Ontem fui ao dentista. Não me importo de ir ao dentista; tenho dentes fortes. Além disso, o gabinete do meu dentista é espaçoso, tem uma janela ampla com vista para umas árvores grandes. Não sei o nome dessas árvores (não percebo nada de árvores), mas gosto de olhar para elas.
(As pessoas que escrevem deviam perceber de árvores.)
As árvores que vejo do gabinete andam agora de ramos descalços, sem som nem movimento, por causa do Inverno e da crise. Ainda assim, são bonitas. (Há gente que continua bonita apesar do Inverno e da crise. O meu dentista, por exemplo.)
(As pessoas que escrevem deviam perceber de árvores.)
As árvores que vejo do gabinete andam agora de ramos descalços, sem som nem movimento, por causa do Inverno e da crise. Ainda assim, são bonitas. (Há gente que continua bonita apesar do Inverno e da crise. O meu dentista, por exemplo.)
Sento-me na cadeira, olho para as árvores. O dentista conta-me qualquer coisa e entra agora na minha boca escancarada, caminha pelos meus dentes com os seus dedinhos e uns instrumentos de plástico e metal. Fala-me dos malefícios do tártaro, uma história com moral.
Há claramente um outro mundo dentro da minha boca. A propósito disso apercebo-me de que não conheço o céu da minha própria boca.
As árvores descalças devolvem-me uma tristeza boa.
(Não é mau sofrer.)
O dentista diz-me que os meus dentes são fortes, que as minhas gengivas são sensíveis. Que não é saudável ter gengivas sensíveis.
(Não é mau sofrer.)
O dentista diz-me que os meus dentes são fortes, que as minhas gengivas são sensíveis. Que não é saudável ter gengivas sensíveis.
Um dia como os outros, porque o tempo passa e os meus olhos andam pelas árvores como passarinhos. No entanto, subitamente, algo acontece.
Uma mudança resoluta, definitiva, e o dia já não é o mesmo.
Uma mudança resoluta, definitiva, e o dia já não é o mesmo.
Sinto essa mudança na pele, na cabeça. E o dentista também. Desliga imediatamente os seus instrumentos de plástico e metal. Pergunta-me: "É uma canção portuguesa?" e os Madredeus entram-me pelos ouvidos, pelo céu da boca. Não respondo; tenho a boca escancarada assim como os ouvidos, e eu nem gosto dos Madredeus.
As mesmas árvores descalças na rua, o mesmo Inverno, a mesma crise, e o céu é de repente um outro céu, o mundo é um outro mundo, e eu já não quero estar ali, no gabinete do dentista, a ver as árvores descalças. Tenho agora pressa de chegar a casa e saio a correr do gabinete, o casaco por vestir num dia de chuva, onde está o guarda-chuva?
Estou na rua das árvores descalças, mas já não olho para elas, ando num outro lugar como um passarinho, num outro mundo dentro de mim, no céu da minha boca, onde o tempo não passa.
Tenho gengivas sensíveis.
Eis o meu ponto fraco.