sábado, 2 de junho de 2018

Um muro até ao ponto de fuga


E então virámos a esquina - eu, os meus óculos escuros e o meu filho - e fomos dar a um muro vermelho, aos quadradinhos. Um muro de tijolo que era uma rua inteira. 
Uma linha sempre em frente até ao ponto de fuga.
Passou-nos logo a leveza. 
Um muro é um assunto sério. Especialmente aquele, tão completo, tão alto, tão longo. As dimensões soube-as depois, na net: seis metros de altura e quase um quilómetro de comprimento.
Era o muro da prisão de Saint-Gilles.
Do lado de lá, os prisioneiros. Do lado de cá, eu, os meus óculos escuros e o meu filho.
Um silêncio estranho naquela rua que era um muro. Só os meus passos e as rodas do carrinho.
Depois, devagar, um clamor de vozes. Urros ao longe, do lado de lá.
Eram os prisioneiros. Estavam no espaço exterior, a fazer não sei bem o quê. Talvez desporto. Um pensamento esquisito: os tempos livres dos homens sem liberdade.
Eu e os meus óculos escuros ficámos a ouvi-los. O meu filho não. O meu filho dormia à sombra do muro que era uma rua. Uma sombra fresca, é bem verdade. 
Eu e o meu filho cá fora, os prisioneiros lá dentro. Nós livres, eles presos. Todos nós vigiados, monitorizados, condenados. Mas não da mesma maneira.
O sol lá em cima, desinteressado destas coisas da justiça e liberdade. O sol boçal e selvagem, sem cultura, sem cortesia. Não muito diferente deste meu filho, ignorante da sua liberdade. O meu filho analfabeto e inexperiente, de chupeta amarela.
E então eu e os meus óculos escuros pensámos neles. Nos homens punidos. Atrás do muro, atrás das grades. Porque também eles eram filhos de alguém. Também eles eram amados. Um dia também os criminosos terão sido meninos. E antes disso, bebés. Teriam, todos eles, uma mãe. E essa mãe, durante uma época, terá cantado canções de embalar e batido palminhas sempre que eles faziam cocó. Um cocó muito bonito, aliás, amarelo-mostarda, cheio de esperança e fantasia. Um cocó que nem cheirava a cocó. E essa mãe limpava o rabinho do filho e encontrava satisfação naquela tarefa de limpar aquelas nádegas minúsculas, que eram do seu filho, claro, mas também eram suas. Conhecia os esconderijos da pele. Era preciso levantar os pequenos testículos para limpar o cocó amarelo-mostarda. 
Nessa época, mãe e filho eram ignorantes e patetas. Desconheciam o futuro. Mãe e filho não sabiam que a vida lhes traria um muro até ao ponto de fuga.
Eu e os meus óculos escuros pensávamos nisto e perguntávamo-nos se um dia esta minha cria, de chupeta amarela, haveria de cometer um crime imperdoável. Se haveria de sofrer um castigo daqueles. E considerámos que sim, era possível. Imaginei-o colérico, revoltado. 
No início estranhei-o um pouco. O meu filho desobediente. Usurpador. Corrupto. Violador. Mas logo a seguir continuei a amá-lo. Porque não? O meu filho imperfeito. Delinquente. Assassino. Pedófilo. E achei que todos os seus crimes também eram meus. Porque o seu rabinho de bebé também era meu. E todo ele era meu. Por isso, aceitei aqueles delitos.
Fiquei a imaginar esse criminoso. 
De todas as transgressões, prefiro o crime político, claro. O meu filho idealista, visionário, mártir. A acreditar em qualquer coisa. Sempre.
Já a mãe de um criminoso não deve acreditar em grande coisa. Ainda assim, acreditará certamente no seu filho, o pequeno analfabeto de chupeta amarela.
Deve ser isto o amor de mãe.
Uma prisão perpétua de anuência e devoção.
Um muro de tijolo e carinho até ao ponto de fuga.