sábado, 22 de dezembro de 2018

Os preferidos de 2018: Literatura Infantojuvenil

Não sei como correu 2018 para a viticultura, mas a colheita de literatura infantojuvenil foi bem boa. A seleção do Deus Me Livro começa num mega atlas e acaba num grande mergulho. O meu “Eu Sou Eu Sei” também lá está (eu ai, eu ui), todo muito encolhido e monossilábico, mas cheio de cor e traquinice, ao estilo da Madalena Matoso.



Ver a lista completa aqui: http://deusmelivro.com/mil-folhas/os-nossos-preferidos-de-2018-literatura-infanto-juvenil-21-12-2018/
Bom ano!

quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

As três Marias

A Mary John portuguesa, a Mary John brasileira e a Mary Jo mexicana finalmente juntas.



sábado, 15 de dezembro de 2018

Jovens Criadores no Plano Nacional de Leitura

Ho ho ho! Olha, que nice! “Como desenhar o corpo humano” é um dos livros recomendados pelo Plano Nacional de Leitura para leitores adolescentes e adultos.
Já vos disse que tenho uma relação emocional com os Jovens Criadores, né?



“A colectânea é bem o testemunho do início criativo de muitos autores que fazem hoje parte do panorama literário nacional (...). Em alguns destes textos, uns com carácter mais irreverente e/ou experimental, o leitor pode já delinear marcas de estilo que se irá descobrir mais tarde na obra editada destes escritores.”
Texto completo: http://catalogolx.cm-lisboa.pt/ipac20/ipac.jsp?session=&profile=pnl2027&source=~!rbml&view=subscriptionsummary&uri=full=3100024~!462843~!23&ri=5&aspect=subtab11&res=298&menu=search&ipp=1&spp=1&staffonly=&term=*&index=.GW&uindex=&menu=search&ri=5


terça-feira, 27 de novembro de 2018

Dez quilos de identidade

O meu filho com um ano de idade. Com os seus caracóis. Com aquele ar compenetrado de quem tem uma opinião sobre o assunto. O meu filho a franzir o sobrolho. A olhar para um livro. A comer pão. A pigarrear como um velhinho. Um entendimento qualquer nos olhos. Uma certa paz nos gestos. Como se já tivesse cá estado antes. O meu filho a esfregar o olho. A puxar os botões do casaco. A rasgar uma folha. A morder o sofá. A gatinhar. A estrebuchar. A rir. A dormir. A gritar. A chorar. A bater no espelho. A bater na máquina de lavar roupa. A enfiar-se no alguidar.
O meu filho cada vez mais real. A existir cada vez mais. Tão grande. Tão pequeno. Com ranho no nariz. Com a chupeta ao contrário. Com o macaquinho pela mão. Com cócegas nos pés.
O meu filho, com dez quilos de identidade. Que eu compreendo cada vez mais, mas não conheço nada bem. 
Tão íntimo. Tão nosso. Tão meu.
Tão daqui e dali. E ao mesmo tempo tão misterioso. Tão ele. Tão desconhecido.
O meu filho a existir neste mundo, mas ainda não completamente. Não anda, não desanda, não fala. 

E eu fico aqui assim, a vê-lo existir, com a certeza pasmada de que ainda não sei quem ele é, de que nunca vou saber. O meu filho ri-se e bate palmas. É um ser humano de carne e osso.


sexta-feira, 9 de novembro de 2018

Mary John na Cidade do México

¡Mira quién va a México!
No próximo domingo, a Mary Jo vai entrar de rompante pela FILIJ - Feria Internacional del Libro Infantil y Juvenil da Cidade do México.


Eu não vou lá estar e tenho pena, claro. Gostava à brava de assistir a esta conversa entre a autora Martha Riva Palacio Obón e a "booktuber" Alejandra Arévalo. Além disso, gostava de dar a mãozinha à Mary Jo, né?
Fogo... Mãe é mãe!

Boa sorte, Mary Jo! És tão jovem, tão ingénua, tão azul. Só me trazes alegrias.

Mega edição das Ediciones El Naranjo com uma tradução impec da Paula Abramo.

sábado, 3 de novembro de 2018

"Como desenhar o corpo humano" no Deus me Livro

A antologia dos Jovens Criadores
"Como desenhar o corpo humano" está em destaque no Deus Me Livro: http://deusmelivro.com/mil-folhas/como-desenhar-o-corpo-humano-v-a-24-10-2018/



Texto de Natacha Cunha:

"Da prosa à poesia, há aqui textos para todos os gostos, capazes de desafiar as fronteiras entre géneros e romper com convenções literárias. Estruturas inovadoras que acompanham temas diversos, dos quais sobressai a imaginação. Desde o diário de viagem ao drama, da saga infantil ao humor, até mesmo ao “prontuário existencial”, a leitura é uma viagem pela criatividade, numa celebração da inovação da juventude e da ideia de literatura enquanto exercício de liberdade."

