quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

2020


 Recapitulando. 

2020: a propagação da maleita e do medo, o tique nervoso do álcool-gel, esta nova aversão ao toque, as ruas desertas, a solidão. Mas também os abraços do Henrique, os meus filhos a pular no sofá, a sensação de mestria quando todos dormem, mais a poesia violenta do Luís Miguel Nava que me beliscou em certas horas.

Tenho pensado muito neste verso dele: “a manhã espanca a praia”.

Não vi a praia uma única vez, mas penso nela todos os dias. Também não vi o mar uma única vez. 

Dei um mergulho num lago artificial. Dei um mergulho num lago a sério. 

Voltei ao trabalho, mas fiquei em casa. Passei a maior parte dos dias na sala de estar, que agora também é o nosso escritório.

O mais novo caiu da cama. O do meio caiu do fraldário. O mais velho caiu da bicicleta.

Nasceu o Desvio, a primeira novela gráfica.

Brexit. Joe Biden. Bielorrússia.

Voltei a ouvir música. Voltei a ouvir podcasts. Voltei a ver séries.

Os mais novos começaram a ir à creche. O mais velho começou a ir à escola.

Toda a gente começou a usar máscaras. Primeiro as de papel. Depois as de tecido.

No início não percebíamos bem as regras. Se podíamos sair de casa, se devíamos usar máscara na rua, se nos podíamos sentar nos bancos de jardim.

Quino. Maradona. Morricone. 

Comprei um blusão branco. Comprei uns ténis vermelhos. Fiz óculos novos.

Fui finalmente ao dentista, que afinal era uma dentista. Os óculos da dentista eram parecidos com os meus óculos novos, mas mais bonitos do que os meus óculos novos.

A explosão em Beirut. Os arco-íris nas janelas. Black lives matter.

Emagreci um bocadinho. Escrevi um bocadinho. Li um bocadinho: Lydia Davis, Vergílio Ferreira, Matilde Campilho.

O mais novo começou a dormir melhor. O mais velho largou as fraldas. O do meio foi picado por uma vespa.

Tive uma crise de costas. Tive uma crise existencial. Tive dores de garganta. Tive febre e tosse e cagufa. Fiz o teste à Covid-19, mas não recebi os resultados. A médica também não. Fiz quarentena na mesma.

Luís Sepúlveda. Sean Connery. Eduardo Lourenço.

Pisei um enorme cocó de cão. Deixei cair as chaves no buraco do elevador. 

Não tomei banho todos os dias. Não dormi uma única noite seguida.

Li Adília Lopes, Ana Hatherly, Adrienne Rich, Annie Ernaux. Reparo agora que os nomes destas mulheres começam todos por A. Acho que não fiz de propósito.

O nosso aspirador deu o berro. A varinha mágica também. A caldeira do prédio também. Passamos uma semana sem elevador. Passei uma semana com o mais novo no hospital.

As manifestações em Hong Kong. Os incêndios na Austrália. 

O mais velho fez três anos. Os mais novos já abrem gavetas. Montámos uma árvore de Natal, que é um pinheirinho todo torto.

2020: um ano para esquecer; um ano para recordar. O tempo avançou muito depressa e também muito devagar; as semanas e os meses passaram a correr, mas os dias (e as noites) nunca mais acabavam. Tudo mudou de repente. E no entanto a sensação que fica é que estamos exatamente onde estávamos há um ano. Como se nada tivesse evoluído. Como se o tempo não tivesse passado. 

E no entanto ele passou. O tempo passa sempre. E nós estamos todos diferentes.

A barriga da Isabel, o sorriso da Kamala Harris, as fotos que a minha mãe me envia com o nascer do sol.

Mais um verso do Luís Miguel Nava: “As imagens saltam em descargas”. 

As horas também, digo eu. Os dias. Os anos.

Estou para aqui toda desgrenhada a olhar para as descargas de luz da nossa árvore de Natal e só quero mais disto. Viver mais.

Amar mais. Dormir mais. Cuidar mais. Ler mais. Escrever mais. 

Tudo mais, por favor. Exceto aquelas coisas que queremos todos muito menos, claro.


2021, puxa-te à calma. Deixa a malta respirar, ó.


(Foto do pinheirinho todo torto em “O gnu e o texugo”, Madalena Matoso)

quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

O Pai Natal existe

 Bom... Se o espírito espanto deixar, hei de comer um Pai Natal de chocolate. Hei de despi-lo à bruta e rasgar-lhe o fato cintilante. Hei de arrancar-lhe a cabeça com uma dentada e espreitar-lhe o crânio oco de ideias. 

Coitado do Pai Natal. Já ninguém acredita nele.

Não me lembro de alguma vez ter escrito uma carta ao Pai Natal. 

Sempre soube que o Pai Natal era o meu pai. Ele sentado à mesa a fumar e a beber whisky, e eu e os meus primos a chamar por ele: “Ó Pai Natal, ó Pai Natal!” 

O meu pai a fazer-nos sofrer com a espera, a inventar desculpas (“Deve estar muito trânsito hoje”). 

Este ano não tenho Natal nem o melhor Pai Natal de todos, mas pela primeira vez escrevi-lhe uma carta. Começa assim: “O Pai Natal existe e é o meu pai.” E é também a minha mãe. Penso nela todos os dias, agradeço-lhe todos os dias. Ser filha não é fácil, mas ser mãe é mais difícil. 

Hei de comer um Pai Natal e pensar na minha mãe, que sempre partiu estes Pais Natais com um só murro e uma só gargalhada. Eu e o meu irmão comíamos os pedaços de chocolate e ríamo-nos à farta do Pai Natal reduzido a cacos. 

Este ano, como toda a gente, não tenho Natal, não tenho a família, mas tenho um Pai Natal de chocolate. 

Hei de dar-lhe um valente murro e comê-lo com fúria e esperança. No fim hei de fazer uma bolinha com o papel de prata.

Não sei porquê, mas adoro essa parte de fazer a bolinha com o papel de prata.



(Na foto um pormenor da montra de Natal de Le Typographe.)

quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

Desvio no Expresso

Puxa! Que exagero!

 "Desvio" é um dos 20 melhores livros do ano, no Expresso!



"A estreia na banda desenhada desta dupla de autores resultou num dos livros deste ano a merecer eternidade.

(...) Dir-se-á que é juvenil, mas o modo como aborda as emoções, a sensação de enfrentamento com o mundo e uma cautela amedrontada perante o futuro fazem dele um livro sem limites."

(Sara Figueiredo Costa)



terça-feira, 22 de dezembro de 2020

Making of do Gnu!

 “Making of” do livro “O Gnu e o Texugo”.


Como é que cheguei a este texto? E como é que a Madalena Matoso chegou aos desenhos?


Das primeiras ideias à saída da gráfica, passando pelos cadernos arejados da Madalena Matoso e começando pelo texto. Assim: “No início pensei num buraco”. É mesmo verdade.


https://www.planetatangerina.com/pt-pt/making-of-do-livro-o-gnu-e-o-texugo-parte-1/?fbclid=IwAR3nKp5VriHfgOkobXuJQNHUCno1-4lfY-F0uL69pzxEStsb9ReB_aG7iBg

quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

Pensar europeiamente

Hoje de manhã, depois de deixar os minorcas na creche, enfiei a máscara no focinho e os auscultadores nos ouvidos, e vim pela rua fora a perscrutar o último episódio do Governo Sombra. 

Logo a abrir o programa, a propósito de uma situação clássica das redes sociais em que uma frase ofensiva é tirada do seu contexto, ouvi o Ricardo Araújo Pereira dizer uma frase que eu também vou tirar do contexto:

“Nós aqui no Governo Sombra temos sido muitas vezes acusados de, em matéria de liberdades de expressão, pensar europeiamente.”

E de seguida discursa sobre a liberdade de expressão, definindo-a como sendo, por um lado, o direito de dizermos "coisas que objetivamente têm o potencial para ofender outras" e, por outro, o direito de as outras pessoas "se sentirem ofendidas”, advertindo logo a seguir que, no espírito dessa mesma liberdade de expressão, as pessoas ofendidas “não têm o direito de não ser ofendidas e também não têm o direito de, por uma interpretação, seja ela correta ou errada, por má fé ou ingenuidade, mandar calar" quem as ofendeu.

Continuei rua fora a auscultar o Governo Sombra enquanto pensava europeiamente que “pensar europeiamente” é de facto isso mesmo. É reconhecer que ninguém manda calar ninguém, que ninguém está acima dos direitos e liberdades do outro. 

