quinta-feira, 29 de outubro de 2020

Nunca podíamos ser

(Texto que apresentei ao concurso Jovem Criador de Aveiro em 2010)


Nunca podíamos ser treze à mesa por causa da tia Lúcia, que chorava muito quando o fumo lhe entrava para os olhos, um fumo denso e triste como o fumo da chaminé do crematório, a mão sempre próxima da boca, uma mão translúcida e esguia, o cigarro apontado para cima como a chaminé do crematório e a cinza caindo no chão da cozinha, no colo, em qualquer lado, os meus olhos apontados para cima como os cigarros da tia Lúcia e o avô a subir como uma nuvem, como um vulto, como uma pessoa de verdade, enquanto os amigos de África contavam histórias de África, o elefante que destruiu as acácias, o tio Paulo que desenhou as estradas, a gazela que lambeu a prima Rita, os amigos de África a rir das histórias de África, da vida em África, de costas para o avô que subia para o céu como um milagre, histórias de África que eu não ouvia porque não queria saber de África, os olhos vermelhos do choro, um choro calado como se fosse outra coisa, o rosto da tia Lúcia a reflectir o brilho dos tachos e dos azulejos, eu na porta da cozinha com os pratos das crianças, os talheres empilhados, o peso de todas as coisas nos braços, sem saber o que dizer, sem nunca saber o que dizer, e a tia Lúcia chorando por causa do fumo que subia como uma nuvem, como um vulto, como uma pessoa de verdade, e nunca podíamos ser treze à mesa, por isso eu ficava na mesa das crianças, apesar de já não ser criança, apesar de nunca ter sido criança, porque nasci velhíssima num corpo pequenino, um talento natural para ser velha e decrépita como a bruxa má, os outros primos minúsculos, a emporcalharem a mesa, a esborracharem o esparguete com os dedos e os pais esquecidos deles, entretidos com a comida e com as conversas da mesa de jantar, com as histórias de África, o avô abrindo os braços no topo da mesa como o Cristo Rei, enorme como o Cristo Rei, iluminado como o Cristo Rei, e eu faço a Avenida da Marginal às cinco da manhã e vejo o Cristo Rei a ver-me, o Cristo Rei sabendo tudo, compreendendo tudo, perdoando tudo, e eu nunca visitei o Cristo Rei, nem mesmo na época em que acreditava em Deus e noutras personagens do género, o Cristo Rei de braços abertos para mim e eu penso nisso, em como nunca vi Lisboa na perspectiva do Cristo Rei, em como nunca vi a mesa de jantar na perspectiva do avô, os filhos, as noras, os genros, os netos, a família enfileirada como soldadinhos de chumbo e a avó de perfil, o carrapito ruivo sempre tão composto, as mãos alinhando os copos como se alinhassem outra coisa, a garrafa de espumante logo ali e o centro de mesa da tia Clara, sempre os centros de mesa da tia Clara, o filho mais velho logo atrás, no outro topo da mesa, penteando a barba como quem pensa numa coisa abstracta, tão calado, tão introspectivo, o mistério de não se conhecer os próprios filhos, o neto mais velho à sua esquerda, que vem de mota para poder fugir sozinho, um sorriso feiíssimo por causa dos dentes afastados, igual ao da tia Lúcia, e a segunda neta ao lado do filho mais velho, a mais querida de entre os netos, um talento natural para a arte, adejando a cabeça como um pássaro, um nariz prolongado como o bico de um pássaro, as suas mãozinhas como asas, iguais às da mãe, e a seguir o genro de óculos quadrados, com cara de apresentador de telejornal, com cara de quem lê o suplemento de economia dos jornais e bebe um sumo de laranja todos os dias, com cara de quem cuida das sobrancelhas e corta os bifinhos das suas crianças, mas é mentira, porque quem corta os bifinhos das crianças sou eu, os joelhos contra o tampo da mesa, as costas dobradas e o rabo espetado para a mesa de jantar onde se fala sobre a responsabilidade dos bancos pela crise financeira, o tio Jorge soltando uma gargalhada qualquer, uma gargalhada ridícula, isolada, como se ele fosse a plateia e os outros o circo, como se ele fosse o circo e os outros a plateia, o avô exaltado com os comentários da filha mais nova sobre o Estado, uma comunista disfarçada de outra coisa, que se senta ao colo do marido como se fosse sua filha, e eu na mesa das crianças como se fosse criança, cortando os bifinhos dos primos minúsculos como se cortasse outra coisa, ralhando com o Bernardo que esborracha