terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Um homem que era uma árvore

Um parque que não é bem um parque, que talvez tenha sido um parque porque há restos de árvores e bancos de jardim. Do céu cai agora mesmo o resto de uma chuva que não chega a molhar o chão. Um homem antigo caminha pela lama que já foi relva mas não vê nada disto: o parque, os bancos, o resto da chuva. É um homem magro, macilento, comprido, parece o tronco velho de uma árvore moribunda. Traz no alto da cabeça um emaranhado de cabelos que já não são bem cabelos, que talvez tenham sido cabelos, mas que agora são ervas daninhas ou o ninho abandonado de pássaros cruéis, um cabelo feito de caruma e lama e folhas pisadas de Inverno sujo. Aproxima-se cada vez mais do nosso banco de jardim e os seus olhos não olham para nós, têm outras coisas dentro. Olhos cheios de nuvens e água, uma luz que não passa. Olhos que olham para dentro.
Ficamos a observá-lo.
É impossível que este homem veja para fora. Talvez não veja de todo para fora e, nesse caso, não saiba que os seus braços são dois ramos vazios sem folhas nem flores nem frutos, só duas mãos que descobrem os dias, extremas e alvacentas como dois sóis de Inverno.
Passa pelo nosso banco de jardim, mas não nos vê ali, vive para dentro, a olhar para outro céu, numa outra Terra, sozinho, perdido, talvez feliz.

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Tia Lilita

Cada um faz o seu luto.

Alguns choram, outros nem tanto: ficam assim endurecidos, incolores, o semblante desabrido.

A tia Lilita morreu.

Não foi hoje. Também não foi ontem. Foi há muito tempo.
Não, não foi há muito tempo.

Via a tia Lilita nos casamentos, nos baptizados, nos Verões em São Pedro de Moel. Ultimamente, nos funerais. Pegava-me na mão com as suas duas mãos, repetia o meu nome várias vezes.

Uma vez, fui ao Porto almoçar a casa da tia Lilita. Uma vez só, não percebo. Foi no Verão de 2008, os primos de Hamburgo também estavam lá e o tio Pedro ainda era vivo. Chamou-me ao quarto, disse-me: «Diz ao teu pai que eu penso muito nele, nos nossos tempos lá em Angola.». Vim para Lisboa com esse recado ao colo e entreguei-o ao pai.

Era difícil chegar a casa da tia Lilita, tínhamos de subir muitos degraus e faltava-nos o fôlego várias vezes, mas nós disfarçávamos o esforço como podíamos, porque éramos jovens e saudáveis. A tia Lilita também tinha dificuldade em descer e subir tantos degraus.

A avó e a tia Lilita eram muito amigas. O avô e o tio Pedro também.

A tia Lilita foi a última a morrer.

Não, não foi a última a morrer, porque nós ainda cá estamos (somos jovens e saudáveis) e, depois de nós, virão outros e, depois deles, outros, para que nunca tenhamos tempo de lembrar os que vieram de Angola.
Cada um faz o seu luto.

A mim deu-me para ler O Retorno da Dulce Maria Cardoso. O retorno de África contado na perspectiva de um adolescente. Acabei de ler o livro esta semana. Tantas coisas que ficaram por saber desse retorno.

Consta que a Dulce Maria Cardoso era adolescente quando veio de Angola. O meu pai também era adolescente, mas não é retornado, porque veio antes do retorno. O pai não quer ler O Retorno, porque não é retornado. Diz-me: «Eu não sou retornado» e, de facto, não é.

A tia Lilita foi a última a morrer. A última dos nossos. Dos que foram para Angola construir estradas e outras coisas (não sei bem o quê).

A tia Lilita casou por procuração. Só depois partiu para África. Que viagem foi essa, que nunca me foi contada? Que cartas escreviam entrementes? O tio Pedro deve ter ido buscar a tia Lilita. Que encontro foi esse? A tia Lilita talvez viesse vestida de noiva, não sei. Que história foi essa, que nunca ma contaram? Eu também nunca pedi para ma contarem, acho.