Por outras palavras, pensar europeiamente é admitir que somos todos iguais perante a lei. É acreditar nessa igualdade e também na liberdade de expressão e em todos os outros direitos e liberdades que parecem tão evidentes, mas afinal são tão frágeis.

Numa altura em que estamos tão fartos disto tudo e tão cheios de medos e dúvidas, a tentação de ceder à fúria, à repulsa e à divisão é grande. Numa altura em que o mundo inteiro se vê a braços com uma pandemia sem precedentes e um capitalismo indomável, não é demais falar da Europa e de tudo o que ela significa cá dentro e lá fora. A extrema direita é uma ameaça real a tudo o que se construiu na União que, embora imperfeita, é o que há de melhor no mundo.

Hoje faltam-nos os beijos e os abraços, mas não é difícil imaginar um futuro mais ou menos próximo em que nos falte muito mais do que isso: água, comida, produtos de higiene, medicamentos, combustíveis, transportes públicos, oxigénio.

Pensar europeiamente é defender a Europa, e eu cá sou europeia até à medula.

Quero viver num espaço feito de liberdade, solidariedade, diversidade e justiça. Onde todos temos direito à vida, à dignidade, à segurança, à educação. Onde o trabalho infantil, a tortura e a escravidão não são tolerados. Onde temos direitos como trabalhadores, como pacientes, como consumidores, como passageiros, como turistas, como contribuintes, como arguidos. Onde os mais vulneráveis são protegidos: os mais velhos, os mais novos, as pessoas com deficiência. Onde a arte e a ciência são livres. Onde a diversidade cultural e étnica é respeitada. Onde cada um tem a orientação sexual, partidária e religiosa que quiser. Onde nos tribunais todo e qualquer cidadão é considerado inocente até prova em contrário. Onde todos os dias se luta contra a discriminação, o racismo, a xenofobia, a violência. Onde todos os dias se luta pela igualdade, pela sustentabilidade, pelo ambiente. Onde os nossos dados são protegidos. Onde todos nós podemos atuar, acedendo a informação, tomando iniciativa, assinando petições, recorrendo a tribunais, e também elegendo e sendo eleitos.

É verdade que a Europa não é (ainda?) esse espaço de que falei, mas se olharmos para o resto do mundo, a União Europeia é a que está mais próxima dessa realidade.

Pensar europeiamente é partilhar desses valores e é sobretudo defendê-los quando alguém os infringe ou ameaça.

E por isso vos digo que, enquanto eu tiver o direito a eleger, não hei de votar em quem não partilha dos valores europeus. Não hei de votar em quem incita ao ódio e à divisão. Em quem usa a violência verbal  no lugar da diplomacia. Em quem discrimina em vez de acolher. Em quem mete o dedo na ferida e identifica inimigos sem apresentar um único plano de resposta.

Se há coisa que esta pandemia veio demonstrar é que devemos ter um plano. E é este o meu plano: Europa forever.

Claro que há coisas (tantas coisas!) a melhorar. Todos os dias assistimos à miséria, à violência, à imoralidade, à injustiça, à desigualdade, à fraude. Se calhar já vamos tarde para travar as alterações climáticas e o apocalipse.

Mesmo assim. 

Mesmo que isto dê tudo errado e um dia destes não haja água nem comida nem oxigénio para todos, quero ser representada por alguém que opte pela cooperação e pelo diálogo.

Acredito numa mudança construtiva. Acredito que, em vez da fúria e do ataque, precisamos de ponderação. Acredito numa mudança positiva feita por cada um de nós. Quando pensamos nas consequências políticas, económicas, sociais e ambientais das nossas escolhas. Quando optamos por certos serviços e produtos, quando resistimos ao facilitismo, ao consumismo, ao populismo. Quando lemos, questionamos, elegemos e exigimos.



Tenho sempre a sensação de que não sabemos muito sobre a União Europeia. Não acompanhamos o dia a dia nem sequer os grandes feitos. Somos tão autocríticos e europeus, que nem falamos das nossas conquistas.

Mas ao contrário do que pensamos, com todos os solavancos e incoerências, indícios de corrupção e indecência, a Europa tem avançado na boa direção. Só em 2020 foram assinados vários contratos para a aquisição de dois mil milhões de doses de uma potencial vacina contra o coronavírus; foi apresentado um pacto ecológico que pretende, entre muitas outras coisas, tornar o nosso sistema alimentar sustentável e eliminar completamente as emissões de gases com efeito de estufa até 2050; está a ser negociada uma diretiva que tenciona assegurar salários mínimos adequados para todos os trabalhadores europeus; foram aprovados vários documentos estratégicos sobre igualdade de género, migração e asilo, e luta contra o racismo; e provavelmente não estou a referir realizações tão ou mais importantes porque não acompanho assim muito a máquina europeia.

Bem sei que a Europa é lenta e burocrática. Mas quando falamos, por exemplo, de um instrumento de recuperação na ordem dos 700 mil milhões de euros para relançar a economia depois do vírus, é difícil pensar num acordo que não envolva muitas conversações e muita papelada.

O planeta é a prova concreta de que a vida não é uma corrida de velocidade, é um trabalho de resistência.

Há coisas vergonhosas a passarem-se na Europa. No mar Mediterrâneo, na Hungria, na Polónia, em todo o lado.

Mas quem vai gerar a mudança não são são os extremistas e arruaceiros. São os que resistem, os que acreditam, os que cooperam.

Os que pensam europeiamente.

segunda-feira, 30 de novembro de 2020

O gnu e o texugo na Prateleira de Baixo

“O gnu e o texugo” passaram na Prateleira-de-baixo e foram muito bem recebidos. Texto mui generoso e pessoal de Sara Amado.





“É uma história sobre identidade, amizade e liberdade. Uma história que chega ao fim, a meio do livro, para recomeçar baralhada: no texto, nas ilustrações, na paginação e no lettering. E a fazer sentido, na mesma.

E é uma brincadeira. Só isso. Porque é mesmo preciso brincar, experimentar, baralhar para dar de novo, para dar novo!

É urgente brincar. Nestes tempos sombrios, uma boa rabanada de vento pode bem servir para nos fazer olhar tudo (tudo o que temos agora, porque desta não nos safamos...) de maneira diferente.”


Texto completo aqui:

 https://www.prateleiradebaixo.com/2020/11/theres-more-to-you-than-meets-eye.html?fbclid=IwAR01niOfP6AKpIns9oFv4zlUM4zX1So7ABzID2-SH3k3H8grK1T8-HmYL1M&m=1#.X7-LGar7SJQ

sexta-feira, 27 de novembro de 2020

O Daniel é um carrossel

Tem quase um metro de altura. Tem olhos grandes. Pés grandes. Um cabeção. Um vozeirão.

Gosta de leite com cereais. Pão com manteiga. Arroz com ervilhas.

Tem um trator verde. Uma escavadora amarela. Uns ténis azuis. 


Já não usa fralda. Já não lambe o espelho. Calça os sapatos sozinho. Veste o casaco, põe a mochila às costas.


Dorme com chucha e com um macaquinho. Dorme a noite inteira.


Gosta de livros. Gosta de carros. Gosta de bigodes.


Vai à escola. Vai ao parque. Vai ao mercado.


Gosta de andar no carrossel. Gosta do senhor do acordeão. Gosta de batata frita.


Adora buracos. Aponta para os aviões. Aponta para as bandeiras.


Diz: “O piano não é flauta.”

“O morango não tem caroço.”

“O sol não tem pneus.”


Tem uma certa tendência para bronquites. Tem uma certa obsessão por comboios. Carris, pantógrafo, locomotiva, TGV.




Partiu um dente. Não sabemos como.


Quando ouve música, identifica os instrumentos. Guitarra, bateria, harmónica, trompete. Gosta de Dire Straits. De Rádio Macau. De Glenn Miller. 


Salta do sofá para o chão. Corre pela casa. Entorta os olhos.


Faz cambalhotas. Faz grandes birras. Faz festinhas no meu cabelo.


Tem uma preferência óbvia pelo pai. Tem ciúmes dos irmãos. Bate-lhes. Abraça-os. Empurra-os. Grita com eles. Ri-se com eles. Imita-os. Chama-os.

Atira-se para o chão. Diz: “Mamã, o Daniel é pequenino.” Pego nele. Embalo-o como se fosse um bebé.


Pede para ligar aos avós. Pede para ligar aos tios.