o esparguete com os dedos, e isto porque nunca podíamos ser treze à mesa e eu vinha precisamente em décimo terceiro lugar na família, apesar de ser a mais antiga de todos, a mais decrépita, ainda mais do que o avô, que é o primeiro, o primeiríssimo, o anterior, o fundamental, e agora o avô está morto e não há um princípio para os dias, o avô está morto e eu não vou ser a primeira neta, vou ser a última neta a chegar, faço agora mesmo a Avenida da Marginal e não sinto propriamente pressa, não sinto propriamente dor, penso na mesa de jantar que nunca mais será a mesma, uma mesa sem voz nem corpo, uma ausência que é maior do que a noite mais demorada, uma noite densa e triste como uma nuvem, como um vulto, como uma pessoa de verdade, eu na cama de baixo e a Joana na cama de cima, a sua vozinha sussurrando a história da bruxa má que vive no sotão e enfia criancinhas num saco de pano para depois as comer ao jantar, a Joana na cama de cima, a sombra da sua cabeça ao contrário, a sombra dos seus cabelos ao contrário, e eu escondida nos lençóis da cama de baixo, com medo da bruxa má, com medo da Joana, com medo do avô, com medo da morte e da noite, o escritório do avô repleto de desenhos da Joana, um coração às pintinhas, um monte com casas, uma árvore de ramos compridíssimos, uma girafa, a avó e o avô de mão dada, um talento natural para me tirar o sono, os filhos, as noras, os genros, os netos, a família enfileirada como os soldadinhos de chumbo que o Francisco herdou do tio António, os soldadinhos de chumbo que eu atirei da janela da salinha do piano para ver se se partiam, só para ver se se partiam, e a avó puxou-me a orelha, chamou-me menina raposa e eu chorei muito, não por causa do puxão de orelhas mas por causa do nome, porque eu não era uma menina nem uma raposa, mas a partir desse dia fui sempre a menina raposa, até mesmo para o avô, que se dirigiu a mim uma vez na vida, que me fez apenas uma pergunta na vida, uma única pergunta na vida e quando a fez, sorriu-me como nunca mais sorriu e chamou-me menina raposa, o avô, uma ausência maior do que a noite, a discursar sobre os pretos que vagueiam na savana como animais, sobre os pretos que são selvagens e indisciplinados como animais, os braços abertos, igual ao Cristo Rei, e a família abençoada a comer a sopa, uma boa família que leva os pratos vazios para a cozinha, onde a tia Lúcia fuma cigarros intermináveis e chora muito por causa do fumo que lhe entra para os olhos, um fumo denso e triste que parece uma nuvem, um vulto, uma pessoa de verdade, o peso de todas as coisas nos braços e eu velhíssima num corpo pequeno, a pensar na Magda, perguntando à mãe se a Magda era selvagem e indisciplinada como um animal, sem saber se a Magda era um animal e a mãe ao volante, as costas sempre tão direitas, o rosto tão sério, Não dês ouvidos a tudo o que o avô diz, e eu obediente como um soldadinho de chumbo, aliviada como uma nuvem, como um vulto, como uma pessoa de verdade, porque eu gostava muito da Magda e não queria que a Magda fosse um animal, não queria que a Magda fosse selvagem e indisciplinada, queria que a Magda fosse a minha melhor amiga, mas a Magda nunca foi a minha melhor amiga, porque quando a mãe me perguntou Quantos meninos da tua sala queres convidar para a tua festa de anos, eu disse sete e devia ter dito oito, mas nessa altura eu era pequeníssima, ainda que não fosse criança, e tinha medo que o avô me repreendesse por ter uma amiga preta, que o avô repreendesse a Magda por ela ser preta, que a bruxa má enfiasse a Magda no saco de pano e a atirasse para dentro do caldeirão por ela ser preta, de maneira que eu não convidei a Magda para a minha festa de anos, a tal festa de anos em que recebi a Barbie Western, a mais linda de todas as Barbies, um casaco cor-de-rosa com franjas, um chapéu de abas largas e umas botas pelo joelho, uma Barbie que era a namorada do Lucky Luke e não do Ken, que não era uma menina, que andava a cavalo e cuspia para o chão e eu já não sei quem me ofereceu a Barbie Western, faço a Avenida da Marginal às cindo da manhã e é na Barbie Western que penso, na mais linda de todas as Barbies, a Joana a correr pelo jardim com o braço no ar, a Barbie Western na sua mão que era uma asa, a Barbie Western apontando para cima como os cigarros da tia