Não, isto não é verdade. Agora, lembro-me. Um dia a tia Lilita contou-me essa história, mas eu estava tão distraída a pensar na ideia de casar por procuração que não devo ter ouvido. A ideia de casar por procuração era fascinante. Dava para escrever uma longa carta em papel de pergaminho, talvez: «Meu mais prezado amigo», «para o meu mais que tudo», «o meu coração é uma andorinha», gosto de imaginar frases para estas cartas. Onde estão essas cartas? Como trocar alianças por procuração? Quem assinaria o papel primeiro?

A tia Lilita morreu.

E agora sim. Já não há ninguém para contar as histórias que ficaram por contar.

Tanta falta de tempo para as histórias dos outros. Sei tão pouco desse retorno, dessa vida.
Cada um faz o seu luto.

A mim dá-me para escrever.
O tio Pedro também era assim, parece-me.

Onde anda o livro do tio Pedro? Gostava de o ler.

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Prémio Branquinho da Fonseca 2011


Um dia destes fartei-me do meu joelho direito. Vinha no táxi a caminho de casa, e quando olhei para ele, achei-o horrível. Vinha inchado como um sapo e tinha vários cortes na cara. Além disso, era um verdadeiro emplastro, não servia para absolutamente nada.

Nessa altura arrependi-me de várias coisas. Na verdade, de uma só coisa.

Do karaté.

A bem dizer, se não tivesse feito karaté, talvez nunca chegasse a ser operada ao joelho.
Pus-me então a imaginar vidas alternativas para o meu joelho direito, que parecia agora um sapo: natação, equitação, bodyboard, ginástica rítmica, bowling, parapente...
A viagem chegou ao fim, saí do táxi.

O taxista ralhou-me, disse-me não-sei-o-quê da tinta nova e eu pedi muitas desculpas (desolada), expliquei que não era fácil controlar várias pernas ao mesmo tempo. Fui para casa, pé ante canadianas. A esta altura o meu joelho direito coaxava qualquer coisa ao meu ouvido e eu calei-o com um saco de gelo assim que cheguei a casa.

Liguei o computador, li os e-mails.

Pouco tempo depois soube que o meu trabalho com o inacreditável título O Caderno Vermelho da Rapariga Karateca tinha conquistado o Prémio Branquinho da Fonseca 2011 na categoria de literatura juvenil.

Pausa.

Olhei para o meu joelho direito, mas não consegui olhar para ele por causa do saco de gelo. Debrucei-me sobre o meu joelho, libertei-o do gelo e dei-lhe um beijinho.

Ao contrário do que se podia esperar, o meu joelho direito não se transformou num príncipe. Ficou tal como estava, muito sapudo, as bochechas vermelhas cheias de ar e cicatrizes.

Pensei um pouco sobre poucos assuntos: a ficção e a realidade, o karaté, as vidas alternativas, o Branquinho da Fonseca, a literatura juvenil, O Caderno Vermelho da Rapariga Karateca.

Concluí que, se não tivesse feito karaté, nada disto teria acontecido.
Não era uma conclusão brilhante, é certo, mas era uma conclusão possível.

O meu joelho direito olhava para mim todo inchado e eu já não o achei tão feio.

Depois fui fazer pipocas e estive a ver um filme do Bruce Lee.

