiado longo e não muito directo, havia várias curvas pelo caminho e o compasso da viagem era lento. Mas a senhora não tinha pressa, ou pelo menos assim pensava o condutor, era provavelmente reformada e parecia conformada e descansada com a vida. Entrava no eléctrico devagar e observava os pés enquanto subia os degraus, certificando-se de que traziam consigo o resto do corpo. Depois deixava-se cair num lugar à janela, pousava uma mão sobre a outra, palma contra palma, e esquecia-se delas no colo. Vinha normalmente a meio da carruagem e não fazia absolutamente nada durante o percurso, senão olhar para fora da janela. Em Heysel, a senhora era sempre a última a sair, sacudia a mão ao condutor em jeito de despedida e descia os degraus olhando para os pés atentamente. Não se sabia o que a senhora fazia em Heysel, mas o condutor imaginava-a, por vezes, sentada num banco de jardim partilhando migalhas do seu pão com os pombos. Outras vezes, imaginava-a numa casa bonita com netos e bisnetos, que talvez a viessem esperar todos os dias do outro lado da linha. Com o cair da manhã, a senhora apanhava novamente o 23, desta vez em Heysel, saindo uma hora mais tarde na Gare du Midi. Tudo isto se repetia de igual forma dia após dia, até que certo dia o condutor, demasiado intrigado com a mulher do eléctrico, resolveu perguntar-lhe: "Desculpe, senhora, bem sei que não tenho nada com isso, mas se tem de ir todos os dias para o outro lado da cidade, por que razão não se muda para lá?". O condutor apanhou a mulher do eléctrico numa má altura, a senhora estava demasiado focada nos seus pés para lhe dar atenção, tinha o ar mais concentrado do mundo e talvez precisasse de silêncio enquanto descia da carruagem. "Como?" perguntou a mulher momentos mais tarde, já liberta dos enormes degraus. O condutor repetiu a pergunta um pouco mais alto do que antes, não fosse a senhora ouvir mal. A mulher do eléctrico ouviu a pergunta respeitosamente e ficou a pensar durante algum tempo. Talvez nunca tivesse considerado essa hipótese e estivesse agora a debruçar-se sobre ela. A senhora parecia agradada com a ideia, havia um esboço de sorriso no seu rosto. Finalmente uniu as sobrancelhas numa ruga profunda e, ainda sorrindo, disse: "Mas assim não andava de eléctrico!".

quinta-feira, 12 de julho de 2007

Sonho português

Eu fui ao mar e vice-versa: o mar veio até mim.
Mais um amor correspondido.
Felizes de nós, marinheiros tristes.

quarta-feira, 11 de julho de 2007

Voltar

O viajante e o viajado encontraram-se na estação. O viajante disse que ia dar a volta ao mundo e, na volta, esperava voltar a encontrar o viajado. O viajado disse que quem dava voltas, não voltava. Um dia, também ele fora dar uma volta e, na volta, ao passar pelo ponto de partida, pensou que era um ponto de passagem. Por isso, voltou para trás e agora, ao olhar para trás, sabia que dera demasiadas voltas para saber voltar. Um pensava que voltava, o outro não sabia como voltar. Quando partiram, disseram "Boa viagem". Um deu a volta ao comboio, o outro deu demasiadas voltas à cabeça. Ambos se perderam no caminho.

terça-feira, 10 de julho de 2007

Heitor, o explorador

Numa madrugada de Agosto, o pescador Heitor fez-se explorador e atirou-se ao mar numa jangada de madeira. No primeiro dia, remou contente com a corrente e, na primeira noite, adormeceu profundamente. Na manhã seguinte, acordou num sobressalto com o primeiro raio de luz. "Ai Jesus", assustou-se Heitor, pois o sobressalto era afinal um salto que vinha do chão e ia bem alto. E então, ao espreitar o seu reflexo na água, descobriu que era rã. Heitor, outrora pescador, depois explorador e agora anfíbio, chorou toda a manhã o seu corpo de rã. Mas, pela tarde, disse num tom grave: "Eu conheço esta história!" e logo declarou vitória sobre o feitiço. Só um beijo libertaria Heitor, e o explorador, agora anfíbio, ficou à espera de ver alguém no além-mar. Mas não havia quem andasse por ali a pescar nem a explorar, não havia peixes a nadar nem gaivotas a voar. Heitor esperou, desesperou, cansou, descansou, dormiu, acordou, chorou, chorou.
Mas, no sétimo dia, apareceu finalmente uma mosca. A rã disse-lhe "Ó mosca, eu era pescador e depois explorador e, de repente, acordei uma manhã e era rã! Se me deres um beijo, quebrarás o feitiço!". A mosca fez-se rogada, não era nenhuma beijoqueira ao serviço de feitiços, mas teve pena do anfíbio sozinho na jangada de madeira. "Pois bem, marinheiro, aqui vou eu para te dar um beijo!". Heitor deu um salto bem alto e gritou de alegria em contrabaixo. Enquanto a mosca voava até si, disse a rã de si para si: "Eu estou apaixonado pela mosca, pois só o verdadeiro amor quebrará o feitiço". Fechou os olhos com força e concentrou-se no seu amor. Mas no momento do beijo, em vez dos lábios, a rã ofereceu a língua, engolindo o insecto de seguida. A natureza assim o quis: não se pode enganar a fome. E o pobre Heitor chorou infeliz a sua sorte.