Gosta de ver passar o camião do lixo, o camião dos bombeiros, o carro da polícia, a ambulância.


Gosta de tudo o que gira e roda. O carrossel. A roda gigante. Os volantes. As tampas com rosca. A máquina de lavar roupa, a hélice do helicóptero, o moinho de vento, o gira-discos, o pião, o escorredor de salada, os frangos no espeto, as rodas dos carros, as ventoinhas, os bonequinhos da caixa de música. 


Gosta de girar como as coisas que giram. 

No outro dia disse: “O Daniel é um carrossel”. E girou, girou, girou. Depois parou. Disse: “O carrossel está tonto.”


Anda por aqui há três anos. A girar, a girar, a girar.

Às vezes parece muito crescido. Às vezes parece muito pequenino. 


Andamos neste amor há muito tempo. Há pouco tempo. A girar, a girar, a girar. Para todo o sempre. E eu sinto-me muito tonta e muito crescida. E também muito pequenina.

quarta-feira, 25 de novembro de 2020

Gosto, logo existo


Agora que o ano chega ao fim eis que veio à tona um livro fenomenal que tem a despretensiosa intenção de nos salvar a todos.

É um livro sobre este mundo cheio de mundos dentro, sobre as histórias dentro destes mundos e sobre as pessoas que contam as histórias destes mundos. É um livro sobre o jornalismo, sobre a Internet, sobre os algoritmos, as notícias. Sobre a nossa pegada digital, sobre telemóveis inteligentes, boatos, teorias, opiniões, bolhas, emojis, likes. E também sobre desinformação, pensamento crítico, liberdade, privacidade e este misterioso vício de estarmos sempre ligados sem nunca sabermos o que está em causa.

No fundo é um livro sobre a nossa demanda constante de verdade.


É um livro que nos apresenta números também: anualmente vendem-se mil e 200 milhões de smartphones; todos os dias são lançadas 3 mil milhões de pesquisas no Google; no Instagram publicam-se mil fotografias por segundo; as crianças e os jovens portugueses passam cerca de 3 horas por dia na Internet.

Como se fala sobre tudo isto, que é tão maior do que nós? Em particular, como é que se fala disto aos mais novos, que já nasceram no berço das redes sociais?

Eu cá não sei.

Quando este livro era apenas uma ideia, achei que se tratava de uma missão impossível.

Felizmente a editora e visionária Isabel Minhós Martins consegue vislumbrar, acreditar, fomentar e inspirar. 

Com o seu apoio e entusiasmo, a incrível jornalista Isabel Meira, pessoa que eu admiro até aos confins da verdade e da amizade, escreveu este livro inacreditável.


Para já, é um livro lindo de morrer e viver, com design gráfico e ilustrações do Bernardo P. Carvalho. E é uma leitura que vai encantar toda a gente: os mais novos, os mais velhos, os que fazem likes, os que fazem perguntas, os que não fazem nada, os que já viram tudo e os outros todos também.

É um livro que vai dar que pensar e falar. Que vai pôr isto tudo a mexer. Que nos pode ajudar a dar um passo em frente ou então um passo atrás. Que pode fazer de nós todos pensadores e ativistas. E que pode, portanto, transformar o mundo.

Lá para o fim do livro, na nota biográfica, a Isabel Meira é apresentada como alguém que gosta mais de perguntas do que de respostas. 

O livro está de facto cheio de perguntas. Gosto em especial de uma pergunta que aparece lá para o meio: Pensas que sabes pensar? E gosto ainda mais de uma outra pergunta que aparece no finalzinho:

Em que mundo queres viver?

Se querem pensar sobre isto, leiam este livro. 

Estou só a avisar.


(Roubei estas fotos ao Planeta Tangerina.)

Tudo sobre o livro: https://www.planetatangerina.com/pt-pt/loja/gosto-logo-existo/?fbclid=IwAR1S73TH0m9DJR5Bd8jGHVnrRl-cgVOvyEYujvc0pXXTsNXYtiMADPAksOM

quarta-feira, 11 de novembro de 2020

Notas sobre livros, livrarias e outras coisas essenciais

Na Bélgica estamos confinadinhos desde o início de novembro. O teletrabalho passou a ser obrigatório. O uso de máscara também. À noite ficamos fechados em casa e não podemos receber visitas. Os restaurantes e os cafés estão fechados, os cabeleireiros estão fechados. As lojas “não essenciais” estão fechadas. Sapatarias, perfumarias, lojas de decoração, lojas de fotografia: tudo fechado. Neste cenário, seria previsível que as livrarias fechassem também. 

Pois, o que há de essencial na literatura? Nada. 

Felizmente o governo belga decidiu considerar as livrarias “essenciais” para apoiar o setor e levantar a moral das pessoas. As chocolatarias e as cervejarias estão fechadas. Mas as livrarias cá estarão de portas abertas para salvar os nossos dias.

Ler durante o confinamento é essencial. Fugir deste silêncio, imaginar outras vidas, mergulhar num poema: essencial. De repente, quando precisamos de inspiração, apercebemo-nos da importância dos livros e das casas onde moram os livros.

Vou com regularidade às livrarias do bairro arejar a psique. Às vezes vejo só a vitrine. Mas quase sempre entro. Quase sempre compro qualquer coisa. Um livro para os bebés, uma BD para o mais velho, uma novela gráfica para mim.

Muitos portugueses aqui em Bruxelas me perguntam como e onde compro livros portugueses. A verdade é que não posso ir às livrarias em Portugal. Por mais essenciais que elas sejam: eu estou aqui e elas acolá.

Há sempre La petite portugaise, a livraria portuguesa em Bruxelas, com quem falho continuamente porque nunca lá vou. Há também a livraria europeia Librebook - Bruxelles, onde também nunca ponho os pés. Vou arder no inferno.

A verdade é que, ao longe ou ao perto, é muito mais fácil comprar tudo através de um clique. Sobretudo nas grandes cadeias de livrarias ou nas livrarias online, que até já conhecem os nossos hábitos de leitura e o número do nosso cartão de crédito. Além disso, passam a vida a oferecer-nos coisas: descontos imbatíveis, entregas gratuitas, cartões de fidelidade, cupões, pontos, livros, etc.

Reconheço a utilidade de comprar tudo através de um clique, mas também nos cabe a nós - leitores, clientes, consumidores, cidadãos do mundo - fazermos um outro clique. 

Que tipo de serviço queremos? Será que queremos realmente ser um nome de utilizador e uma palavra-passe? Será que queremos viver de facto sentados em frente a um ecrã? Será que os descontos, os pontos e os cupões servem realmente o nosso interesse? Será que queremos contribuir para que os maiores fiquem cada vez maiores? O que acontecerá aos mais pequenos? O que acontecerá ao serviço de cliente? O que acontecerá às livrarias de bairro? E aos livreiros? O que acontecerá àqueles livros que não são os mais aguardados ou procurados ou destacados? O que acontecerá aos autores que não são tão célebres ou comerciais? O que acontecerá aos editores que arriscam em projetos alternativos? O que acontecerá à oferta de livros?

Porque acredito na diversificação e porque gosto de projetos de autor, de livros com tiragens pequenas, de nichos literários, de editoras com tomates, de autores-artistas, porque quero ter acesso a tudo o que vende e rende mas também a tudo o que surpreende e transcende, não quero ceder às grandes cadeias e livrarias online. Falho continuamente com livrarias e editoras em que acredito, mas esforço-me por melhorar e cumprir.

Em Portugal ou no estrangeiro é possível ir ao encontro das livrarias independentes. Podemos sempre escolher a nossa livraria de eleição. Há também uma rede que representa as livrarias independentes: RELI - Rede de Livrarias Independentes.

Há livrarias para todos os gostos e feitios. Adotem uma ou duas ou três.

Muitas vezes encomendo diretamente às editoras. Algumas editoras têm lojas online bastante fáceis de usar. Outras nem por isso. Umas só aceitam pay pal, outras só enviam os livros depois de receberem comprovativo de pagamento.

É chato, claro. Cabe-nos a nós - leitores, clientes, consumidores, cidadãos do mundo - exigir às livrarias e editoras que se atualizem. Mas entrementes o esforço de usarmos os seus serviços não é apenas louvável. É essencial. Para salvar este setor e também a nossa alma.

Se não queremos que as livrarias e as editoras fechem as portas, então não podemos ficar à porta.

Agora que vem aí o Natal e vós quererdes oferecer livros para cacete, temos de fazer esse esforço (e esse clique).