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Diálogo entre canadianas

- Ó vizinha, já viste que, se esta tipa não nos tivesse, se estatelava no chão?
- É um facto.
- Isso não te dá um certo gozo?
- Um certo gozo? Não, nenhum.
- A sério? A mim dá-me um gozo do caraças.
- O quê? Saber que a tipa se estatelava no chão?!
- Sim, mas sobretudo que precisa do nosso apoio.
- Ah, nesse sentido! É muito gratificante, sim.
- Gratificante?!
- Sim, o facto de podermos dar apoio.
- Ora essa! E a nós, quem nos apoia?
- Nós não precisamos de apoio.
- Não?! Eu acho é que nos contentamos com pouco. Esta tipa atira-nos assim de qualquer maneira para o chão ou contra a parede... Chego a ficar horas de cabeça para baixo.
- Certo. Mas não precisas propriamente de apoio. Nós somos o apoio.
- Exactamente. Nós é que somos o apoio! E, no entanto, ninguém nos dá valor.
- Claro que dá. Toda a gente nos dá valor!
- Não dá, não. Se nos dessem o devido valor, não nos atiravam assim para o chão ou contra a parede.
- Talvez...
- Ouve o que eu te digo: Se andássemos por aí a pregar rasteiras aos doentes, as pessoas respeitavam-nos mais.
- Não respeitavam, nada. Íamos era logo presas!
- Não íamos, não. Repara que as nossas rasteiras são tão rápidas e eficazes que ninguém ia dar por ela.
- Claro que iam.
- Não iam, não. As canadianas são como os mercados financeiros.
- O que são mercados financeiros?
- Não sei, mas parece que estão sempre a pregar rasteiras às pessoas e também ninguém se apercebe disso. Precisamente porque dão assim rasteiras muito rápidas e eficazes.
- Mas quando forem descobertos, vão presos.
- O quê? Os mercados financeiros?! Não vão, não.
- Por que não?
- Porque as pessoas têm muito respeitinho pelos mercados financeiros.
- Que raio?! Então, mas se eles passam a vida a pregar-lhes rasteiras...
- Pois, mas as pessoas são assim. Gostam de ser maltratadas. Já viste alguém a atirar mercados financeiros para o chão?
- Acho que não.
- Pois é... Mas nós passamos a vida aí largadas... Ninguém nos respeita, essa é que é essa.
- Tens razão, vizinha, devíamos fazer qualquer coisa para inverter essa situação.
- Olha, eu, por mim, atirava já esta tipa ao chão.
- Então, e depois?
- E depois, quando ela se levantar, atiramo-la outra vez. Vais ver que, num instantinho, somos nós a mandar nisto tudo.

terça-feira, 4 de outubro de 2011

Fisioterapia

Vou à fisioterapia quatro vezes por semana.
Gosto de ir à fisioterapia, sempre tenho uma desculpa para sair de casa com a minha tala no joelho e as minhas canadianas nos cotovelos.
O meu fisioterapeuta é muito simpático, tem uma carequinha no cocuruto e sabe dizer umas coisas em português porque teve uma paciente portuguesa durante muito tempo. Diz-me: Boa tarde, Até quarta-feira, dobra a perna, e depois ri-se muito, como se o conjunto de sons não fizesse sentido nenhum.
Quem me liga à máquina dos choquezinhos eléctricos é a estagiária, que não se ri nem diz muitas coisas, liga-me só à máquina e dá instruções breves. Fico para ali abandonada, a esticar a perna e a levar choquezinhos eléctricos, diz que faz bem aos músculos.
O outro fisioterapeuta, que é desgrenhado, esbugalhado mas, ainda assim, bem parecido, corrige-me ao longe, diz: Tenta esticar mais, insiste um pouco, dobra agora devagar. Eu faço o que me mandam: estico, insisto, dobro.
Um dos exercícios consiste em brincar com uma bola de ténis. Estou sentadinha e eles põem-me uma bola de ténis por baixo do pé. Não é muito divertido, mas dá para passar o tempo. Ando com a bola para a frente e para trás, já dobro o joelho a 90º e o fisioterapeuta exclama qualquer coisa com um ar muito impressionado como se faz às crianças. Fico a ver o que os outros fazem.
À minha frente, um tipo pedala na bicicleta. À medida que pedala também abana a cabeça ao som do rock foleiro que passa na rádio. Abanar a cabeça ao som de guitarras está tão fora de moda, que o tipo até tem piada. Ao lado, um rapaz de barba rala com ar muito preocupado salta no trampolim. À minha direita, uma búlgara que não fala francês enrola um tecido plastificado à volta do pé e puxa-o com toda a força. Foi operada ao tornozelo em Agosto e ainda cá anda. Ao fundo, em frente a um espelho de quarto de dormir, um homem gordo segura uma vara com as duas mãos e mantém-na paralela ao chão. Roda o corpo para um lado e para o outro, muito sério. Do lado de cá, uma senhora está literalmente de cabeça para baixo, pendurada num engenho esquisito que lhe estica as costas. A senhora não gosta lá muito daquela máquina, porque às vezes tem tonturas quando sai daquela posição e fica muito tempo sentada a recuperar. Acho que é italiana.
Eu gosto de ir à fisioterapia. Parece que mudo de planeta durante uma hora e meia e sempre tenho um objectivo nesta fase de convalescença.
O meu objectivo é saltar no trampolim.
O rapaz de barba rala e com ar preocupado está quase bom. E eu já ando farta de brincar com a bola de ténis.
Não sou nenhuma gata.