Oh yeah!
Juventude, literatura e liberdade. É do que este mundo precisa.

quinta-feira, 1 de novembro de 2018

O meu bruxedo doméstico

Ocorreu-me agora que passei o Dia das Bruxas na cozinha. Entre outros feitiços, fiz uma sopa de legumes para aquecer a psique e curar os males do mundo. É um ritual simples, mas ainda assim mágico.
Primeiro lavei os legumes. Brócolos, tomate, feijão verde. Nabo, beringela, beterraba. A natureza bela, com todas as suas formas, todas as suas cores. Cortei os legumes às fatias no meu altar de madeira e atirei-os para o caldeirão. A água sagrada a fervilhar de entusiasmo. No final disse a minha reza e lancei uma pitada de sal. Seguiu-se o tempo da espera e do feitiço. Oxalá o remédio surja. Oxalá a humanidade vença. No final provei a minha poção mágica com a colher de pau.
Não era má, a sopa. Era boa.
Ao menos isso.
Neste planeta Terra, tão virado do avesso, em que todos os sonhos parecem falhar, eu escolho o deslumbre das coisas domésticas, tão verdadeiras que parecem encantadas.
Uma colher de pau. Uma pitada de sal. E uma sopa de legumes.
Eis o feitiço do Dia das Bruxas. A minha magia real. O meu bruxedo doméstico.
Enquanto houver esperança, hei de voltar ao caldeirão. Para imaginar a magia. E salvar a inspiração.


domingo, 28 de outubro de 2018

Prémio Literário Maria Rosa Colaço 2018

Ui. Estou emocionada até à pontinha dos cabelos. Ontem estive em Almada para receber o Prémio Literário Maria Rosa Colaço, este ano dedicado à Literatura Juvenil. O meu novo texto juvenil chama-se "Aqui é um bom lugar" e não é um romance nem uma novela. É um conjunto de reflexões curtas e lacónicas da Teresa Tristeza, uma moça de 17 anos que, ao longo do 12.o ano, escreve um diário gráfico. O livro está já nas mãos da supergigante Joana Estrela e deve chegar às livrarias em abril de 2019 às cavalitas do sempre astronómico Planeta Tangerina. Tão tão tão nice.


Da esquerda para a direita: Carla Pais, vencedora do Prémio Literário Cidade de Almada, José Manuel Mendes, Presidente da Associação Portuguesa de Escritores, Inês de Medeiros, Presidente da Câmara Municipal de Almada, Sara Reis da Silva, Professora da Universidade do Minho, e moi-même.


quarta-feira, 17 de outubro de 2018

Uma bagunceira que eu sei lá

Olho para a minha casa. Uma bagunceira que eu sei lá. Tudo tão fora do sítio, tudo tão sem nexo. 
Um casaco na casa de banho. Uma chupeta no bolso. Um papel no chão. 
Entro no quarto e apanho o meu reflexo no espelho. Toda eu uma desordem completa. 
Pego no papel que anda pelo chão: uma lista de coisas que nunca cheguei a fazer. Não sei onde largar o papel, por isso deito-o no lixo. 
Brinquedos espalhados pela sala. Ideias espalhadas pela cabeça. Roupa pendurada nos estendais. O meu cansaço pendurado nas cadeiras. O secador de cabelo em cima do armário. Um par de meias em cima da secretária. Uma toalha em cima da cama. Um coelhinho debaixo do sofá. E os livros. Livros na mesa de jantar. Livros na cómoda do quarto. Livros empilhados no chão. Uma pilha de livros muito mal empilhada, a bem dizer. Não tarda caem. Uma caixa de lenços vazia. Um pacote de leite vazio. 
Sacos de roupa emprestada. Sacos de roupa para emprestar. Sacos de coisas para a cave. Sacos de coisas para o lixo. Tanta tralha. Ao fundo, uma mochila olha para mim desanimada, encostada à parede. O rato Mickey está para ali tombado para o lado com as suas mãozinhas insistentes. As plantas cheias de sede. O meu filho cheio de ranho. Eu cheia de sono. O meu cabelo tão fora do controlo, tão desgovernado, coitado. Eu sou uma balbúrdia por dentro e por fora. 
Ainda assim, ao longe, no fim da tralha, no fim de tudo, há sempre aquela esperança. Uma esperança pequenina largada a um canto. Uma esperança, também ela, desordenada. Com uma voz muito fininha. A dizer baixinho: um dia havemos de dar a volta a isto. Eu, ele, nós, eles. 
Quem sabe. Talvez. Quiçá. Um dia destes. No fim de semana. Ou então na próxima semana. Ou nos feriados de novembro. Num futuro próximo, decerto. Mas hoje não. Hoje olhei para a escultura minorca que mora em cima da lareira e fiz como ela. 



Fechei os olhos a esta balbúrdia e fiquei por aqui a escrever sobre isso. A escultura chama-se "Preguiça" e vem assinada: J. R. Não faço ideia quem seja esta pessoa. É pena. 
Bocejo e deixo-me ficar nesta lerdice pegada. A máquina da roupa chega ao fim do ciclo e apita, mas eu não ouço. Eu não moro nesta casa. Estou distraída a escrever este texto. 
Eu vivo de lirismo e fantasia. 
Eu escrevo para arrumar a cabeça. 
Para dar sentido aos dias. Para fugir. 
Para existir. 
Para chegar a casa.

sábado, 13 de outubro de 2018

Eu Sou Eu Sei nos Hipopótamos na Lua

O Eu Sou Eu Sei passeou-se em grande estilo no blogue Hipopótamos na Lua.