Interrompo este desabafo para puxar a brasa à minha tangerina: Planeta Tangerina. Portes grátis para compras acima dos 30 euros e livros que são uma maravilha. Vão lá ver. E nem estou a falar dos meus. O que tinha a receber em direitos de autor recebi no adiantamento, independentemente de os livros resultarem. E para que não haja equívocos: o que recebo em direitos de autor não dá sequer para pagar as contas de um mês. É mesmo verdade. Nunca hei de viver dos livros. Escrevo por paixão. Leio por paixão. Compro livros por paixão. Na época em que trabalhei numa livraria ficava a dever dinheiro aos patrões porque gastava tudo em livros.

Obrigada à Bélgica por manter as livrarias abertas.

Obrigada aos livreiros que estão nas livrarias.

Obrigada ao Planeta Tangerina por ser uma editora que arrisca.

Obrigada a vocês por lerem estes meus desabafos.

E já agora, obrigada às pessoas que elegeram o Joe Biden.

E obrigada também àquele pessoal que descobriu uma vacina contra a maleita. 

Viva a ciência, viva a democracia, viva a literatura! Ho ho ho!

Isto está tudo ligado. Não parece, mas está. Ler, procurar, investigar, estudar, apoiar, votar. 

Vem aí o inverno. Agasalhem-se. Comprem livros. Leiam. Desabafem. 

Desculpem lá. Estou um bocado chata hoje.

(Para ilustrar este post fui buscar esta foto da Filigranes Corner)



segunda-feira, 9 de novembro de 2020

sexta-feira, 6 de novembro de 2020

O primeiro gnu

Mais de um milhão de gnus migram anualmente nos ecossistemas da Tanzânia e do Quénia em busca de água e alimento. É uma migração circular, que nunca acaba. Todos os anos, percorrem mais de 3 mil quilómetros e atravessam vários rios, ao ritmo das chuvas e das pastagens. Li algures que todos os anos morrem nestas travessias mais de 6 mil gnus. O rio Mara, por exemplo, é bastante largo, fundo e rochoso. Muitos gnus são atacados por crocodilos ou morrem afogados. 

Um dia assisti a uma destas travessias do rio Mara. Foi das coisas mais incríveis que vi em toda a minha vida. É preciso imaginá-los: milhares de gnus com os seus chifres colossais e as suas pernas longas. Estão do lado de lá do rio, por isso vemo-los de frente.

São horas de espera e hesitação. 

Por vezes um deles aproxima-se da margem, mas logo se retrai. Olha para a água e avista talvez o perigo ou então o seu reflexo assustado, por isso perde a coragem. Em determinados momentos os gnus parecem não saber já qual a direção que devem seguir e ficam por ali à deriva. Depois lá se concentram novamente e avançam devagar até à margem. Olham em frente com determinação e parecem animados com a ideia de seguir o seu caminho. Mas logo um se assusta e volta para trás, e o grande coletivo de gnus perde mais uma vez o rumo.

Passadas horas, a tensão é grande. Estão parados e silenciosos, mas não estão sossegados. Sentimos a sua aflição precisamente nessa falta de movimento e de som.

E de repente, num ato de coragem e loucura, o primeiro gnu salta para a água e logo a seguir o segundo, o terceiro e todos os que ali estão. Milhares. Correm o mais rápido que conseguem e depois nadam. A certa altura só vemos as cabeças dos gnus na zona mais funda do rio. Vemo-los depois já deste lado, molhados, assustados, exaustos. Seguem atrás uns dos outros e ao lado uns dos outros, mas também uns em cima dos outros e uns contra os outros. 

Quando passam por nós, que os observamos dentro de um jeep, sentimos o seu medo e também a sua fúria. Lembro-me do som daquelas patas contra o rio, contra as rochas, contra a terra, o som dos corpos musculados a roçarem uns nos outros, o som da respiração acelerada. Alguns voltam para trás à procura dos seus. Outros abrandam o passo para que os mais novos os acompanhem. Mas avançam sempre.

Ao longe são uma manada possante e organizada, mas ao perto são uma amálgama de corpos desordenados, sozinhos e desesperados. Sabem que nem todos chegarão ao lado de cá, que ninguém ficará para trás a cuidar deles e por isso sentem pavor, mas também ânsia e urgência. Não podem ficar à mercê dos predadores, não podem voltar para onde estavam. A única solução é seguir em frente e procurar novas pastagens.

Quando escrevi esta história sobre os que são levados e trazidos pelo vento, não resisti a nela incluir um gnu. 

É o meu tributo a todos os animais migratórios ou migrantes, incluindo os seres humanos que, na maior parte das vezes, mesmo quando chegam a territórios ditos civilizados, não são recebidos com a delicadeza que merecem. 

Com mais ou menos educação, com mais ou menos vegetação, o mundo continua a ser para demasiadas pessoas uma autêntica selva.

O livro não fala sobre isto. Nem sequer fala de pessoas. Mas foi em tudo isto que pensei quando escrevi “O gnu e o texugo”.

Venham daí novos ventos. Novos tempos. Novas vontades.


(Ilustração da magnífica Madalena Matoso para “O gnu e o texugo”)

quinta-feira, 5 de novembro de 2020

O gnu e o texugo

Faço votos por que venha aí um vento de mudança. Para já, levem lá com este livro, que é todo ele uma rajada.

https://www.planetatangerina.com/pt-pt/loja/o-gnu-e-o-texugo/

Eis uma história que andou às voltas e às voltas e ficou toda baralhada. Primeiro é um gnu que vai com o vento, depois é um texugo e lá pelo meio é o próprio livro que vai pelos ares.

Numa altura em que estamos todos a precisar de mudar de ares e de dar um abraço a quem vai e vem, espero sinceramente que este livro traga com ele um sopro de esperança e humor.



domingo, 1 de novembro de 2020

Sean Connery

 Uma vez perguntei a uma amiga búlgara se, na sua infância, também via o 007. 

Ela olhou para mim em choque: “Claro que não. O James Bond era o inimigo!” 

Nesse momento apercebi-me de uma forma bastante óbvia de que estamos sempre de um lado da história e que esse lado implica forçosamente a existência de pelo menos um outro lado. 

No meu mundo, o 007 será sempre o herói.

Vi e revi com o meu irmão e com os meus pais muitos filmes do James Bond, sobretudo os que tinham o escocês ao serviço de Sua Majestade. 

Sean Connery será sempre o pai do Indiana Jones, o frade detetive em “O Nome da Rosa”, mas acima de tudo o 007.

De todos os filmes gosto em particular do Doctor No por causa daquela ilha misteriosa. O meu pai também gosta do Doctor No, mas é por causa da Ursula Andress. Inesquecível aquele encontro na praia, ela a cantar “Underneath the mango tree”.




Morreu um dos meus heróis. Espero que ele esteja algures nesse além desconhecido ao som de uma bela banda sonora, deitado com a sua elegância eterna à sombra de uma árvore qualquer.

quinta-feira, 29 de outubro de 2020

Nunca podíamos ser

(Texto que apresentei ao concurso Jovem Criador de Aveiro em 2010)