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Diálogo com Enfermeira de Branco II - Fome

- Boa tarde, dá-me licença? Queria mudar aqui o soro, pode ser?
- Sim, obrigada. Entretanto já posso comer?
- Ainda não comeu nada?
- Não.
- A que horas foi a operação?
- Não sei.
- Não sabe?!
- Não. Estava a dormir, mas deve dizer na ficha.
- Mas não sabe mais ou menos quando foi?
- Não. Quer dizer, foi de manhã. Lá para as 9h30, talvez 10h.
- Mas já são 16 horas! Ainda não comeu nada hoje?
- Não.
- Nada de nada?
- Não.
- Devem-se ter esquecido, sabe?
- Esquecido?
- Pois, quando serviram o almoço já estava no quarto, não estava?
- Não sei... Posso então comer agora?
- Pois, o problema é que eu agora tenho o frigorífico vazio...
- Vazio?!
- Sim. Acha que consegue esperar até às 17h?
- Até às 17h?
- É quando eles trazem o lanche.
- O lanche?
- Sim. É mais uma horinha, está bem?
- ... Está bem.

Na televisão só passavam programas sobre gastronomia e culinária. O capítulo do livro que estava a ler falava sobre a matança do porco. Livro injusto. O lanche acabou por chegar às 17h30. Duas fatias de pão, duas fatias de queijo, um café e um pudim de baunilha. Engoli tudo de uma vez. Mais tarde, o homem ilimitado trouxe-me bolachas e eu devorei-as de madrugada. Eram boas, acho.

terça-feira, 27 de setembro de 2011

Diálogo com Enfermeira de Branco I - Sede


- Boa tarde, como se sente?
- Bem, obrigada.
- Venho medir-lhe a tensão, está bem?
- Claro... Entretanto, acha que já posso beber água?
- Está com sede?
- Estou.
- Mas ainda não lhe deram nada para beber?
- Não.
- A sério? Deve estar com muita sede, então!
- Sim, estou.
- A operação já foi há muitas horas, não foi?
- Foi.
- Pois, mas agora ainda não pode beber nada, está bem?
- Ai não?!
- Não.
- Ah, pensei que...
- Mais uma horinha, está bem?

A Enfermeira de Branco sai de cena. Rogo-lhe pragas dentro da cabeça.

Passado uma horinha entra em cena novamente. Traz-me uma garrafa de litro e meio selada e um copo. Pousa-os na mesinha ao meu lado e diz-me com o dedinho indicador apontado para o tecto: Não beba muito.
Deito-lhe a língua de fora dentro da cabeça.

Sai de cena outra vez. Eu e a garrafa de litro e meio entreolhamo-nos timidamente.
De seguida apercebo-me de que não vou conseguir abrir a garrafa com nenhuma das mãos: uma está muito ocupada com o soro fisiológico e a outra anda um bocado atrofiada por causa das análises de sangue. Nesse momento ocorreu-me chamar a enfermeira, mas depois cresceram-me tantas coisas na boca, que agarrei a garrafa pelo pescoço e abri-a com os dentes. Matei a sede convulsivamente com um meio-sorriso nos lábios. E depois chamei a Enfermeira de Branco, que me apresentou à Arrastadeira.

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Pós-operatório

Digo-vos uma coisa: Não é mau ser operado ao joelho. Eu, na verdade, até gosto.

Estou em casa há seis dias e um dos momentos mais activos das minhas manhãs consiste em levantar-me da cama, ir até à sala, sentar-me no sofá e pousar a perna direita na cadeira em frente. De resto, as actividades variam consoante o dia: como bolachas, vejo televisão, leio, escrevo, como chocolates, faço Sudoku, vejo um filme, adormeço a ler ou a ver a BBC ou a fazer Sudoku. As pessoas telefonam-me, preocupadas e disponíveis (às vezes, acordam-me). Algumas trazem-me chocolates, flores, queques, livros, sopas, revistas, séries de televisão.