Escreve Nazaré de Sousa:

"Eu Sou, Eu Sei, Eu Dou, Eu Rei. Passo a passo, vamos tocando o mundo, conhecendo-o e descobrindo-nos. Essa é a maravilhosa aventura de ser e crescer. Aqui, expressa como um poema ilustrado. As palavras de Pessoa e os desenhos de Matoso crescem juntos nesta espécie de ABC de quem chega ao mundo. Nhec, nhec, gostamos muito!"

Ler texto completo aqui: https://hipopomatosnalua.blogspot.com/2018/10/gigantescas-pequenas-coisas-ii_10.html?m=0
Eu cof, eu choc. Eu vou, eu voo.




segunda-feira, 8 de outubro de 2018

Tempestade de areia


Por vezes, nos dias maus, penso naquele último episódio da Tieta do Agreste. Naquela tempestade de areia absolutamente assombrosa que engole a cidade e as pessoas. Eu cá vi a telenovela, não li o livro. E lembro-me bem desse momento: um deserto inteiro a entrar pela minha vida dentro, a derrubar a minha infância. Um pedaço de nada a surgir do nada. E a verdade é que no final tudo acaba. O bom e o mau. O melhor e o pior. Fica só a areia e o vento. Nos dias maus, penso que o bom do aquecimento global é que isto vai acabar depressa. Numa tempestade de areia ou algo assim. Entrementes, enquanto por aqui andar, vou continuar a ouvir Caetano Veloso e a ler Daniel Galera. Espero ainda ir a tempo de pôr os pés num deserto e ler a Tieta do Agreste. Ler, acreditar, resistir. Por esta altura, a minha esperança mais esperançosa é que, um dia destes, algum artista brasileiro escreva um sambinha bem gostoso e democrático sobre o Bolsonaro. Sempre rima com aquela expressão: o barato sai caro. Eu quero dançar esse sambinha em homenagem ao nordeste brasileiro e a todas as terras a leste e a oeste em todas as regiões do mundo que vão ser engolidas, grão a grão, passo a passo, por esta impressionante tempestade de areia.

domingo, 7 de outubro de 2018

Supergigante no México

E agora uma cena nada mortiça. No México, o Supergigante é um dos livros recomendados pela revista ActitudFEM para falar da morte com os mais novos.
Pois... Às vezes esqueço-me que este livro fala da morte. Acho sempre que ele fala da vida. Mas, a bem dizer, a morte faz parte da vida, né?



Supergigante
12 años en adelante / Ediciones El Naranjo
Ana Pessoa, ilustraciones de Bernardo P. Carvalho

Un adolescente atraviesa al mismo tiempo el peor y el mejor día de su vida: su abuelo falleció y la chica que le gusta le dio su primer beso. Entre la tristeza y el enamoramiento el chico comienza a correr sin detenerse para intentar acomodar sus pensamientos.

Una hermosa novela que te recordará tu primer enamoramiento y te llevará con su ritmo rápido de la mano de la escritora portuguesa Ana Pessoa.

(Texto de Graciela Sánchez)

sexta-feira, 21 de setembro de 2018

A vida não é uma mãe e um filho

O nosso tempo chegou ao fim. Eu e ele desunidos, desenlaçados, desconjuntados. Partidos ao meio. 
Ele vai por ali, eu vou por aqui. Ele vai para sul e eu para norte. 
Cada um no seu canto. Cada um na sua. E não está nada mal assim. 
A vida não é uma mãe e um filho. A vida não é um colo e uma chupeta. A vida são as mães, os filhos, as chupetas e tudo o resto. Buzinadelas, constipações, antibióticos. Balões, bigodes, guindastes. Quartos de banho, quartos de hotel. Salas de cinema, salas de reunião. Dores de cabeça, dores de dentes. Lentes progressivas, ovos mexidos. A vida é uma confusão do caneco. 
Estou no café de sempre a comer precisamente ovos mexidos e sei que vou ter saudades desta solidão a dois. Vou ter saudades deste bebé que ele é, que ele foi, que ele será sempre. Do interesse eufórico por este mundo tão grande. Da alegria simples de estar vivo entre as coisas vivas. Da bisbilhotice espontânea: abrir uma gaveta, rasgar uma folha. Da sua felicidade a olhar para o espelho, a lamber uma parede, a enfiar a mão na sopa. 
Estou aqui feita mãezinha de cotovelos apoiados no parapeito da vida, a contemplar o passado e a projetar o futuro. Eu penso na alegria fácil do meu filho e pergunto-me em que momento é que isto acaba. Em que momento acabou para todos nós. Em que momento nos transformamos nestes macambúzios muito crescidos, que já não se riem para o espelho, já não lambem as paredes, ficam só assim muito parados e circunspectos, tão fartos da vida e do mundo, tão cansados, tão chatos, tão convencidos de que já vimos tudo, já sentimos tudo e nada nos move, nada nos abana. Montanhas, praias, cidades. Comboios, bicicletas, telhados, varandas. Farmácias, hotéis, garagens. Jurisprudência, concorrência, orçamento de Estado. Normas de segurança, regras de trânsito, cartões de crédito. 
Em que momento acaba a alegria e começa o cinismo. 
Eu penso no meu filho e só espero que este mundo venha devagarinho, a gatinhar. Cachecóis, faturas, parquímetros. Anexos, certidões, imóveis. Manuais escolares, recibos verdes, vinho branco. Sacos de plástico, calças de ganga, portas de embarque.
Acima de tudo, espero que não lhe falte o colo da mãe sempre que lhe bater o cansaço e o tédio, porque lhe vai bater o cansaço e o tédio. E o colo da mãe pode dar jeito.
Nunca mais vamos andar pendurados um no outro horas a fio. Dias a fio. Meses a fio. Isso é claro. É certo. É indubitável. 
Mas esta vida também é feita de ternura e miminhos. Este mundo às vezes esquece-se disto. Que a vida também é uma mãe e um filho. 
Se calhar estamos só a precisar de um abraço.
Eu cá estou.

domingo, 9 de setembro de 2018

Eu Sou Eu Sei no "Todas as Palavras"

No sábado, o episódio do "Todas as Palavras" na RTP3 acabou com um livro meio tímido, de poucas palavras. Eu ai, eu ui!