Nunca podíamos ser treze à mesa por causa da tia Lúcia, que chorava muito quando o fumo lhe entrava para os olhos, um fumo denso e triste como o fumo da chaminé do crematório, a mão sempre próxima da boca, uma mão translúcida e esguia, o cigarro apontado para cima como a chaminé do crematório e a cinza caindo no chão da cozinha, no colo, em qualquer lado, os meus olhos apontados para cima como os cigarros da tia Lúcia e o avô a subir como uma nuvem, como um vulto, como uma pessoa de verdade, enquanto os amigos de África contavam histórias de África, o elefante que destruiu as acácias, o tio Paulo que desenhou as estradas, a gazela que lambeu a prima Rita, os amigos de África a rir das histórias de África, da vida em África, de costas para o avô que subia para o céu como um milagre, histórias de África que eu não ouvia porque não queria saber de África, os olhos vermelhos do choro, um choro calado como se fosse outra coisa, o rosto da tia Lúcia a reflectir o brilho dos tachos e dos azulejos, eu na porta da cozinha com os pratos das crianças, os talheres empilhados, o peso de todas as coisas nos braços, sem saber o que dizer, sem nunca saber o que dizer, e a tia Lúcia chorando por causa do fumo que subia como uma nuvem, como um vulto, como uma pessoa de verdade, e nunca podíamos ser treze à mesa, por isso eu ficava na mesa das crianças, apesar de já não ser criança, apesar de nunca ter sido criança, porque nasci velhíssima num corpo pequenino, um talento natural para ser velha e decrépita como a bruxa má, os outros primos minúsculos, a emporcalharem a mesa, a esborracharem o esparguete com os dedos e os pais esquecidos deles, entretidos com a comida e com as conversas da mesa de jantar, com as histórias de África, o avô abrindo os braços no topo da mesa como o Cristo Rei, enorme como o Cristo Rei, iluminado como o Cristo Rei, e eu faço a Avenida da Marginal às cinco da manhã e vejo o Cristo Rei a ver-me, o Cristo Rei sabendo tudo, compreendendo tudo, perdoando tudo, e eu nunca visitei o Cristo Rei, nem mesmo na época em que acreditava em Deus e noutras personagens do género, o Cristo Rei de braços abertos para mim e eu penso nisso, em como nunca vi Lisboa na perspectiva do Cristo Rei, em como nunca vi a mesa de jantar na perspectiva do avô, os filhos, as noras, os genros, os netos, a família enfileirada como soldadinhos de chumbo e a avó de perfil, o carrapito ruivo sempre tão composto, as mãos alinhando os copos como se alinhassem outra coisa, a garrafa de espumante logo ali e o centro de mesa da tia Clara, sempre os centros de mesa da tia Clara, o filho mais velho logo atrás, no outro topo da mesa, penteando a barba como quem pensa numa coisa abstracta, tão calado, tão introspectivo, o mistério de não se conhecer os próprios filhos, o neto mais velho à sua esquerda, que vem de mota para poder fugir sozinho, um sorriso feiíssimo por causa dos dentes afastados, igual ao da tia Lúcia, e a segunda neta ao lado do filho mais velho, a mais querida de entre os netos, um talento natural para a arte, adejando a cabeça como um pássaro, um nariz prolongado como o bico de um pássaro, as suas mãozinhas como asas, iguais às da mãe, e a seguir o genro de óculos quadrados, com cara de apresentador de telejornal, com cara de quem lê o suplemento de economia dos jornais e bebe um sumo de laranja todos os dias, com cara de quem cuida das sobrancelhas e corta os bifinhos das suas crianças, mas é mentira, porque quem corta os bifinhos das crianças sou eu, os joelhos contra o tampo da mesa, as costas dobradas e o rabo espetado para a mesa de jantar onde se fala sobre a responsabilidade dos bancos pela crise financeira, o tio Jorge soltando uma gargalhada qualquer, uma gargalhada ridícula, isolada, como se ele fosse a plateia e os outros o circo, como se ele fosse o circo e os outros a plateia, o avô exaltado com os comentários da filha mais nova sobre o Estado, uma comunista disfarçada de outra coisa, que se senta ao colo do marido como se fosse sua filha, e eu na mesa das crianças como se fosse criança, cortando os bifinhos dos primos minúsculos como se cortasse outra coisa, ralhando com o Bernardo que esborracha o esparguete com os dedos, e isto porque nunca podíamos ser treze à mesa e eu vinha precisamente em décimo terceiro lugar na família, apesar de ser a mais antiga de todos, a mais decrépita, ainda mais do que o avô, que é o primeiro, o primeiríssimo, o anterior, o fundamental, e agora o avô está morto e não há um princípio para os dias, o avô está morto e eu não vou ser a primeira neta, vou ser a última neta a chegar, faço agora mesmo a Avenida da Marginal e não sinto propriamente pressa, não sinto propriamente dor, penso na mesa de jantar que nunca mais será a mesma, uma mesa sem voz nem corpo, uma ausência que é maior do que a noite mais demorada, uma noite densa e triste como uma nuvem, como um vulto, como uma pessoa de verdade, eu na cama de baixo e a Joana na cama de cima, a sua vozinha sussurrando a história da bruxa má que vive no sotão e enfia criancinhas num saco de pano para depois as comer ao jantar, a Joana na cama de cima, a sombra da sua cabeça ao contrário, a sombra dos seus cabelos ao contrário, e eu escondida nos lençóis da cama de baixo, com medo da bruxa má, com medo da Joana, com medo do avô, com medo da morte e da noite, o escritório do avô repleto de desenhos da Joana, um coração às pintinhas, um monte com casas, uma árvore de ramos compridíssimos, uma girafa, a avó e o avô de mão dada, um talento natural para me tirar o sono, os filhos, as noras, os genros, os netos, a família enfileirada como os soldadinhos de chumbo que o Francisco herdou do tio António, os soldadinhos de chumbo que eu atirei da janela da salinha do piano para ver se se partiam, só para ver se se partiam, e a avó puxou-me a orelha, chamou-me menina raposa e eu chorei muito, não por causa do puxão de orelhas mas por causa do nome, porque eu não era uma menina nem uma raposa, mas a partir desse dia fui sempre a menina raposa, até mesmo para o avô, que se dirigiu a mim uma vez na vida, que me fez apenas uma pergunta na vida, uma única pergunta na vida e quando a fez, sorriu-me como nunca mais sorriu e chamou-me menina raposa, o avô, uma ausência maior do que a noite, a discursar sobre os pretos que vagueiam na savana como animais, sobre os pretos que são selvagens e indisciplinados como animais, os braços abertos, igual ao Cristo Rei, e a família abençoada a comer a sopa, uma boa família que leva os pratos vazios para a cozinha, onde a tia Lúcia fuma cigarros intermináveis e chora muito por causa do fumo que lhe entra para os olhos, um fumo denso e triste que parece uma nuvem, um vulto, uma pessoa de verdade, o peso de todas as coisas nos braços e eu velhíssima num corpo pequeno, a pensar na Magda, perguntando à mãe se a Magda era selvagem e indisciplinada como um animal, sem saber se a Magda era um animal e a mãe ao volante, as costas sempre tão direitas, o rosto tão sério, Não dês ouvidos a tudo o que o avô diz, e eu obediente como um soldadinho de chumbo, aliviada como uma nuvem, como um vulto, como uma pessoa de verdade, porque eu gostava muito da Magda e não queria que a Magda fosse um animal, não queria que a Magda fosse selvagem e indisciplinada, queria que a Magda fosse a minha melhor amiga, mas a Magda nunca foi a minha melhor amiga, porque quando a mãe me perguntou Quantos meninos da tua sala queres convidar para a tua festa de anos, eu disse sete e devia ter dito oito, mas nessa altura eu era pequeníssima, ainda que não fosse criança, e tinha medo que o avô me repreendesse por ter uma amiga preta, que o avô repreendesse a Magda por ela ser preta, que a bruxa má enfiasse a Magda no saco de pano e a atirasse para dentro do caldeirão por ela ser preta, de maneira que eu não convidei a Magda para a minha festa de anos, a tal festa de anos em que recebi a Barbie Western, a mais linda de todas as Barbies, um casaco cor-de-rosa com franjas, um chapéu de abas largas e umas botas pelo joelho, uma Barbie que era a namorada do Lucky Luke e não do Ken, que não era uma menina, que andava a cavalo e cuspia para o chão e eu já não sei quem me ofereceu a Barbie Western, faço a Avenida da Marginal às cindo da manhã e é na Barbie Western que penso, na mais linda de todas as Barbies, a Joana a correr pelo jardim com o braço no ar, a Barbie Western na sua mão que era uma asa, a Barbie Western apontando para cima como os cigarros da tia Lúcia, como a chaminé do crematório, e a Joana correndo sempre, rindo