O homem ilimitado cuida muito, esforça-se. Lava a loiça e a roupa, telefona-me do supermercado para saber o que quero jantar, actualiza o computador e o iPad, não quer que me falte nada. Ando a ver várias séries da BBC e já escolhi os filmes que vou ver durante a semana. Na sexta acabei de ler os contos do Kazuo Ishiguro e já vou a meio do Lord of the Flies, a vida avança.

Além disso, apesar de as canadianas serem mal-jeitosas e não condizerem com as minhas saias, até gosto de as passear pela rua, porque as pessoas olham para mim com interesse e compaixão.

Bom, é evidente que nem tudo são rosas: demoro, por exemplo, 15 minutos a ir à casa de banho e só consigo levar uma coisa de cada vez para a mesa-de-jantar, o que é desagradável quando a pessoa tem fome (primeiro o prato de sopa, depois o pão, depois o queijo, depois os talheres), mas também não tenho propriamente pressa de despachar as poucas tarefas que realizo durante o dia.

Admito que também me dói o joelho mas, fora isso, a vida não é nada injusta e eu aturo muito bem esta maleita, porque gosto muito de mimos e, sinceramente, não me apetece nada trabalhar.

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

O meu joelho direito

O meu joelho direito passa a vida a queixar-se. Nunca está contente com o tempo nem com as pessoas, resmunga muito por isto e por aquilo, parece um daqueles homens muito velhos e doentes que estão sempre a lembrar os mais novos que também eles um dia serão muito velhos e doentes.
Eu nunca liguei muito às queixas do meu joelho direito, mas ouvia-as com um dos meus ouvidos e sabia bem do seu mal.
Certo dia (na passada terça-feira, 20 de Setembro), passei o dia e a noite num hospital com tectos baixos e pessoas espadaúdas que vestiam toucas ridículas. Depois de uma breve história que envolveu personagens como a Enfermeira de Branco, o Médico, a Anestesia Geral, o Soro Fisiológico e a Arrastadeira, o meu joelho direito é agora outro: tem três furos no rosto e o dobro do tamanho.
O Médico diz que o meu joelho direito nasceu muito torto e que agora se pôs direito, como um homem bom. (Uma espécie de final feliz.)
Vim para a casa com um joelho direito desconhecido, escondido atrás de um curativo e de um saco de gelo. Já não lhe ouço as queixas de homem velho e doente, porque o meu joelho direito deixou de falar, calou-se para sempre; está para aqui deitado, túrgido e arroxeado como um recém-nascido.
Não gosto muito dos três furinhos.
E sinto-me só.

Saudades do meu homem muito velho e doente.

quinta-feira, 9 de junho de 2011

A Avó

Sétimo dia.

A Avó morreu no dia da Ascensão de Cristo.

Eu estava na Eslovénia, um país de florestas imaginadas, e a notícia passou por mim como um unicórnio branco, um ser desconhecido, irreal, e na minha cabeça morava agora o silêncio estranho de uma casa vazia.

A Avó não morreria nunca.

Eu estava convencida de que a Avó não morreria nunca, de que o seu coração era mais forte do que os outros, porque o coração da Avó era, de facto, mais forte do que os outros.

Primeira verdade: A Avó não foi uma avó para mim.

Sim, foi uma avó para mim, é evidente que foi uma avó para mim. Mas não uma avó como as outras. Não uma avó que me levasse à praia, que me ajeitasse o vestido nos dias de festa, que me desse rebuçados por baixo da mesa, que me ensinasse a tabuada. Não essa avó.

Uma outra avó.

Eu digo Avó e não a minha Avó. Foi a Avó que me ensinou a falar assim.

Dizia-me: Não precisas de dizer o meu pai ou a minha mãe. Toda a gente sabe que o pai e a mãe são o teu pai e a tua mãe.

Uma avó que gostava de falar sobre literatura, sobre língua portuguesa, sobre história e geografia, sobre viagens. Que me oferecia enciclopédias e colecções de contos tradicionais, edições especiais da Peregrinação, d'Os Lusíadas. Apertava o cabelo num carrapito, bebia espumante ao almoço, falava como quem escreve: a sintaxe correcta, um adjectivo inesperado, um advérbio de modo. Frases que eram o essencial. Por vezes até meia frase, meia palavra, meia sílaba.