Nas palavras de Inês Fonseca Santos (na imagem): "Este livro é um jogo de linguagens, como é também um jogo de palavras, para melhor compreender o jogo da vida e os momentos em que as experiências da vida cabem dentro das palavras. Crescer, afinal, é também isso. É a soma das conquistas que preenchem estas páginas, em que tudo é verbo."

O episódio pode ser visto na íntegra na RTP Play (a entrevista a Jerónimo Pizarro sobre Fernando Pessoa vale bem a pena): https://www.rtp.pt/play/p4253/todas-as-palavras.

sexta-feira, 31 de agosto de 2018

Leïla-Thérèse

A Leïla morreu. Chamava-se Leïla-Thérèse. E era tão nova. Tão alta. Tão viva.
Passei agora na rua dela, na porta dela. Número 25. O nome dela ainda lá está. Tirei um nome à placa, não sei porquê.
Em junho escrevemos-lhe um postal. Eu e a Laura. Estávamos juntas num café e gostávamos que ela se juntasse a nós em breve. Foi o que escrevemos.
Há meses que a Leïla não nos queria ver. Não queria ver ninguém. Respondeu-nos por email nesse mesmo dia. Que estava muito fraca, que precisava de recuperar do último tratamento, que aquele postal lhe dava força.
No meu dia de anos enviou-me uma mensagem linda. Eu respondi. Foi a última vez que falámos. Estive a ler isso tudo hoje. Os últimos emails. As últimas mensagens.
Há uns tempos encontrámo-nos no mercado. Lembro-me bem. Ficámos felizes por nos vermos. Ficámos tão felizes. Porque seria? Mais tarde falámos sobre isso. Por que razão estávamos tão felizes naquele encontro? Seria por estarmos no mercado? Seria por ser inverno? Seria por sermos amigas e vizinhas? Por ter sido um encontro não planeado, imprevisto, espontâneo? Realmente era bom encontrar uma amiga no mercado. Era bom encontrar uma amiga num dia de inverno. Mas não era bem isso.
Fizemos compras juntas. Os comerciantes conversavam com a Leïla, riam-se das suas piadas, que eram sempre agudas e sarcásticas. Eu disse-lhe que os comerciantes não se riam para mim. Ela fez uma piada qualquer, não me lembro exatamente o que disse. Apontei para uns dióspiros. Disse-lhe: "São tão bons, estes dióspiros." Ela disse: "A sério? Eu nunca comi um dióspiro." Como era possível? A Leïla, uma mulher tão rural, tão francesa, tão agrónoma, nunca ter comido um dióspiro. Rimo-nos. A Leïla comprou um dióspiro e prometeu-me que depois me diria se tinha gostado. (Gostou.)
No final das compras disse-lhe que estava feliz de a encontrar precisamente porque estava muito triste. Ela respondeu-me que também estava feliz por me ver porque também estava muito triste. Decidimos sair do mercado e beber um copo.
Sentámo-nos à janela de um bar de esquina. Estava frio. A Leïla propôs que bebêssemos vinho quente. Era uma bela ideia. O dia muito escuro lá fora e nós lá dentro, a bebericar vinho quente. Estava bom, não estava? Ui, que bom que estava. Falámos das nossas mágoas, das nossas esperanças. Haveríamos de sair dali menos tristes do que antes, menos frágeis, menos sóbrias. Eu disse mais uma vez que estava feliz por nos termos encontrado, estupidamente feliz. Era possível sentir felicidade na tristeza. A Leïla, tão doente, tão forte, tão viva, disse que o importante nesta vida era passar tempo com as pessoas de quem gostamos. Que o resto não valia um chavo. Eu concordei. Agarrámos nos nossos saquinhos de pano e nas nossas mágoas, e lá fomos à vida. Falámos deste episódio várias vezes. De como era bom encontrar uma amiga num dia triste. De como era bom beber vinho quente no inverno.
Quando o meu filho nasceu, a Leïla trouxe-lhe um orangotango. Rimo-nos com aquele boneco, inventámos vozes e gestos para ele. A Leïla disse ao meu filho que o ia levar a passear muitas vezes com aquele orangotango. E que um dia o ia raptar porque ele era um bebé muito lindo.
A última vez que a vi, foi ao longe. Eu vinha a saltitar pela rua com a minha cria e a Leïla vinha a caminhar devagar, quase sem forças. A Leïla tão doente. Tão triste. Tão fraca. Ela não me viu, mas eu vi-a. Abrandei o passo e fiquei a vê-la. A Leïla tão cheia de tristeza. Tão cheia de perda. E eu tão cheia de pena. Tão cheia de silêncio. Tão cheia de vergonha da minha sorte, da minha saúde, da minha cria. É possível sentir tristeza na felicidade.
Não nos falámos. A Leïla não ia querer a minha pena nem a minha vergonha. Eu sei disso. E agora a Leïla morreu e nunca vai levar o meu filho a passear com o orangotango. Nunca o vai raptar. E nunca mais vamos beber vinho quente.
Mas jamais me vou esquecer que fui feliz naquele dia triste, que encontrei uma amiga nesse dia de inverno e que, juntas, abrimos os nossos corações ao meio, como dióspiros. É que nem sempre é assim. Quase nunca é assim. E é pena. O importante nesta vida é passar tempo com as pessoas de quem gostamos.
O resto, realmente, não vale um chavo.

quinta-feira, 30 de agosto de 2018

Mary John no México!

