Recapitulando.
2020: a propagação da maleita e do medo, o tique nervoso do álcool-gel, esta nova aversão ao toque, as ruas desertas, a solidão. Mas também os abraços do Henrique, os meus filhos a pular no sofá, a sensação de mestria quando todos dormem, mais a poesia violenta do Luís Miguel Nava que me beliscou em certas horas.
Tenho pensado muito neste verso dele: “a manhã espanca a praia”.
Não vi a praia uma única vez, mas penso nela todos os dias. Também não vi o mar uma única vez.
Dei um mergulho num lago artificial. Dei um mergulho num lago a sério.
Voltei ao trabalho, mas fiquei em casa. Passei a maior parte dos dias na sala de estar, que agora também é o nosso escritório.
O mais novo caiu da cama. O do meio caiu do fraldário. O mais velho caiu da bicicleta.
Nasceu o Desvio, a primeira novela gráfica.
Brexit. Joe Biden. Bielorrússia.
Voltei a ouvir música. Voltei a ouvir podcasts. Voltei a ver séries.
Os mais novos começaram a ir à creche. O mais velho começou a ir à escola.
Toda a gente começou a usar máscaras. Primeiro as de papel. Depois as de tecido.
No início não percebíamos bem as regras. Se podíamos sair de casa, se devíamos usar máscara na rua, se nos podíamos sentar nos bancos de jardim.
Quino. Maradona. Morricone.
Comprei um blusão branco. Comprei uns ténis vermelhos. Fiz óculos novos.
Fui finalmente ao dentista, que afinal era uma dentista. Os óculos da dentista eram parecidos com os meus óculos novos, mas mais bonitos do que os meus óculos novos.
A explosão em Beirut. Os arco-íris nas janelas. Black lives matter.
Emagreci um bocadinho. Escrevi um bocadinho. Li um bocadinho: Lydia Davis, Vergílio Ferreira, Matilde Campilho.
O mais novo começou a dormir melhor. O mais velho largou as fraldas. O do meio foi picado por uma vespa.
Tive uma crise de costas. Tive uma crise existencial. Tive dores de garganta. Tive febre e tosse e cagufa. Fiz o teste à Covid-19, mas não recebi os resultados. A médica também não. Fiz quarentena na mesma.
Luís Sepúlveda. Sean Connery. Eduardo Lourenço.
Pisei um enorme cocó de cão. Deixei cair as chaves no buraco do elevador.
Não tomei banho todos os dias. Não dormi uma única noite seguida.
Li Adília Lopes, Ana Hatherly, Adrienne Rich, Annie Ernaux. Reparo agora que os nomes destas mulheres começam todos por A. Acho que não fiz de propósito.
O nosso aspirador deu o berro. A varinha mágica também. A caldeira do prédio também. Passamos uma semana sem elevador. Passei uma semana com o mais novo no hospital.
As manifestações em Hong Kong. Os incêndios na Austrália.
O mais velho fez três anos. Os mais novos já abrem gavetas. Montámos uma árvore de Natal, que é um pinheirinho todo torto.
2020: um ano para esquecer; um ano para recordar. O tempo avançou muito depressa e também muito devagar; as semanas e os meses passaram a correr, mas os dias (e as noites) nunca mais acabavam. Tudo mudou de repente. E no entanto a sensação que fica é que estamos exatamente onde estávamos há um ano. Como se nada tivesse evoluído. Como se o tempo não tivesse passado.
E no entanto ele passou. O tempo passa sempre. E nós estamos todos diferentes.
A barriga da Isabel, o sorriso da Kamala Harris, as fotos que a minha mãe me envia com o nascer do sol.
Mais um verso do Luís Miguel Nava: “As imagens saltam em descargas”.
As horas também, digo eu. Os dias. Os anos.
Estou para aqui toda desgrenhada a olhar para as descargas de luz da nossa árvore de Natal e só quero mais disto. Viver mais.
Amar mais. Dormir mais. Cuidar mais. Ler mais. Escrever mais.
Tudo mais, por favor. Exceto aquelas coisas que queremos todos muito menos, claro.
2021, puxa-te à calma. Deixa a malta respirar, ó.
(Foto do pinheirinho todo torto em “O gnu e o texugo”, Madalena Matoso)