E então virámos a esquina - eu, os meus óculos escuros e o meu filho - e fomos dar a um muro vermelho, aos quadradinhos. Um muro de tijolo que era uma rua inteira.
Uma
linha sempre em frente até ao ponto de fuga.
Passou-nos logo a
leveza.
Um muro é um assunto sério. Especialmente aquele, tão completo, tão alto,
tão longo. As dimensões soube-as depois, na net: seis metros de altura e quase
um quilómetro de comprimento.
Era o muro da
prisão de Saint-Gilles.
Do lado de lá, os
prisioneiros. Do lado de cá, eu, os meus óculos escuros e o meu filho.
Um silêncio estranho
naquela rua que era um muro. Só os meus passos e as rodas do carrinho.
Depois, devagar, um
clamor de vozes. Urros ao longe, do lado de lá.
Eram os
prisioneiros. Estavam no espaço exterior, a fazer não sei bem o quê. Talvez
desporto. Um pensamento esquisito: os tempos livres dos homens sem liberdade.
Eu e os meus
óculos escuros ficámos a ouvi-los. O meu filho não. O meu filho dormia à sombra
do muro que era uma rua. Uma sombra fresca, é bem verdade.
Eu e o meu filho cá fora, os prisioneiros lá dentro. Nós
livres, eles presos. Todos nós vigiados, monitorizados, condenados. Mas não da
mesma maneira.
O sol lá em cima,
desinteressado destas coisas da justiça e liberdade. O sol boçal e selvagem,
sem cultura, sem cortesia. Não muito diferente deste meu filho, ignorante da
sua liberdade. O meu filho analfabeto e inexperiente, de chupeta amarela.
E então eu e os
meus óculos escuros pensámos neles. Nos homens punidos. Atrás do muro, atrás
das grades. Porque também eles eram filhos de alguém. Também eles eram amados. Um dia também os criminosos terão sido meninos. E antes
disso, bebés. Teriam, todos eles, uma mãe. E essa mãe, durante uma época, terá
cantado canções de embalar e batido palminhas sempre que eles faziam cocó. Um
cocó muito bonito, aliás, amarelo-mostarda, cheio de esperança e fantasia. Um
cocó que nem cheirava a cocó. E essa mãe limpava o rabinho do filho e
encontrava satisfação naquela tarefa de limpar aquelas nádegas minúsculas, que
eram do seu filho, claro, mas também eram suas. Conhecia os esconderijos da pele. Era
preciso levantar os pequenos testículos para limpar o cocó amarelo-mostarda.
Nessa
época, mãe e filho eram ignorantes e patetas. Desconheciam o futuro. Mãe e
filho não sabiam que a vida lhes traria um muro até ao ponto de fuga.
Eu e os meus
óculos escuros pensávamos nisto e perguntávamo-nos se um dia esta minha cria,
de chupeta amarela, haveria de cometer um crime imperdoável. Se haveria de
sofrer um castigo daqueles. E considerámos que sim, era possível. Imaginei-o
colérico, revoltado.
No início estranhei-o um pouco. O meu filho desobediente.
Usurpador. Corrupto. Violador. Mas logo a seguir continuei
a amá-lo. Porque não? O meu filho imperfeito. Delinquente. Assassino. Pedófilo. E achei que todos os
seus crimes também eram meus. Porque o seu rabinho de bebé também era meu. E
todo ele era meu. Por isso, aceitei aqueles delitos.
Fiquei a imaginar
esse criminoso.
De todas as transgressões, prefiro o crime político, claro. O meu
filho idealista, visionário, mártir. A acreditar em qualquer coisa. Sempre.
Já a mãe de um
criminoso não deve acreditar em grande coisa. Ainda assim, acreditará certamente no seu
filho, o pequeno analfabeto de chupeta amarela.
Deve ser isto o
amor de mãe.
Uma prisão
perpétua de anuência e devoção.
Um muro de tijolo
e carinho até ao ponto de fuga.