Lúcia, como a chaminé do crematório, e a Joana correndo sempre, rindo de mim como se eu fosse o circo, como se eu fosse o elefante que destruiu as acácias, como se eu fosse a gazela que lambeu a prima Rita, as tais histórias de África, tão incríveis que parecem uma coisa abstracta, tão sonhadas que parecem nuvens, tão repetidas que parecem reais, a colecção de elefantes da mãe, interminável como os cigarros da tia Lúcia, elefantes de porcelana, de vidro, de madeira, de arame, de marfim, de cobre, de esmalte, de pasta de papel, a tromba para cima, a tromba para baixo, a tromba enrolada, a tromba na boca, os elefantes enfileirados no quarto da mãe como soldadinhos de chumbo e a mãe sentada na cama, os cabelos revoltos como os da bruxa má, a perguntar-me Este ano queres ir para o karaté e eu sem saber o que dizer, sem nunca saber o que dizer, a mãe insistente, apresentando argumentos, que o clube de karaté era mesmo ali em baixo, que o clube de karaté saía mais barato do que o ballet, que devia aprender a defender-me dos homens, porque eram todos uns filhos da puta, e eu contente da vida, de súbito contente da vida, porque andava farta do ballet e gostava de bater nos rapazes, de maneira que nesse ano fui para o karaté e não para o ballet e no ano seguinte também e no seguinte também e fui cinturão branco, cinturão amarelo, cinturão laranja, cinturão verde, e batia nos rapazes como um rapaz e não como uma menina, dava-lhes pontapés nas costas e socos no estômago, e certo dia a irmã da catequese chamou a mãe à escola porque eu tinha dado um pontapé nos tomates do Miguel e ele nem foi ao recreio no intervalo por causa das dores, a irmã dizia testículos e a mãe muito séria, as costas muito direitas, um assunto tão grave, mas quando a mãe entrou no carro riu à gargalhada como se eu fosse o circo, como se eu fosse uma história de África, e nunca me ralhou por eu ter dado um pontapé nos tomates do Miguel, a família enfileirada como soldadinhos de chumbo, comendo a sopa como elefantes, o mistério de não se conhecer os próprios filhos, uma nora correctíssima, os centros de mesa impecáveis, um centro com pedrinhas, outro centro com areia, outro com velas, outro com pinhas, um centro diferente para cada almoço, a mais querida de entre as noras e a Joana igualzinha à mãe, um talento natural para a arte, as suas mãozinhas como asas, a avó na salinha do piano, as mãos alinhando paninhos como se alinhassem outra coisa, pronta para me ouvir tocar piano e eu com medo do piano, convencida de que o piano traía as minhas mãos, convencida de que o piano não tocava o que eu lhe pedia, de maneira que parei de tocar e disse O piano não toca o que eu lhe digo e a avó riu-se como se eu fosse o circo, como se eu fosse a plateia, chamou-me menina raposa, e eu não era uma menina nem uma raposa, sabia tocar piano, era a melhor a tocar piano, eu sozinha no palco da escola, com uma saia de pregas e uma blusa de malha, e não com um vestido, nunca com um vestido, porque não havia vestidos para mim nas lojas de roupa para criança, uma vez que eu não era uma criança, não era uma menina, tinha nascido velhíssima, era a mais antiga, a mais decrépita, e a professora de música elogiava as minhas mãos, a avó rindo de mim como se eu fosse o circo, como se eu fosse a plateia e eu sozinha no palco, ridícula e isolada como uma gargalhada do tio Jorge, o avô a sorrir para mim como nunca mais sorriu, a pergunta que nunca mais perguntou, a única pergunta, O que queres ser quando fores grande, menina raposa, e eu sabendo tudo, compreendendo tudo, perdoando tudo, disse Karateca, e o avô já sem sorriso, sem entender, sugerindo Arquitecta e eu, Não, não, karateca, o avô muito sério, um assunto tão grave, um perfil igual ao da mãe, falando sobre a importância do esforço e já não era para mim que falava, era para a mãe, que o karaté não era profissão, que o karaté não dava dinheiro a ninguém, que o karaté não era desporto para meninas, mas eu não era uma menina, não era uma raposa, a mãe ao volante, séria como um centro de mesa, as costas sempre tão direitas, Não dês ouvidos a tudo o que o avô diz, e eu obediente como um soldadinho de chumbo, aliviada como uma nuvem, como um vulto, como uma pessoa de verdade, porque do que eu mais gostava era de bater nos rapazes, a irmã