Estou feliz feliz feliiiiiz. A Mary John está mesmo a chegar ao México. O meu coração aos tombos.
Uma edição linda das Ediciones El Naranjo com uma tradução em filigrana pela talentosa Paula Abramo.



No México, a Maria João é Maria José. A Mary John é Mary Jo. Mas o amor é o amor. E a vida é a vida.

"Mi primera mentira. Me miraste, te miré. Dos preguntas, dos enigmas. Me preguntaste: ¿Cómo te llamas? Y yo dije: José. Y esto ya no era una mentira. Todo mundo me dice José, menos tú, que me dices Mary Jo..."

Obrigada, México. Obrigada, vida!

sábado, 25 de agosto de 2018

Literatura juvenil nas Palavras Andarilhas

Que bem que se esteve hoje em Beja, nas Palavras Andarilhas, à sombra das árvores. Eu e a Ana Saldanha cá estivemos a conversar sobre literatura juvenil com uma plateia cheia de entusiasmo e perguntas.












Falámos da gaguez da adolescência, do problema das faixas etárias, de sexo e outros tabus, dos adolescentes, do paternalismo dos adultos, do processo criativo e da censura: a censura explícita, a autocensura e a censura velada.
Os livros juvenis são só para adolescentes? Claro que não. Um livro juvenil pode falar sobre sexo? Claro que pode.
A literatura juvenil é literatura. A literatura é livre. A literatura é de quem a apanhar.

Palavras Andarilhas, um festival das palavras, da narração oral, dos livros, da ilustração e da música. Que maravilha!
Resta-me agradecer à Cristina Taquelim e a toda a equipa andarilha, gente boa que vive nos livros e na leitura. Foi tão bom!

quinta-feira, 23 de agosto de 2018

Supergigante no México

E agora uma notícia supergigante num texto supergigante!



Via página de Facebook da editora El Naranjo

Disse-me há uns dias a tradutora mexicana Paula Abramo que a sua tradução do Supergigante foi finalista no Prémio Bellas Artes de Traducción Literaria Margarita Michelena 2018 (ata do júri).

Esta tradução primorosa, que eu li e reli, chegou ao México numa edição linda da editora Ediciones El Naranjo, com distribuição por toda a América Latina. Nunca conheci a Paula, mas sigo-a atentamente à distância através do Facebook. Entre muitas outras coisas, a Paula tem traduzido e divulgado tesouros desconhecidos do Machado de Assis! Este mundo é cada vez mais global, cada vez mais próximo, cada vez mais de todos nós, sobretudo graças aos tradutores. O que seria deste mundo sem tradução? Não seria bem um mundo. Seriam imensos mundos isolados. Territórios incapazes de comunicar entre si.

É preciso celebrar os tradutores. Acima de tudo os tradutores literários, essas figuras discretas que circulam nas sombras. Ninguém as vê, mas são eles que nos abrem as portas à literatura de todo o mundo. Trabalham nos bastidores, em silêncio. São praticantes da alquimia linguística, mas quase nunca vêm nas capas dos livros. Além disso, são trabalhadores mal pagos, maltratados, mal tudo.

Valham-nos pelo menos os prémios atribuídos a estas divindades generosas. Lançam a luz sobre o seu trabalho e o seu nome.

Vivam os tradutores literários! Viva a Paula Abramo!

segunda-feira, 20 de agosto de 2018

Palavras Andarilhas





Se puderem e quiserem, venham andarilhar em Beja. Vou lá estar no sábado com a Ana Saldanha a falar de literatura juvenil, "essa terra incógnita".

Programa completo aqui:
https://palavrasandarilhas.pt/palavras-andarilhas-2018/encontro/

segunda-feira, 13 de agosto de 2018

O nosso lifestyle newly revamped

Atenção: este blogue estreia-se finalmente nas últimas tendências do lifestyle. Espero que gostem deste espaço newly revamped, que brilha no escuro.