segunda-feira, 9 de julho de 2007

O senhor do lado

Naquela manhã, ao sentar-me ao balcão do café para o café da manhã, comentei para o senhor do lado: "Não sabia que chovia em Julho". "Não se pode saber tudo", respondeu-me o homem, atravessando-me com um olhar oblíquo que descia brutal do céu contra os meus pés. O senhor do lado sabia certamente tudo ou tinha a pretensão disso, de outra maneira teria falado sobre o tempo e não sobre a limitação dos homens. As pessoas pura e simplesmente não falam sobre evidências ou, pelo menos, têm a pretensão disso. Resolvi perdoar a frase infeliz ao senhor infeliz, a verdade é que as pessoas dizem coisas só para não estarem caladas. Nesse preciso momento, o senhor levantou os olhos do café e disse: "Às vezes mais valia estar calado" e eu, surpreendido com o comentário, apressei-me a engolir o pastel de nata para lhe perguntar: "Ó homem, você lê pensamentos?". O senhor do lado sorriu um sorriso amargo, amarelo, de cafeína matinal, depois endireitou-se para dar espaço ao riso que vinha de dentro, a certa altura curvou-se sobre si próprio com o peso das gargalhadas, os olhos fechavam-se bruscamente em esforço, o seu rosto era agora vermelho, há vários segundos que não respirava. Passados dois minutos, não mais do que isto, recompôs-se e limpou as lágrimas vagarosamente, libertando os últimos suspiros de riso. Fiquei a olhá-lo com estranheza e resolvi confessar assustado: "Bolas, pensei que ainda se ficava!". O senhor do lado levantou-se devagar e, enquanto pousava duas moedas no balcão, olhou-me com o mesmo olhar oblíquo e disse, em tom de despedida: "Vocês, os comuns mortais, preocupam-se com cada coisa".

sexta-feira, 6 de julho de 2007

Déjà vu

No comboio vem um estrangeiro a ler um livro. Tem um ar estranho o estrangeiro, daí saber-se que é estrangeiro, de outra maneira só se o ouvíssemos falar e, como no comboio vem tudo calado, seria impossível sabê-lo senão através do seu ar estranho. O livro que o estrangeiro vem a ler chama-se "O estrangeiro", há algo estranho nisto. Ao lado vem uma rapariga de iPod ao colo, vê-se que é daqui, traz a cor desta terra nos olhos, ligeiramente verdes, quase chuvosos. Tem uma tez branca, igual à dos outros, e um nariz aquilino que, por sua vez, aponta tranquilo para a janela. E nela há a imagem repetida, a rapariga de iPod ao colo. Dir-se-ia que neste banco se sentam pessoas duplicadas. Doppelgänger.

quinta-feira, 5 de julho de 2007

Vizinhos

Encontram-se nas escadas. Um desce, o outro sobe, ambos param. Um é mais alto que o outro, está dois degraus acima. Sorriem. Diz um "Chove que se farta" e outro "Pois", pensam os dois "Azar". Pergunta um "Há quanto tempo está fora?" e o outro hesita. O primeiro pensa "Não se ofenda" e o segundo "Não me lembro". Diz o segundo "Há uns 6 meses" e o primeiro exclama "Aaaaaaaaaaaa". Pensa um "Não tenha pena" e o outro "Coitado". Um ameaça subir, o outro interrompe-o. "E custa-lhe estar fora?" e o segundo encolhe os ombros. Pensa o primeiro "Muitíssimo" e o segundo "Nada de nada". Diz este "Um bocadinho" e o outro acena com a cabeça. Lamentam em coro "Então com este tempo!" e riem da coincidência das vozes. Um sobe, o outro desce. O primeiro pensa "Maldita chuva" e sai do prédio. O outro entra em casa, não pensa nada. Senta-se devagar em silêncio e ouve a chuva. Diz para si "Peixe fora de água".

quarta-feira, 4 de julho de 2007

A menina rouca

Diz-se que a menina é rouca, tem uma distorção nas cordas vocais, é um grande desgosto, desgostou a velha, a terapeuta da fala fá-la falar mas do que a menina gosta é de cantar, daí a sua boca em forma de bico esquisito como as dos passarinhos pequeninos e os braços quase asas bem puxados para trás. Mas a sua cantilena dá pena, mete dó, diz a avó encolhendo os ombros como quem encerra o caso e dá um abraço à cantadeira. A menina abana a cabeça com a destreza dos pombos do Rossio e logo faz pio e começa a cantar. Vêm de dentro sons guturais, grotescos, têm forma de grutas, metem medo. Estamos nisto e chega o Evaristo cantor. "Menina", chamou, "precisas de ajuda para o teu cantar" e nisto o Evaristo estende-lhe uma flauta e a menina começa a tocar. Tocou primeiro um sol e depois um dó e já não metia dó o cantar da menina.