sexta-feira, 31 de agosto de 2018

Leïla-Thérèse

A Leïla morreu. Chamava-se Leïla-Thérèse. E era tão nova. Tão alta. Tão viva.
Passei agora na rua dela, na porta dela. Número 25. O nome dela ainda lá está. Tirei um nome à placa, não sei porquê.
Em junho escrevemos-lhe um postal. Eu e a Laura. Estávamos juntas num café e gostávamos que ela se juntasse a nós em breve. Foi o que escrevemos.
Há meses que a Leïla não nos queria ver. Não queria ver ninguém. Respondeu-nos por email nesse mesmo dia. Que estava muito fraca, que precisava de recuperar do último tratamento, que aquele postal lhe dava força.
No meu dia de anos enviou-me uma mensagem linda. Eu respondi. Foi a última vez que falámos. Estive a ler isso tudo hoje. Os últimos emails. As últimas mensagens.
Há uns tempos encontrámo-nos no mercado. Lembro-me bem. Ficámos felizes por nos vermos. Ficámos tão felizes. Porque seria? Mais tarde falámos sobre isso. Por que razão estávamos tão felizes naquele encontro? Seria por estarmos no mercado? Seria por ser inverno? Seria por sermos amigas e vizinhas? Por ter sido um encontro não planeado, imprevisto, espontâneo? Realmente era bom encontrar uma amiga no mercado. Era bom encontrar uma amiga num dia de inverno. Mas não era bem isso.
Fizemos compras juntas. Os comerciantes conversavam com a Leïla, riam-se das suas piadas, que eram sempre agudas e sarcásticas. Eu disse-lhe que os comerciantes não se riam para mim. Ela fez uma piada qualquer, não me lembro exatamente o que disse. Apontei para uns dióspiros. Disse-lhe: "São tão bons, estes dióspiros." Ela disse: "A sério? Eu nunca comi um dióspiro." Como era possível? A Leïla, uma mulher tão rural, tão francesa, tão agrónoma, nunca ter comido um dióspiro. Rimo-nos. A Leïla comprou um dióspiro e prometeu-me que depois me diria se tinha gostado. (Gostou.)
No final das compras disse-lhe que estava feliz de a encontrar precisamente porque estava muito triste. Ela respondeu-me que também estava feliz por me ver porque também estava muito triste. Decidimos sair do mercado e beber um copo.
Sentámo-nos à janela de um bar de esquina. Estava frio. A Leïla propôs que bebêssemos vinho quente. Era uma bela ideia. O dia muito escuro lá fora e nós lá dentro, a bebericar vinho quente. Estava bom, não estava? Ui, que bom que estava. Falámos das nossas mágoas, das nossas esperanças. Haveríamos de sair dali menos tristes do que antes, menos frágeis, menos sóbrias. Eu disse mais uma vez que estava feliz por nos termos encontrado, estupidamente feliz. Era possível sentir felicidade na tristeza. A Leïla, tão doente, tão forte, tão viva, disse que o importante nesta vida era passar tempo com as pessoas de quem gostamos. Que o resto não valia um chavo. Eu concordei. Agarrámos nos nossos saquinhos de pano e nas nossas mágoas, e lá fomos à vida. Falámos deste episódio várias vezes. De como era bom encontrar uma amiga num dia triste. De como era bom beber vinho quente no inverno.
Quando o meu filho nasceu, a Leïla trouxe-lhe um orangotango. Rimo-nos com aquele boneco, inventámos vozes e gestos para ele. A Leïla disse ao meu filho que o ia levar a passear muitas vezes com aquele orangotango. E que um dia o ia raptar porque ele era um bebé muito lindo.
A última vez que a vi, foi ao longe. Eu vinha a saltitar pela rua com a minha cria e a Leïla vinha a caminhar devagar, quase sem forças. A Leïla tão doente. Tão triste. Tão fraca. Ela não me viu, mas eu vi-a. Abrandei o passo e fiquei a vê-la. A Leïla tão cheia de tristeza. Tão cheia de perda. E eu tão cheia de pena. Tão cheia de silêncio. Tão cheia de vergonha da minha sorte, da minha saúde, da minha cria. É possível sentir tristeza na felicidade.
Não nos falámos. A Leïla não ia querer a minha pena nem a minha vergonha. Eu sei disso. E agora a Leïla morreu e nunca vai levar o meu filho a passear com o orangotango. Nunca o vai raptar. E nunca mais vamos beber vinho quente.
Mas jamais me vou esquecer que fui feliz naquele dia triste, que encontrei uma amiga nesse dia de inverno e que, juntas, abrimos os nossos corações ao meio, como dióspiros. É que nem sempre é assim. Quase nunca é assim. E é pena. O importante nesta vida é passar tempo com as pessoas de quem gostamos.
O resto, realmente, não vale um chavo.