No comboio para Lille, folheio em alta-velocidade a revista da Eurostar, o gigante ferroviário que atravessa em regime de exclusividade o canal da Mancha e liga Londres às principais cidades dos Países Baixos, da Bélgica e da França. A revista chama-se Metropolitan, assume-se como publicação de lifestyle e é distribuída gratuitamente nos comboios que transportam mensalmente cerca de 800 mil passageiros. Na capa, a declaração de intenções: Food Culture Design & glow-in-the-dark ice-cream. A receita de sempre: futilidade ao mais baixo nível mascarada de requinte e sofisticação.
Passo os olhos pelos artigos. No início divirto-me com as expressões complicadas cheias de cores e texturas: sow cool, white hot, blue steal, cold comfort. Depois passa-me o conforto e instala-se de súbito o desconsolo da insatisfação, a angústia nervosa do consumismo.
É este o efeito das revistas lifestyle. A sensação de que algures na urban jungle há uma vida paralela muito melhor do que esta, com preocupações e necessidades muito mais refinadas. Os artigos publicitários e artificiosos vêm disfarçados de reportagens sobre as fashion boutiques e as concept stores. Gritam-me aos sentidos, dão-me ordens. Party like a Parisian, dizem-me. Grab a quick bite, smell the roses, join the locals. Don't miss. Don't let. Get ready. Pull up a deckchair. Uma pessoa apanha o comboio e sente-se logo em falta com a sua própria vida, porque não trouxe a manta de piquenique e não sabe onde ficam as culinary trends nem a vibrant nightlife. Além do modo Imperativo, os autores narram as suas descobertas fúteis quase sempre na primeira pessoa do plural. We love. We are crazy about. We kick up our heels. Nós: aquela entidade coletiva a que todos queremos pertencer, mas que ninguém sabe ao certo quem é. A experiência é comum a um grupo e, por isso, impõe-se. E é esta entidade coletiva não identificada que nos diz onde fica o buzz-worthy restaurant, onde devemos tomar um whisky-infused cocktail e onde podemos comprar statement socks, cool-kid jewellery e hipster-friendly gifts. Produtos disfarçados de conceitos. Conceitos disfarçados de coisas. Até as pessoas não são bem pessoas. São gourmet aficionados. São uma arty crowd. É difícil perceber a fronteira entre os artigos e a publicidade. Uma das secções chama-se Promotion e outra chama-se Publi-reportage. A linguagem é dazzling e cosmopolitan. Está repleta de hotspots, pit stops, pop-ups, start-ups, top-shops. Necessidades novas, soluções para problemas que desconhecíamos. Tudo isto pulverizado de vibrações e sensações. Um fresh spin, uma festive feel, uma viral sensation, um laid-back family vibe, etc.
Avanço pela revista vibrando de irritação e desânimo.
Em Amesterdão há uma professora de ioga que junta nas suas aulas uma manada de alunos e uma grupeta de cabras. A professora, inicialmente apreensiva em relação a este método, rapidamente percebeu os benefícios que resultam de abraçarmos uma cabra. Fica assim lançado o convite para hit the hay.
E tudo é cheerful, newly revamped, cosmopolitan, inspiring, outstanding, breath-taking e unforgettable.
Assim vai a sociedade ocidental. Caminhando elegantemente em sapatos de salto alto e com óculos escuros da Miu Miu para o precipício da superficialidade. Tudo going gaga com a latest craze. Cada vez mais obcecados com tendências e experiências. Todos tão sedentos de humanidade e pureza, mas cada vez mais sozinhos e infelizes. Afastados da vida, da natureza, dos outros e até de nós próprios.
No meio desta superficialidade a dar ares industrial-chic, o que importa perceber, julgo eu, é que a malta com dinheiro e poder nos media quer precisamente isso. Que nós, a entidade coletiva não identificada, continuemos a alta-velocidade, sentadinhos de preferência na classe turística, a sonhar com uma vida artificial cheia de brilhos e salamaleques, e a investir todo o nosso dinheiro e energia em coisinhas e eventos cheios de formas e sem qualquer conteúdo. Chego a Lille a sentir-me enganada e vazia de ideias.
Mas nem tudo é mau. Spice up your life, malta! Acabo de ler nesta revista que as Spice Girls poderão vir a juntar-se novamente. Zig-a-zig-ah! Eu não sou hipster-friendly nem gourmet aficionada, mas também não sou imune aos artifícios das tendências.


quarta-feira, 8 de agosto de 2018

Seis vezes seis

É quarta-feira. Hoje há mercado. E eu faço 36 anos.
Vou comprar ameixas. Alperces. Pepino. E azeitonas, pera abacate, queijo de cabra, húmus. Com sorte, ainda há pão com nozes e meloas doces. Eu sou feliz à quarta-feira. Especialmente hoje, que está mais fresquinho. A minha cria odeia calor e eu preciso de arejar as ideias. Talvez aprenda qualquer coisa hoje. A mulher dos legumes, que parece um homem, dá-me sempre bons conselhos. As mãos duras e calejadas, uma espécie de luvas nos pulsos. Espero que o senhor dos queijos me faça um elogio. Passa a vida a amanteigar-me. "Esse vestido fica-lhe tão bem." Vou almoçar àquele sítio novo aqui ao lado. Tem um bom terraço. O meu filho fica sentado na mesa a brincar com o guardanapo. Depois havemos de ir ao parque ver as árvores e os pássaros. Eu vou beber café, ele vai comer relva. Pelas 16h convém estarmos em casa para lhe dar a fruta. Eu faço planos dentro da cabeça e também faço 36 anos. Sou um seis ao quadrado. Um seis vezes seis na tabuada da vida. Nada mau. Um dia talvez venha a ser um sete vezes sete, um oito vezes oito. Eu olho para o meu filho, este pé descalço que só sabe pôr terra à boca, e penso que ele ainda nem chegou ao início da tabuada. Ao um vezes um. E penso também que talvez um dia ele chegue aqui, ao seis vezes seis. E que nessa altura talvez saiba que o tempo e o espaço continuarão depois dele. Que, na melhor das hipóteses, gostará de estar entre os vivos e chegará ao fim da tabuada. Ao dez vezes dez. Que a história da vida é feita das histórias dos dias. Das nossas paixões, das nossas zangas. Das nossas idas ao mercado, dos nossos passeios no parque. Que a maior parte dos dias acabam da mesma maneira. Com um certo cansaço. Que não é nada mau regressar a casa. Que o amor existe. Que o amor pode. Que o amor ordena. E que, depois do seis vezes seis, ainda há muita tabuada pela frente. Eu, que sempre fui uma nostálgica debruçada sobre o passado, chego aos 36 a pensar nos próximos 36 anos. Oxalá cheguemos a esse futuro. Oxalá a minha tabuada ainda não vá a meio. Gostava que me restasse mais tempo com este menino, pé descalço, do que o tempo que vivi sem ele.