de mim como se eu fosse o circo, como se eu fosse o elefante que destruiu as acácias, como se eu fosse a gazela que lambeu a prima Rita, as tais histórias de África, tão incríveis que parecem uma coisa abstracta, tão sonhadas que parecem nuvens, tão repetidas que parecem reais, a colecção de elefantes da mãe, interminável como os cigarros da tia Lúcia, elefantes de porcelana, de vidro, de madeira, de arame, de marfim, de cobre, de esmalte, de pasta de papel, a tromba para cima, a tromba para baixo, a tromba enrolada, a tromba na boca, os elefantes enfileirados no quarto da mãe como soldadinhos de chumbo e a mãe sentada na cama, os cabelos revoltos como os da bruxa má, a perguntar-me Este ano queres ir para o karaté e eu sem saber o que dizer, sem nunca saber o que dizer, a mãe insistente, apresentando argumentos, que o clube de karaté era mesmo ali em baixo, que o clube de karaté saía mais barato do que o ballet, que devia aprender a defender-me dos homens, porque eram todos uns filhos da puta, e eu contente da vida, de súbito contente da vida, porque andava farta do ballet e gostava de bater nos rapazes, de maneira que nesse ano fui para o karaté e não para o ballet e no ano seguinte também e no seguinte também e fui cinturão branco, cinturão amarelo, cinturão laranja, cinturão verde, e batia nos rapazes como um rapaz e não como uma menina, dava-lhes pontapés nas costas e socos no estômago, e certo dia a irmã da catequese chamou a mãe à escola porque eu tinha dado um pontapé nos tomates do Miguel e ele nem foi ao recreio no intervalo por causa das dores, a irmã dizia testículos e a mãe muito séria, as costas muito direitas, um assunto tão grave, mas quando a mãe entrou no carro riu à gargalhada como se eu fosse o circo, como se eu fosse uma história de África, e nunca me ralhou por eu ter dado um pontapé nos tomates do Miguel, a família enfileirada como soldadinhos de chumbo, comendo a sopa como elefantes, o mistério de não se conhecer os próprios filhos, uma nora correctíssima, os centros de mesa impecáveis, um centro com pedrinhas, outro centro com areia, outro com velas, outro com pinhas, um centro diferente para cada almoço, a mais querida de entre as noras e a Joana igualzinha à mãe, um talento natural para a arte, as suas mãozinhas como asas, a avó na salinha do piano, as mãos alinhando paninhos como se alinhassem outra coisa, pronta para me ouvir tocar piano e eu com medo do piano, convencida de que o piano traía as minhas mãos, convencida de que o piano não tocava o que eu lhe pedia, de maneira que parei de tocar e disse O piano não toca o que eu lhe digo e a avó riu-se como se eu fosse o circo, como se eu fosse a plateia, chamou-me menina raposa, e eu não era uma menina nem uma raposa, sabia tocar piano, era a melhor a tocar piano, eu sozinha no palco da escola, com uma saia de pregas e uma blusa de malha, e não com um vestido, nunca com um vestido, porque não havia vestidos para mim nas lojas de roupa para criança, uma vez que eu não era uma criança, não era uma menina, tinha nascido velhíssima, era a mais antiga, a mais decrépita, e a professora de música elogiava as minhas mãos, a avó rindo de mim como se eu fosse o circo, como se eu fosse a plateia e eu sozinha no palco, ridícula e isolada como uma gargalhada do tio Jorge, o avô a sorrir para mim como nunca mais sorriu, a pergunta que nunca mais perguntou, a única pergunta, O que queres ser quando fores grande, menina raposa, e eu sabendo tudo, compreendendo tudo, perdoando tudo, disse Karateca, e o avô já sem sorriso, sem entender, sugerindo Arquitecta e eu, Não, não, karateca, o avô muito sério, um assunto tão grave, um perfil igual ao da mãe, falando sobre a importância do esforço e já não era para mim que falava, era para a mãe, que o karaté não era profissão, que o karaté não dava dinheiro a ninguém, que o karaté não era desporto para meninas, mas eu não era uma menina, não era uma raposa, a mãe ao volante, séria como um centro de mesa, as costas sempre tão direitas, Não dês ouvidos a tudo o que o avô diz, e eu obediente como um soldadinho de chumbo, aliviada como uma nuvem, como um vulto, como uma pessoa de verdade, porque do que eu mais gostava era de bater nos rapazes, a irmã da catequese a perguntar-me se eu ia à missa aos domingos e eu sem saber o que dizer, sem nunca saber o que dizer, porque aos domingos almoçava com o pai e os almoços com o pai eram mais sagrados do que as outras coisas, porque eu gostava mais de almoçar com o pai aos domingos do que bater nos rapazes em todos os outros dias da semana, o jipe do pai lá fora e eu correndo para ele, o pai a rir de qualquer coisa, sempre a rir de qualquer coisa, e eu exaltada, com uma pergunta no colo, uma pergunta por dentro, pesada como os pratos das crianças, os talheres empilhados, Queres ir à missa, pai, e o pai a interromper o riso, um silêncio que era uma nuvem, um vulto, uma pessoa de verdade, e depois uma gargalhada que afinal não era bem uma gargalhada, era um latido, um guincho, um grasno, o pai preocupado, de súbito preocupado, um assunto tão grave, explicando-me que as freiras do colégio iam à missa porque não tinham nada para fazer aos domingos, dizendo freiras e não irmãs, que as freiras do colégio não tinham família, que as freiras do colégio eram tão feias que nenhum homem as queria, e eu confusa, muito confusa, a acreditar em Deus como acreditava na bruxa má, sem saber se queria ser freira, sem saber se o pai era um filho da puta e a minha primeira confissão foi na capela do colégio e o padre era preto, profundamente preto como a noite demorada, e dizia que a beleza morava no corpo e na alma, que havia uma beleza por dentro e uma outra beleza por fora, a dizer que eu era bela por dentro e por fora, o padre preto igual à noite demorada, pousando a mão no meu joelho e eu cheia de vergonha do meu joelho, porque tinha imensos pêlos no joelho e ainda não tinha idade para fazer a depilação, o padre preto discursando sobre a beleza e eu sem o ouvir, os olhos apontados para a sua mão, para o joelho cheio de pêlos, para o fumo que subia como um milagre, e o padre não me perguntava pelos meus pecados, dizia que eu não conhecia o pecado, que eu era bela por dentro e por fora, que eu era uma menina e as meninas eram belas, eu sem saber o que dizer, sem nunca saber o que dizer, mas com vontade de dizer que eu não era uma menina, com vontade de contar que dei um pontapé nos tomates do Miguel e que andava no karaté para um dia dar uma tareia enorme na prima Joana, para um dia partir a mesa de jantar ao meio com a força de uma só mão e destruir os centros de mesa da tia Clara, para um dia dar uma surra em todos os filhos da puta que se meterem no meu caminho, que um dia havia de ser karateca, que havia de ganhar dinheiro a fazer karaté, e agora faço a Avenida da Marginal em direcção a Cascais e rio de mim própria, uma gargalhada isolada e ridícula, porque não ganho dinheiro a fazer karaté, ganho dinheiro a pendurar roupas em cabides num centro comercial, numa luta contra todos os corpos, vivo num apartamento com duas assoalhadas e nem sequer tenho uma mesa de jantar por falta de espaço e de pessoas, nasci velhíssima e esta noite não acaba, são cinco da manhã mas não sinto propriamente pressa, não sinto propriamente dor, penso na mesa de jantar que nunca mais será a mesma, uma mesa de jantar sem voz nem corpo, onde agora há um lugar vazio, finalmente um lugar vazio, e eu não quero ocupar o lugar do morto, não quero ver a família enfileirada como soldadinhos de chumbo, comendo a sopa como elefantes, as suas trombas intermináveis, apontadas para cima como os cigarros da tia Lúcia, como a chaminé do crematório, o avô subindo como uma nuvem, como um vulto, como uma pessoa de verdade e eu com uma pergunta no colo, com tantas perguntas no colo, o peso de todas as coisas nos braços e não ouço as histórias de África, ouço o piano da avó, que traía as minhas mãos, que não tocava o que lhe pedia, porque estava velho e desafinado, um piano ridículo e isolado como uma gargalhada do tio Jorge e eu não acredito em Deus, porque ganho dinheiro a pendurar roupas em cabides num centro comercial, porque os homens são todos uns filhos da puta e eu não sou uma menina, não sou uma raposa, venho em décimo terceiro lugar mas sou a mais antiga, a mais decrépita e não quero ver Lisboa na perspectiva do Cristo Rei, não quero ver a mesa de jantar na perspectiva do avô, faço a Avenida da Marginal às cinco da manhã e é nisto que penso, em como nunca podíamos ser.