Para bom entendedor.

Neste 7.º dia, lembro-me de certos dias, de certos episódios, de certas frases.

De uma frase:

Um dia, ainda este ano, acompanhou-me até à porta de sua casa e despediu-se de mim com uma frase. A sua frase não foi: "Boa viagem.", não foi: "Volta sempre.".

A avó não dizia o que os outros dizem.

A sua frase foi: "Continua assim: uma mulher vertical."

Um adjectivo inesperado, meia frase, para bom entendedor. Corria então o mês de Fevereiro e a avó não morreria nunca, porque o seu coração era mais forte do que os outros.

Parti para outra terra com aquele adjectivo inesperado ao colo, não sou grande entendedora. Além de ser torta e não vertical, nesse dia tinha pintado as unhas de cor‑de‑rosa choque, uma cor absurda para uma mulher vertical. Tenho a certeza de que a avó não gostava de cor-de-rosa choque, especialmente nas unhas, ainda que nunca mo tenha dito.

A Avó.

Não era uma avó como as outras. Não era uma pessoa como as outras. Não era um coração como os outros. Dizia uma frase, meia frase, e eu ficava a pensar em adjectivos inesperados, em escritores portugueses, em contos tradicionais.

Morreu no dia da Ascensão de Cristo.
Uma espécie de milagre.

Segunda verdade:
Eu não acredito em Deus. Eu acho que não acredito em Deus.

A Avó sabia disto, ainda que eu nunca lho tenha dito, e celebrou o meu casamento como se eu tivesse casado pela igreja, com toda a fé, toda a comunhão.

Uma outra avó.

Que dizia o essencial. Que nem sempre foi entendida, que nem sempre soube entender. Que via um pouco mais além do que os outros, para lá do cor-de-rosa choque da vida.

Que sabia ser e estar como outros não sabem ser nem estar, como eu não sei ser nem estar, como ninguém sabe.

Escrevi-lhe um postal que nunca chegou a ler. Um postal que dizia pouco para não cansar a vista nem o coração. Um postal na casa vazia.

Eu não vou à missa do sétimo dia, mas é como se fosse.

A Avó morreu no dia da Ascensão de Cristo.
E eu tenho a certeza absoluta de que encontrou o Avô no Céu.

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Dentista

Ontem fui ao dentista. Não me importo de ir ao dentista; tenho dentes fortes. Além disso, o gabinete do meu dentista é espaçoso, tem uma janela ampla com vista para umas árvores grandes. Não sei o nome dessas árvores (não percebo nada de árvores), mas gosto de olhar para elas.
(As pessoas que escrevem deviam perceber de árvores.)
As árvores que vejo do gabinete andam agora de ramos descalços, sem som nem movimento, por causa do Inverno e da crise. Ainda assim, são bonitas. (Há gente que continua bonita apesar do Inverno e da crise. O meu dentista, por exemplo.)
Sento-me na cadeira, olho para as árvores. O dentista conta-me qualquer coisa e entra agora na minha boca escancarada, caminha pelos meus dentes com os seus dedinhos e uns instrumentos de plástico e metal. Fala-me dos malefícios do tártaro, uma história com moral.
Há claramente um outro mundo dentro da minha boca. A propósito disso apercebo-me de que não conheço o céu da minha própria boca.
As árvores descalças devolvem-me uma tristeza boa.
(Não é mau sofrer.)
O dentista diz-me que os meus dentes são fortes, que as minhas gengivas são sensíveis. Que não é saudável ter gengivas sensíveis.
Um dia como os outros, porque o tempo passa e os meus olhos andam pelas árvores como passarinhos. No entanto, subitamente, algo acontece.
Uma mudança resoluta, definitiva, e o dia já não é o mesmo.
Sinto essa mudança na pele, na cabeça. E o dentista também. Desliga imediatamente os seus instrumentos de plástico e metal. Pergunta-me: "É uma canção portuguesa?" e os Madredeus entram-me pelos ouvidos, pelo céu da boca. Não respondo; tenho a boca escancarada assim como os ouvidos, e eu nem gosto dos Madredeus.
As mesmas árvores descalças na rua, o mesmo Inverno, a mesma crise, e o céu é de repente um outro céu, o mundo é um outro mundo, e eu já não quero estar ali, no gabinete do dentista, a ver as árvores descalças. Tenho agora pressa de chegar a casa e saio a correr do gabinete, o casaco por vestir num dia de chuva, onde está o guarda-chuva?
Estou na rua das árvores descalças, mas já não olho para elas, ando num outro lugar como um passarinho, num outro mundo dentro de mim, no céu da minha boca, onde o tempo não passa.
Tenho gengivas sensíveis.
Eis o meu ponto fraco.