quarta-feira, 1 de agosto de 2018

A experiência física da leitura

Quando gosta de um livro, agarra nele de qualquer maneira e abana-o. Depois grita-lhe aos ouvidos e bate-lhe. Dá-lhe umas belas chapadas na capa e no traseiro. Só então abre o livro em qualquer página e fecha-o logo a seguir. Repete o movimento vezes sem conta. Abre e fecha. Abre e fecha. Abre e fecha. Por vezes detém-se numa passagem e amachuca a folha, dobra-a, rasga-a. Brinca com o pedaço de papel, mete-o na boca. Depois atira o livro para o lado e agarra-o outra vez. Roda-o de um lado para o outro com as duas mãos e, quando o apanha a jeito, morde-lhe a lombada com grande convicção. Pimba, bem feito. Às vezes aleija-se, coitado. Alguns livros são duros de roer.
A leitura, para o meu filho, é uma experiência física e não uma experiência intelectual.
À noite, quando me deito com o meu Kindle, sinto-me uma leitora menor. Os livros eletrónicos não são livros a sério. Não têm cheiro. Não têm sabor. Estou para ali largada a ler os diálogos epifânicos da Rachel Cusk e só me apetece metê-los na boca. Aaah, penso, quem dera morder as lombadas da Rachel Cusk.
Falta-me a experiência física da leitura. Não sinto o tato dos livros. Em contrapartida, posso consultar o dicionário num clique e procurar passagens específicas. Ainda assim, a minha boca sofre. Chora por mais.
Ontem à noite lambi o Kindle, mas não gostei da experiência. O Kindle é o fast food dos livros. Sabe a plástico.
Por causa do meu filho, ando aqui cheia de ganas de devorar livros. Não consigo ignorar este desejo.
Hoje à noite vou atacar as estantes de cima.


segunda-feira, 30 de julho de 2018

A última sílaba

Não percebo grande coisa de francês, mas aprecio o idioma. Sou sobretudo sensível aos seus malabarismos fonéticos. De todas as delícias da língua francesa, o que mais me atrai é mesmo o acento tónico. Cai quase sempre na última sílaba, a marcar o compasso.
Bonjour. Rendez-vous. Merci beaucoup.
É bonito.
As palavras terminam no auge da sua existência, altas e sonoras, cheias de expectativa e juventude.
Liberté. Égalité. Fraternité.
Em português também existem as chamadas palavras agudas, mas a nossa língua é mais dada a palavras graves.
É pena. As palavras graves não têm tanta graça. São mais discretas e resignadas. O acento cai-lhes na penúltima sílaba. Não encorajam o sonho nem o sorriso. Sobem e descem logo a seguir. São palavras decepcionantes.
Em francês, passa-se o oposto. As palavras têm um final feliz. Saem para o mundo com grande exuberância e positivismo, de rabinho empinado. Estou aqui a pensar que talvez por isso a língua francesa esteja tão associada ao romance e à sensualidade. Bougies. Bijoux. Bisous.
Fico com vontade de utilizar mais palavras agudas no meu discurso em português. A bem da minha felicidade e autoconfiança.
Por exemplo: canapé tornedó frenesi. Ou então: cafuné quiçá aqui. Chuchu rodapé querubim.
Chega de palavras graves na minha vida. As agudas têm um efeito positivo no meu bem-estar.
Bambu duplex Bogotá. Aliás canguru javali.
Uh là là. Um dó li tá. Estou a adorar este parlapiê.
Jacaré paletó croché. Sofá chulé assim.
E agora as minhas preferidas: sururu dominó abacaxi.




terça-feira, 17 de julho de 2018

"Eu Sou, Eu Sei" no Plano Nacional de Leitura

As listas do PNL já foram atualizadas. "Eu Sou, Eu Sei" vem recomendado para bebés dos 0 aos 2 anos. Baril!
Eu sim, eu plim.




sábado, 23 de junho de 2018

Ser - eis a questão!

"Eu Sou, Eu Sei" no blogue Prateleira-de-baixo:

"Um livro para bebés? Talvez sim, mas arriscaria a dizer que é o primeiro livro de filosofia para bebés."
in Ser - eis a questão! (texto integral aqui).

Estou aqui com ar platónico a filosofar sobre isto!



segunda-feira, 11 de junho de 2018

Lançamento da antologia dos Jovens Criadores

Foi bonita a festa! Ontem, na feira do livro de Lisboa, lançámos ao mundo a antologia dos 21 anos dos jovens criadores.
Quem quiser, que a apanhe! É um calhamaço de juventude e criatividade.