Aveiro Jovem Criador 2021


Concorri a este concurso em 2010. Foi o meu primeiro prémio nacional, e logo em Aveiro, a minha segunda cidade. Recordo com grande carinho a exposição dos trabalhos finais. Éramos muitos e muito jovens. Arte digital, audiovisual, escrita, fotografia, ilustração, música e pintura. A minha família estava lá em peso e também alguns amigos.

O meu texto chamava-se “Nunca podíamos ser” e está na origem da Karateca e do Supergigante, que nasceram nos anos seguintes. Recordo também com viva emoção o conselho da professora e escritora Maria Rosa Oliveira, que presidiu ao júri em 2010: “Tem de escrever um livro”.

“Eu?! Jamais!”, disse eu.

Uma década depois regresso com enorme orgulho ao Concurso Aveiro Jovem Criador, desta vez como membro do júri. Que bom! Que bom! Que bom!

Divulguem e participem!

Regulamento e ficha de inscrição:

www.facebook.com/caveirojovcriador.  

domingo, 25 de outubro de 2020

O quê? O quê? O quê?


 As mãos sempre tão secas. Os dias tão iguais, que mais parecem o mesmo dia. 

Um único dia repetido. Com ligeiras diferenças. Num dia chove, no outro não. Num dia dói-me a garganta, no outro a tristeza. Mas os dias são essencialmente iguais aos anteriores e aos que hão de vir.

Espero que este não seja o meu castigo. Um ciclo eterno de dias sempre iguais. Coloco hipóteses: talvez tenha caído num buraco temporal. Talvez os deuses me estejam a dar uma lição. Talvez eu tenha de aprender qualquer coisa fundamental sobre a vida antes de poder avançar no tempo. 

Imagino-os no Olimpo, muito bem sentados na sua sala de professores, desiludidos com tudo isto e, em particular, com a minha existência.

Visto os meus filhos, alimento-os, empurro o carrinho para fora de casa. Presto atenção.

Vem aí o inverno. Folhas no chão, nuvens no céu. 

A sensação de que falhei em tudo. De que vou falhar sempre. De que ainda não aprendi qualquer coisa fundamental. Mas o quê? 

Imagino os meus pensamentos a fazerem eco no Monte do Olimpo. 

O quê? O quê? O quê?

Há muito tempo que não vejo nada ao longe. Há sempre um prédio à frente, um carro, um guindaste. É difícil pensar sem ver. 

É difícil pensar sem respirar também. Estou farta destas máscaras.

Imagino a praia do Guincho. Imagino o vento. Imagino que entro na água e fico para ali a boiar. A boiar. A boiar.

Tenho saudades das gaivotas. Tenho saudades do mar. Imagino o eco de tudo isto no Monte do Olimpo.

Mar mar mar. Guincho Guincho Guincho.

Não sei falar com os deuses. Não tenho jeito para a fé. Não tenho jeito para a oração.

Voltei a ouvir podcasts. Os outros fazem-me muita falta. 

E ainda quero aprender qualquer coisa fundamental. 

O quê? O quê? O quê?

Por Zeus, o quê?


sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Hoje às 21h

Hoje às 21h eu e o Bernardo P Carvalho estaremos à conversa com João Morales sobre o Desvio na página do Facebook do festival Amadora BD. Yay!



sexta-feira, 9 de outubro de 2020

O Catálogo White Ravens é um bom lugar!

Crac crac. Estou aqui a crocitar de empolgadura!

Topem-me isto:

“Aqui é um bom lugar”, esse caderno que é um diário e também um lugar, recebeu o selo “White Ravens 2020”.

O selo é atribuído anualmente a 200 livros infantojuvenis considerados “incomuns e extraordinários”. A seleção é feita por um grupo de peritos da Biblioteca Internacional de Munique que avalia todos os anos milhares de obras de todo o mundo.

Na edição deste ano constam 200 livros publicados em 36 línguas de 56 países.

É, pois, com grande pasmo e tolice que vejo o caderno azul da Teresa Tristeza incluído neste catálogo.

No link aqui em baixo há mais links para o catálogo, para a apreciação do júri e para o livro.

https://www.planetatangerina.com/pt-pt/aqui-e-um-bom-lugar-no-white-ravens-2020/?fbclid=IwAR1rVwPBmt3iOA4iijDzq5NBv4EomYH8PEaazxwdYR9Fv0qBW3clakkdlXY

“Caí das nuvens. Caí em mim. Caí. Tenho uma certa queda para cair.”

Frase da minha avozinha: “Para a frente é que é o caminho.”


terça-feira, 15 de setembro de 2020

O Expresso é um bom lugar

 Ontem, no Expresso Curto, Pedro Cordeiro propôs “Aqui é um bom lugar”.

“Na novela gráfica, “Aqui é um bom lugar” (Planeta Tangerina), de Ana Pessoa e Joana Estrela. É uma espécie de scrapbook, galardoado em 2018 com o prémio literário Maria Rosa Colaço de literatura juvenil e recomendável também para idades mais avançadas. Na transição do liceu para a universidade, e fechando assim o ciclo deste Expresso Curto, todos encontraremos aqui motivos de identificação.”

https://expresso.pt/newsletters/expressomatinal/2020-09-14-Das-tripas-coracao-dos-pulmoes-cerebro?fbclid=IwAR0N8q7GPRaz-iTLu8SPO21lW18MnkcjHq56G9QNrPxhfAba_bCtrAUSDug



sexta-feira, 11 de setembro de 2020

“Eu sou, eu sei” no Brasil!

Eu cá, eu lá! Eu cof, eu choc!

Notícia altamente do Brasil:

O álbum “Eu sou, eu sei” recebeu o selo "Altamente Recomendável" da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ) na categoria de "Literatura em Língua Portuguesa". 


Todos os anos a FNLIJ seleciona dez livros em várias categorias (criança, jovem, poesia, tradução, etc.) com o objetivo de promover os melhores livros infantis e juvenis publicados no ano anterior. A seleção é feita por especialistas em literatura infantojuvenil de todas as regiões do Brasil.

Numa altura em que é tão difícil existir e crescer no Brasil, é uma alegria ver este álbum para bebés a gatinhar do lado de lá do oceano.

Eu li, eu ri. Eu splash, eu plim!

Foram também incluídos nesta seleção as edições brasileiras de “Um livro para todos os dias” (Isabel Minhós Martins, Bernardo P Carvalho), “Imagem” (Arnaldo Antunes e Yara Kono) e “O dicionário do menino Andersen” (Gonçalo M Tavares e Madalena Matoso).

Planeta Tangerina rules!

quinta-feira, 10 de setembro de 2020

Escola e cidadania

 O mais velho começou a ir à escola. 

Tem quase três anos e agora também tem uma mochila e uma marmita.

Conheci a educadora à porta da sala de aula, ela de máscara, eu de máscara. Não sei nada sobre ela além do primeiro nome e ela não sabe nada sobre mim, nem sequer o meu primeiro nome. Na perspetiva da educadora, eu sou mãe de alguém. Mais nada.

O mais velho lá fica, com a sua mochila, a sua marmita e o seu primeiro nome. Eu fico a vê-lo, muito pequeno e perdido no meio de outras crianças igualmente pequenas e perdidas, e penso que talvez isto não esteja lá muito certo, que a escola se calhar não devia ser assim tão brusca.

Na verdade não sei como é que estas crianças pequenas e perdidas passam o dia; se riem, brincam, cantam e escutam, se a educadora as trata bem e lhes conta histórias, mas tenho esperança de que assim seja, espero bem que a educadora lhes conte histórias, que saiba imitar as vozes dos animais, que seja criativa, paciente e responsável. Que os miúdos se divirtam uns com os outros, que aprendam uns com os outros.

O que fazer senão ter esperança?

Tenho esperança na escola pública e no ensino obrigatório. Tenho esperança na progressão por etapas, desde a pré-primária até ao nível superior. Tenho esperança também nesta educadora de quem não sei nada além do primeiro nome.

Pode ser uma ilusão minha, uma fantasia, um delírio até, mas o que é a esperança senão um sonho, uma quimera, uma orientação inventada?



Bem ou mal aí está ele, o meu filho em sociedade. 

Vejo-o ao longe e espero que se dê bem na escola, espero que aprenda a ler e a escrever, claro, e também a somar e a dividir, espero que ache importante saber umas coisas sobre rochas vulcânicas, recursos naturais e circuitos elétricos, que se interesse minimamente pelo Império Romano e pela União Europeia, que aprenda a fazer cambalhotas e dê uns toques de voleibol, que adquira noções básicas de Geometria Descritiva, mas acima de tudo a minha maior esperança é a de que a escola faça do meu filho um bom cidadão. Espero sinceramente que a escola seja um espaço de diálogo, reflexão e crescimento. E que nos próximos anos o meu filho aprenda na sala de aula e também no recreio, no refeitório, no ginásio, na biblioteca, no bar e nos corredores da escola que vale a pena acreditarmos em alguma coisa, que a liberdade nem sempre é livre, que a sociedade não é pêra doce, que a lei existe e deve ser cumprida, que ele se deve indignar perante a injustiça, que ele é dono do seu corpo e da sua vontade, que a escola determina muita coisa na vida e o Estado também, que nem sempre vamos concordar com os nossos professores, que nem sempre estaremos à altura do desafio, que nem tudo é consensual nem opcional, que fazemos parte de um momento na história da humanidade, que temos direitos e deveres, que a cidadania hoje é assim e amanhã há de ser outra coisa, que é mais fácil destruir do que construir e que, de vez em quando, convém pôr em causa isto tudo: a escola, a cidadania, a obrigatoriedade. Vejo o meu filho ao longe e penso que se calhar não andamos a fazer isto muito bem. Que se calhar também os adultos deviam ir à escola aprender a ser pais e cuidadores, porque só um bom cidadão pode ser um bom pai, só um bom cidadão pode ser um bom profissional e um bom amigo, um bom artista, um bom condutor, um bom parceiro. 