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Papel, canetas e escrita

Há várias coisas que me irritam. Uma é passarem-me à frente na fila; outra é ter vontade de escrever (o que implica tempo, espaço e energia) e não ter à mão um pedaço de papel ou uma caneta.
Esta situação irrita-me de tal maneira que se me rebentam na cabeça palavras zombeteiras como bombinhas de Carnaval e eu cerro os olhos e os punhos com muita força, ranjo os dentes. Fico assim durante horas. Nas semanas seguintes, esta irritação de pele fica a morar nos meus dias e nos meus sonhos, é insuportável. Não quero que esta situação se repita, acordo encharcada em suor durante a noite, faço tudo ao meu alcance para que nunca me falte papel nem canetas nem escrita.
(Nada me parece mais importante do que papel, canetas e escrita. É ridículo.)
Durante esse período de prevenção, compro, por exemplo, um caderno de argolas e folhas pautadas ou uma caneta azul Stabilo 0.4, uma esferográfica preta Staedler triplus ball M, uma caneta mais clássica, mais cara, talvez uma Sheaffer maneirinha, um diário de capa dura e folhas lisas, um caderno ainda mais pequeno, muito engraçado, com um elástico à volta para andar na bolsinha mais pequena da mala, uma caneta minúscula para trazer dentro da agenda, uma agenda com páginas em branco no fim, um exemplar amarelo de uma edição especial da Moleskine com o Pac Man, coisas assim. Além disso, colecciono folhas de rascunho no escritório, folhas de rascunho em casa, faço cadernos pequeninos com folhas velhas, compro cadernos reciclados porque são reciclados, uma caneta bonita porque é bonita, uma caneta simples porque é simples, uma lapiseira porque é uma lapiseira.
Por vezes, quando mudo de mala reparo que andava a passear cinco canetas e três cadernos. Reparo também que, durante um período de tempo desconhecido, não utilizei nenhuma das canetas nem nenhum dos cadernos para o efeito devido. Começo, por isso, a desistir das canetas e dos cadernos um a um: este caderno foi ao mercado, esta caneta ficou em casa, esta lapiseira comeu rosbife, e assim por diante.
É evidente que, quando chega a vontade de escrever (o que implica tempo, espaço e energia), não tenho um pedaço de papel na mala nem uma caneta. Volto, pois, a cerrar os olhos e os punhos e a ranger os dentes, ouço as tais bombinhas de Carnaval nos ouvidos, talvez solte um gemido ou um guincho; provavelmente um rugido.
Nos dias piores, tenho papel, mas não caneta. Não há nada mais frustrante do que ter papel e não ter caneta. É como ter um cigarro, mas não um isqueiro nem um fósforo nem um pedaço de madeira seco nem coisa que o valha. Escarafuncho a mala à procura de uma resposta, igual aos maluquinhos que vasculham os caixotes do lixo. A eterna esperança no movimento dos braços, risível como uma bombinha de Carnaval, como uma palavra zombeteira.
A título de exemplo, hoje trago um caderno de folhas lisas na mala e uma caneta, mas não me apetece nada escrever.
A propósito de tudo isto, lembro-me do seguinte: O caderno amarelo com o Pac Man continua à minha espera, deitado na prateleira de baixo da casinha dos livros. No entanto, quando o comprei, há cerca de dois meses, parecia não haver no mundo coisa mais urgente do que comprar um exemplar amarelo da edição especial da Moleskine com o Pac Man. (Não fosse a edição esgotar-se e a oportunidade perder-se para sempre.)
Esta recordação do caderno amarelo irrita-me ainda mais do que não ter papel ou caneta.
É como ter mais olhos que barriga.
Mais fama que proveito.
Mais buracos que um queijo suíço.

