domingo, 9 de agosto de 2020

38

Fiz anos ontem. Trinta e oito. Cruzes canhoto. E ainda não vi uma aurora boreal. Ainda não vi o Caetano Veloso ao vivo.
Sonho muitas vezes com quadros da Paula Rego.
Sinto-me muitas vezes vazia.
Bebo três cafés por dia. Tenho três filhos. Gostava de conhecer a Virginia Woolf, mas ela já morreu. Gostava de saber tocar um instrumento musical.
Nunca estive num deserto. Nunca fui à Antártida.
Não uso perfume. Não uso relógio. Não uso pulseiras.
Nunca gostei dos Smashing Pumpkins.
Ainda não encontrei a caneta ideal.
Nem sempre me penteio. Nem sempre me lembro dos nomes dos meus filhos.
Gostava de ter uma cauda, de abaná-la por aí, bater nas pernas das pessoas, sacudir moscas e vespas.
Tenho medo de vespas. Tenho uns óculos novos.
Às vezes deito comida fora.
Nunca tive um animal doméstico. Nunca tive um namorado de outra etnia. Nunca fiz nada contra o racismo. Nem sequer aquela hashtag assim #blacklivesmatter.
Sinto-me muitas vezes culpada.
Não vou a Portugal há mais de um ano. Não sou grande nadadora.
Não comprei casa nem carro.
Não percebo nada de arquitetura. Não percebo nada de literatura. Não percebo nada de árvores.
Às vezes compro prendas que não chego a oferecer. Às vezes escrevo postais que não chego a enviar.
Sinto-me muitas vezes incompetente.
Gosto de ser estrangeira na Bélgica. Gosto de ser estrangeira em Portugal.
Não tenho uma boa estratégia para lavar soutiens.
Sou casada. Sou míope. Sou funcionária pública.
Aplico o Acordo Ortográfico. Ponho amaciador no cabelo. Pago os impostos.
Não faço voluntariado. Quase nunca faço a cama.
Digo muitas vezes: “Talvez”. Digo muitas vezes: “Não sei”.
Não me importo de esperar. Gosto bastante de cerveja belga. Arranjo sempre um tempinho para escrever. Acho piada a trotinetes. Gosto cada vez mais de Bruxelas. Gosto cada vez mais do Bandarra.
Sinto-me muitas vezes burra que nem uma porta.
Tenho inveja das falésias que ficam para ali a ver o mar e a resistir.
Tenho um certo fascínio por casas abandonadas.
Tenho saudades dos meus pais e do meu país.
Estou farta da pandemia. Estou farta deste verão. Estou farta deste ano.
Já disse isto uma vez, mas volto a dizer:
Eu sou do Guincho. Sou do oceano. Sou da Boca do Inferno.
Sou feita de vento e rocha.