No emprego, na escola, no café, na fila do supermercado, nos transportes públicos, e até na cama, o que está em causa é sempre a dignidade humana. 

A cidadania não é uma disciplina. É isto tudo. É a nossa quimera. É a nossa esperança. 

É a escola da vida.

quarta-feira, 9 de setembro de 2020

"Desvio" na Revista Blimunda

 Na Revista Blimunda (Fundação José Saramago) escreve Andreia Brites sobre "Desvio":

"A relação do texto com a ilustração de Bernardo Carvalho ganha aqui um valor ainda mais efetivo, já que é da imagem que vivem e se ampliam muitas das sugestões textuais. (...) As duas vozes produzem em uníssono uma pretensa crise existencial de finais da adolescência, sem a voracidade de acontecimentos a pautá-la como progressão narrativa."

Revista Blimunda: https://www.josesaramago.org/blimunda-97-julho-agosto-de-2020/




terça-feira, 8 de setembro de 2020

segunda-feira, 7 de setembro de 2020

"Desvio" na Vinheta2020

 Chiça! Cum camandro!

A crítica de Hugo Pinto ao Desvio acaba assim:

"Desvio pode muito bem ser uma viragem na banda desenhada nacional e a partida para algo novo e inesperado. Um autêntico desvio, portanto. A leitura deste livro arrebatou-me e considero-o, sem pudores, como um dos melhores livros de banda desenhada que a produção nacional já nos deu. Obrigatório."

Texto integral aqui: https://vinheta2020.blogspot.com/2020/08/analise-desvio.html




terça-feira, 1 de setembro de 2020

Desvio no Público

Digamos que o Desvio está a dar que falar. Entrevista de José Marmeleira a propósito do meu livro mais desviado. Já eu, estava muito penteadinha nesta foto.


https://www.publico.pt/2020/08/30/culturaipsilon/entrevista/cidade-ha-rapaz-espera-aconteca-1929711

sexta-feira, 28 de agosto de 2020

Os meus filhos falsos

Quando ando na rua com o carrinho dos gémeos, há sempre alguém que mete conversa.
São gémeos? Ai, que azar. Ai, que sorte. Nem quero imaginar. Mas olhe, assim fica despachada. Era o meu maior sonho. Era o meu maior medo. A minha prima também tem. Não me dou nada bem com a minha irmã gémea. É uma pena. Eu também tive gémeos. Lembro-me bem desse cansaço. Vai passar tudo. As minhas já têm 30 anos, correu tudo bem. Os seus são meninos? São verdadeiros?
Ouço a minha voz responder: “São falsos”. Que coisa mais feia de se dizer. Olho para eles: os meus filhos falsos. Fictícios. Imagino-os feitos de borracha ou de plástico, os meus bebés a fingir.
Pelas minhas contas, fazem hoje um ano. Gatinham de uma maneira esquisita.
São cada vez mais diferentes. Um gosta de estar sentado, o outro rasteja pela casa. Um gosta de iogurte natural, o outro de iogurte de baunilha. Um dá-me abraços apertados, o outro afasta-me com as mãozinhas. Ainda assim, não dá para dizer aquilo que as pessoas gostam de dizer: se um é mais reservado do que o outro, se um é mais irritadiço ou mais melancólico ou mais extrovertido ou mais confiante.
Uma vez é um, outra vez é outro.
No fundo todos somos todas as coisas todos os dias.
Esforço-me por não estar sempre a compará-los. Esforço-me por não os tratar por “gémeos”. Digo o nome de um e o nome do outro. Surpreende-me quando outros fazem o mesmo. Emociona-me que saibam distingui-los. Ou que tentem distingui-los. Às vezes enganam-se. Eu também.
Nos primeiros dias na creche, uma das educadoras perguntou-me: “Custa-lhe trazê-los?” Bom, não é muito fácil, disse eu. O carrinho é um bocado pesado. Mas uma pessoa habitua-se. A educadora interrompe-me. Não estava a referir-me à deslocação. Ai não? Não. Estava a perguntar se, para si, como mãe, é difícil deixá-los. Explicou melhor: É que passou muito tempo com eles em casa. Ah, pois. Isso.
Custa-lhe muito?
Não. Por acaso não me custa muito. Penso: Por acaso não me custa absolutamente nada. Custa-me a mensalidade, claro, mas estou em paz com o negócio: eu pago, elas tratam. Custava-me mais antes, quando era eu a tratar deles. Mesmo assim tivemos sempre a ajuda de uma ama, que tinha (e tem) mais jeito para a coisa do que eu.
Sou uma mãe falsa. Fictícia.
Não tive um parto natural. Não amamentei. Não faço casaquinhos nem gorros. Não tenho grande paciência para quase nada. Se eu morrer, é possível que eles nem reparem.
Às vezes pergunto-me se gosto assim tanto deles. Se serão assim tão importantes na minha vida. Não me levem a mal.
Estou sentada no chão a entretê-los com musiquinhas e chocalhos, e tenho a certezinha absoluta de que preferia mil vezes estar a ler ou a escrever ou a lavar a loiça ou a fazer outra coisa qualquer. Canto aquela canção do alecrim aos molhos porque não sei cantar mais nada e pergunto-me se ia ficar assim tão desesperada, se ia querer desfalecer por completo, caso um deles morresse. Ou caso morressem todos. Estes dois e também o mais velho, mais o meu marido. Morriam todos numa catástrofe natural.
Será que eu ia sofrer assim tanto?
Alecrim, alecrim aos molhos.
Se calhar refazia rapidamente a minha vida. Emagrecia vinte quilos, passava a usar baton. Fazia arte a partir do meu sofrimento.
Por causa de ti choram os meus olhos.
E toda a gente ia aplaudir as minhas lamúrias de viúva de marido e de filhos, porque nessa vida eu seria uma fadista sublime e não uma funcionária mixuruca.
Ai meu amor, quem te disse a ti que a flor do monte era o alecrim?
Diz que aos quarenta é bom mudar de vida. Faltam dois anos. Daqui a dois anos estes dois fazem três, a não ser que morram entretanto na tal catástrofe natural.
Coitados. Zango-me bastante com eles. Se não querem comer, se não dormem, se choram, se refilam, se adoecem. Raios partam estes bebés mais o outro mais velho. Calem-se um segundo. Pelo amor da santa.
Qual santa? Não sei.
Olho para os meus filhos falsos e lembro-me do diário do Vergílio Ferreira, onde às tantas ele escreve assim: “Nós somos quase sempre falsos até mesmo quando pensamos.”
E de repente um deles olha para mim, pode ser o mais pequenino, que tem aqueles olhos redondos que veem tudo por dentro (e quando eu digo tudo, é mesmo tudo, até ao tutano do universo), ele olha para mim e nessa migalha de tempo, nesse instante, eu vejo este menino que existe, um menino de verdade até às entranhas da existência e, de súbito, também eu vejo o que ele vê, também eu sei o que ele sabe, tudo o que veio antes, tudo o que virá depois, todas as coisas, todos os dias, e tenho a certeza de que nesse momento poderia morrer fulminada por este segredo indecifrável, porque morria muito bem, morria de dentro para fora, numa explosão maravilhosa muito parecida com aquela explosão que originou isto tudo, e nada seria tão verdadeiro como este instante, nada seria tão antigo nem tão novo como este amor. Quero lá saber dos livros e da loiça. Estou com a outra lamechas que escreveu aquele poema sobre amar perdidamente, porque os meus filhos são “alma e sangue e vida em mim”, e não sei porquê, tenho imensa vontade de rir agora. A literatura, às vezes, dá-me para isto.
Para terminar, queria só dizer que nas suas primeiras tentativas de diário, Vergílio Ferreira escreveu assim:
“A arte é, no fim de contas, uma coisa bem estúpida.”
E é. Não haja dúvida.
A maternidade também.