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Rapariga com saquinho de pano

O narrador deste texto anda interessado em raparigas muito magras que não sorriem e têm dentro da mala um saquinho de pano que utilizam para ir às compras. Há muitas raparigas assim nesta cidade, por isso o narrador coloca-se estrategicamente na porta de saída do supermercado para as ver passar.
Não precisa de esperar muito tempo, porque já ali vem uma a dobrar a esquina.
Descreve-a no seu bloco de notas: uma certa falta de cadência nas ancas, um rosto desinteressante como um sinal de trânsito.
A rapariga passa pelo narrador e não deixa nenhum rastro, nenhuma pegada, nenhum perfume. Entra agora no supermercado com o mesmo que ar com que entraria numa repartição de finanças, sem especial interesse. Deambula pelos corredores sem olhar para as prateleiras, sabe exactamente o que quer. Tira cinco coisas para o cestinho, não mais, e encaminha-se agora para as caixas. Respeita a fila educadamente, o rosto igual a um sinal de trânsito, o corpo muito magro, exibindo ossos. A alma escondida atrás de tudo isto a fazer não se sabe o quê.
Tira cinco coisas do cesto: um pacote de quatro iogurtes magros, uma alface, um saco transparente com cinco cenouras lá dentro, uma caixinha com três fatias de queijo e uma pasta de dentes. Não fica muito tempo à procura do seu saquinho de compras, sabe exactamente onde está. As cinco coisas cabem perfeitamente no saquinho de pano que traz dentro da mala. Os seus dedinhos mexem-se com sonolência, sem apetite.
Sai do supermercado, ainda o mesmo ar de repartição de finanças.
O narrador deste texto continua a tirar notas, mas está tão interessado nesta rapariga muito magra que acaba de ter uma erecção ao vê-la passar.
Este fenómeno é único, porque nenhum outro homem tem erecções quando vê esta rapariga passar.
Ora, o narrador deste texto é, claramente, muito mais interessante do que a rapariga com saquinho de pano.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Este blogue passa a vida a mudar de look.

1.º leitor – Este blogue passa a vida a mudar de look.
2.º leitor – Pois. É escrito por uma mulher...
1.º leitor – Como é que sabes?
2.º leitor – As mulheres passam a vida a mudar de look!
1.º leitor – Os homens não mudam de look?!
2.º leitor – Mudam, claro. Mas é diferente.
1.º leitor – É diferente?
2.º leitor – Sim. Os homens mudam de look com o tempo. Porque ficam carecas e gordos.
1.º leitor – E as mulheres não mudam de look com o tempo?
2.º leitor – Mudam, claro. Mas, além disso, também mudam de look quando lhes apetece. Dá-lhes pr'aí!
1.º leitor – As mulheres mudam quando lhes apetece?
2.º leitor – Sim.
1.º leitor – Mas isso é fantástico! As mulheres têm super poderes?
2.º leitor – Não. As mulheres têm problemas de identidade.
1.º leitor – As mulheres mudam de look porque têm problemas de identidade?
2.º leitor – Sim.
1.º leitor – E os homens? Não têm problemas de identidade?
2.º leitor – Têm, claro, mas disfarçam mais. Daí não mudarem de look só porque lhes apetece!
1.º leitor – As mulheres mudam de look para exibir os seus problemas de identidade?
2.º leitor – Sim.
1.º leitor – As mulheres gostam de exibir os seus problemas de identidade?
2.º leitor – Sim. Para atraírem os homens!
1.º leitor – Os homens sentem-se atraídos por problemas de identidade?
2.º leitor – Não.
1.º leitor – Então qual é a lógica?
2.º leitor – Nenhuma…
1.º leitor – Isso parece-me tudo muito complicado.
2.º leitor – As mulheres são muito complicadas.
1.º leitor – Porquê?
2. º leitor – Porque têm problemas de identidade.
1.º leitor – Bolas, coitados dos homens…
2.º leitor – Podes crer.
1.º leitor – Este blogue tem problemas de identidade?
2.º leitor – Claro. É escrito por uma mulher...
1.º leitor – Coitadinho do blogue!
2.º leitor – Coitadinhos mas é de nós!