da catequese a perguntar-me se eu ia à missa aos domingos e eu sem saber o que dizer, sem nunca saber o que dizer, porque aos domingos almoçava com o pai e os almoços com o pai eram mais sagrados do que as outras coisas, porque eu gostava mais de almoçar com o pai aos domingos do que bater nos rapazes em todos os outros dias da semana, o jipe do pai lá fora e eu correndo para ele, o pai a rir de qualquer coisa, sempre a rir de qualquer coisa, e eu exaltada, com uma pergunta no colo, uma pergunta por dentro, pesada como os pratos das crianças, os talheres empilhados, Queres ir à missa, pai, e o pai a interromper o riso, um silêncio que era uma nuvem, um vulto, uma pessoa de verdade, e depois uma gargalhada que afinal não era bem uma gargalhada, era um latido, um guincho, um grasno, o pai preocupado, de súbito preocupado, um assunto tão grave, explicando-me que as freiras do colégio iam à missa porque não tinham nada para fazer aos domingos, dizendo freiras e não irmãs, que as freiras do colégio não tinham família, que as freiras do colégio eram tão feias que nenhum homem as queria, e eu confusa, muito confusa, a acreditar em Deus como acreditava na bruxa má, sem saber se queria ser freira, sem saber se o pai era um filho da puta e a minha primeira confissão foi na capela do colégio e o padre era preto, profundamente preto como a noite demorada, e dizia que a beleza morava no corpo e na alma, que havia uma beleza por dentro e uma outra beleza por fora, a dizer que eu era bela por dentro e por fora, o padre preto igual à noite demorada, pousando a mão no meu joelho e eu cheia de vergonha do meu joelho, porque tinha imensos pêlos no joelho e ainda não tinha idade para fazer a depilação, o padre preto discursando sobre a beleza e eu sem o ouvir, os olhos apontados para a sua mão, para o joelho cheio de pêlos, para o fumo que subia como um milagre, e o padre não me perguntava pelos meus pecados, dizia que eu não conhecia o pecado, que eu era bela por dentro e por fora, que eu era uma menina e as meninas eram belas, eu sem saber o que dizer, sem nunca saber o que dizer, mas com vontade de dizer que eu não era uma menina, com vontade de contar que dei um pontapé nos tomates do Miguel e que andava no karaté para um dia dar uma tareia enorme na prima Joana, para um dia partir a mesa de jantar ao meio com a força de uma só mão e destruir os centros de mesa da tia Clara, para um dia dar uma surra em todos os filhos da puta que se meterem no meu caminho, que um dia havia de ser karateca, que havia de ganhar dinheiro a fazer karaté, e agora faço a Avenida da Marginal em direcção a Cascais e rio de mim própria, uma gargalhada isolada e ridícula, porque não ganho dinheiro a fazer karaté, ganho dinheiro a pendurar roupas em cabides num centro comercial, numa luta contra todos os corpos, vivo num apartamento com duas assoalhadas e nem sequer tenho uma mesa de jantar por falta de espaço e de pessoas, nasci velhíssima e esta noite não acaba, são cinco da manhã mas não sinto propriamente pressa, não sinto propriamente dor, penso na mesa de jantar que nunca mais será a mesma, uma mesa de jantar sem voz nem corpo, onde agora há um lugar vazio, finalmente um lugar vazio, e eu não quero ocupar o lugar do morto, não quero ver a família enfileirada como soldadinhos de chumbo, comendo a sopa como elefantes, as suas trombas intermináveis, apontadas para cima como os cigarros da tia Lúcia, como a chaminé do crematório, o avô subindo como uma nuvem, como um vulto, como uma pessoa de verdade e eu com uma pergunta no colo, com tantas perguntas no colo, o peso de todas as coisas nos braços e não ouço as histórias de África, ouço o piano da avó, que traía as minhas mãos, que não tocava o que lhe pedia, porque estava velho e desafinado, um piano ridículo e isolado como uma gargalhada do tio Jorge e eu não acredito em Deus, porque ganho dinheiro a pendurar roupas em cabides num centro comercial, porque os homens são todos uns filhos da puta e eu não sou uma menina, não sou uma raposa, venho em décimo terceiro lugar mas sou a mais antiga, a mais decrépita e não quero ver Lisboa na perspectiva do Cristo Rei, não quero ver a mesa de jantar na perspectiva do avô, faço a Avenida da Marginal às cinco da manhã e é nisto que penso, em como nunca podíamos ser.