Quando ando na rua com o carrinho dos gémeos, há sempre alguém que mete conversa.
São gémeos? Ai, que azar. Ai, que sorte. Nem quero imaginar. Mas olhe, assim fica despachada. Era o meu maior sonho. Era o meu maior medo. A minha prima também tem. Não me dou nada bem com a minha irmã gémea. É uma pena. Eu também tive gémeos. Lembro-me bem desse cansaço. Vai passar tudo. As minhas já têm 30 anos, correu tudo bem. Os seus são meninos? São verdadeiros?
Ouço a minha voz responder: “São falsos”. Que coisa mais feia de se dizer. Olho para eles: os meus filhos falsos. Fictícios. Imagino-os feitos de borracha ou de plástico, os meus bebés a fingir.
Pelas minhas contas, fazem hoje um ano. Gatinham de uma maneira esquisita.
São cada vez mais diferentes. Um gosta de estar sentado, o outro rasteja pela casa. Um gosta de iogurte natural, o outro de iogurte de baunilha. Um dá-me abraços apertados, o outro afasta-me com as mãozinhas. Ainda assim, não dá para dizer aquilo que as pessoas gostam de dizer: se um é mais reservado do que o outro, se um é mais irritadiço ou mais melancólico ou mais extrovertido ou mais confiante.
Uma vez é um, outra vez é outro.
No fundo todos somos todas as coisas todos os dias.
Esforço-me por não estar sempre a compará-los. Esforço-me por não os tratar por “gémeos”. Digo o nome de um e o nome do outro. Surpreende-me quando outros fazem o mesmo. Emociona-me que saibam distingui-los. Ou que tentem distingui-los. Às vezes enganam-se. Eu também.
Nos primeiros dias na creche, uma das educadoras perguntou-me: “Custa-lhe trazê-los?” Bom, não é muito fácil, disse eu. O carrinho é um bocado pesado. Mas uma pessoa habitua-se. A educadora interrompe-me. Não estava a referir-me à deslocação. Ai não? Não. Estava a perguntar se, para si, como mãe, é difícil deixá-los. Explicou melhor: É que passou muito tempo com eles em casa. Ah, pois. Isso.
Custa-lhe muito?
Não. Por acaso não me custa muito. Penso: Por acaso não me custa absolutamente nada. Custa-me a mensalidade, claro, mas estou em paz com o negócio: eu pago, elas tratam. Custava-me mais antes, quando era eu a tratar deles. Mesmo assim tivemos sempre a ajuda de uma ama, que tinha (e tem) mais jeito para a coisa do que eu.
Sou uma mãe falsa. Fictícia.
Não tive um parto natural. Não amamentei. Não faço casaquinhos nem gorros. Não tenho grande paciência para quase nada. Se eu morrer, é possível que eles nem reparem.
Às vezes pergunto-me se gosto assim tanto deles. Se serão assim tão importantes na minha vida. Não me levem a mal.
Estou sentada no chão a entretê-los com musiquinhas e chocalhos, e tenho a certezinha absoluta de que preferia mil vezes estar a ler ou a escrever ou a lavar a loiça ou a fazer outra coisa qualquer. Canto aquela canção do alecrim aos molhos porque não sei cantar mais nada e pergunto-me se ia ficar assim tão desesperada, se ia querer desfalecer por completo, caso um deles morresse. Ou caso morressem todos. Estes dois e também o mais velho, mais o meu marido. Morriam todos numa catástrofe natural.
Será que eu ia sofrer assim tanto?
Alecrim, alecrim aos molhos.
Se calhar refazia rapidamente a minha vida. Emagrecia vinte quilos, passava a usar baton. Fazia arte a partir do meu sofrimento.
Por causa de ti choram os meus olhos.
E toda a gente ia aplaudir as minhas lamúrias de viúva de marido e de filhos, porque nessa vida eu seria uma fadista sublime e não uma funcionária mixuruca.
Ai meu amor, quem te disse a ti que a flor do monte era o alecrim?
Diz que aos quarenta é bom mudar de vida. Faltam dois anos. Daqui a dois anos estes dois fazem três, a não ser que morram entretanto na tal catástrofe natural.
Coitados. Zango-me bastante com eles. Se não querem comer, se não dormem, se choram, se refilam, se adoecem. Raios partam estes bebés mais o outro mais velho. Calem-se um segundo. Pelo amor da santa.
Qual santa? Não sei.
Olho para os meus filhos falsos e lembro-me do diário do Vergílio Ferreira, onde às tantas ele escreve assim: “Nós somos quase sempre falsos até mesmo quando pensamos.”
E de repente um deles olha para mim, pode ser o mais pequenino, que tem aqueles olhos redondos que veem tudo por dentro (e quando eu digo tudo, é mesmo tudo, até ao tutano do universo), ele olha para mim e nessa migalha de tempo, nesse instante, eu vejo este menino que existe, um menino de verdade até às entranhas da existência e, de súbito, também eu vejo o que ele vê, também eu sei o que ele sabe, tudo o que veio antes, tudo o que virá depois, todas as coisas, todos os dias, e tenho a certeza de que nesse momento poderia morrer fulminada por este segredo indecifrável, porque morria muito bem, morria de dentro para fora, numa explosão maravilhosa muito parecida com aquela explosão que originou isto tudo, e nada seria tão verdadeiro como este instante, nada seria tão antigo nem tão novo como este amor. Quero lá saber dos livros e da loiça. Estou com a outra lamechas que escreveu aquele poema sobre amar perdidamente, porque os meus filhos são “alma e sangue e vida em mim”, e não sei porquê, tenho imensa vontade de rir agora. A literatura, às vezes, dá-me para isto.
Para terminar, queria só dizer que nas suas primeiras tentativas de diário, Vergílio Ferreira escreveu assim:
“A arte é, no fim de contas, uma coisa bem estúpida.”
E é. Não haja dúvida.
A maternidade também.