Da esquerda para a direita: a editora da Penguin Random House Eurídice Gomes, o jovem criador José Trigueiros, o fundador do Clube Português de Artes e Ideias, Jorge Barreto Xavier, e o jovem criador Tiago Patrício.


Alguns dos 21 autores andaram por lá a beber tinto, a falar de criações artísticas e humanas, a autografar uns exemplares e a apanhar chuva.
Foi um momento amarelo-torrado. Tão bom!


A antologia vista de frente.



A antologia vista de costas.


A antologia vista por dentro.

terça-feira, 5 de junho de 2018

Primeiro o silêncio

Primeiro o silêncio.
Depois um estalido.
E um pedaço de vento.
E depois nada.
Outra vez o silêncio.
Um grilo. Outro grilo.
Um pio. Uma coruja.
Um murmúrio de água. Talvez um rio.
De vez em quando um sapo. Um ramo. E depois um burburinho.
Um sino. Um rumor. Um clamor. Vozes. Gargalhadas. Espalhafato. Balbúrdia. Palmas.
Um acordeão.
Um berro. Dois berros.
Uma buzina. Uma campainha. Uma sirene.
Um ronco. Um estrondo.
E de repente um apito. E logo a seguir um grito.
Urros. Sussurros.
Passos.
Novamente um burburinho. Estalidos.
Um espirro. Um cochicho. Um suspiro. Um bocejo.
E mais nada.

sábado, 2 de junho de 2018

Um muro até ao ponto de fuga


E então virámos a esquina - eu, os meus óculos escuros e o meu filho - e fomos dar a um muro vermelho, aos quadradinhos. Um muro de tijolo que era uma rua inteira. 
Uma linha sempre em frente até ao ponto de fuga.
Passou-nos logo a leveza. 
Um muro é um assunto sério. Especialmente aquele, tão completo, tão alto, tão longo. As dimensões soube-as depois, na net: seis metros de altura e quase um quilómetro de comprimento.
Era o muro da prisão de Saint-Gilles.
Do lado de lá, os prisioneiros. Do lado de cá, eu, os meus óculos escuros e o meu filho.
Um silêncio estranho naquela rua que era um muro. Só os meus passos e as rodas do carrinho.
Depois, devagar, um clamor de vozes. Urros ao longe, do lado de lá.
Eram os prisioneiros. Estavam no espaço exterior, a fazer não sei bem o quê. Talvez desporto. Um pensamento esquisito: os tempos livres dos homens sem liberdade.
Eu e os meus óculos escuros ficámos a ouvi-los. O meu filho não. O meu filho dormia à sombra do muro que era uma rua. Uma sombra fresca, é bem verdade. 
Eu e o meu filho cá fora, os prisioneiros lá dentro. Nós livres, eles presos. Todos nós vigiados, monitorizados, condenados. Mas não da mesma maneira.
O sol lá em cima, desinteressado destas coisas da justiça e liberdade. O sol boçal e selvagem, sem cultura, sem cortesia. Não muito diferente deste meu filho, ignorante da sua liberdade. O meu filho analfabeto e inexperiente, de chupeta amarela.
E então eu e os meus óculos escuros pensámos neles. Nos homens punidos. Atrás do muro, atrás das grades. Porque também eles eram filhos de alguém. Também eles eram amados. Um dia também os criminosos terão sido meninos. E antes disso, bebés. Teriam, todos eles, uma mãe. E essa mãe, durante uma época, terá cantado canções de embalar e batido palminhas sempre que eles faziam cocó. Um cocó muito bonito, aliás, amarelo-mostarda, cheio de esperança e fantasia. Um cocó que nem cheirava a cocó. E essa mãe limpava o rabinho do filho e encontrava satisfação naquela tarefa de limpar aquelas nádegas minúsculas, que eram do seu filho, claro, mas também eram suas. Conhecia os esconderijos da pele. Era preciso levantar os pequenos testículos para limpar o cocó amarelo-mostarda. 
Nessa época, mãe e filho eram ignorantes e patetas. Desconheciam o futuro. Mãe e filho não sabiam que a vida lhes traria um muro até ao ponto de fuga.
Eu e os meus óculos escuros pensávamos nisto e perguntávamo-nos se um dia esta minha cria, de chupeta amarela, haveria de cometer um crime imperdoável. Se haveria de sofrer um castigo daqueles. E considerámos que sim, era possível. Imaginei-o colérico, revoltado. 
No início estranhei-o um pouco. O meu filho desobediente. Usurpador. Corrupto. Violador. Mas logo a seguir continuei a amá-lo. Porque não? O meu filho imperfeito. Delinquente. Assassino. Pedófilo. E achei que todos os seus crimes também eram meus. Porque o seu rabinho de bebé também era meu. E todo ele era meu. Por isso, aceitei aqueles delitos.
Fiquei a imaginar esse criminoso. 
De todas as transgressões, prefiro o crime político, claro. O meu filho idealista, visionário, mártir. A acreditar em qualquer coisa. Sempre.
Já a mãe de um criminoso não deve acreditar em grande coisa. Ainda assim, acreditará certamente no seu filho, o pequeno analfabeto de chupeta amarela.
Deve ser isto o amor de mãe.
Uma prisão perpétua de anuência e devoção.
Um muro de tijolo e carinho até ao ponto de fuga.