Falava sozinho. Dizia:
- Só o ar importa!
e nisto o Senhor Müller inspirava toda a inspiração do mundo e dizia sentir o ar por dentro, a ventania do corpo. Havia dias de furacão, explicava, e nessas alturas o corpo inchava como um balão, ia com o vento, completamente dominado. Dizia tudo isto e rodava a anca larga.
- Só o ar importa!
e nisto o Senhor Müller inspirava toda a inspiração do mundo e dizia sentir o ar por dentro, a ventania do corpo. Havia dias de furacão, explicava, e nessas alturas o corpo inchava como um balão, ia com o vento, completamente dominado. Dizia tudo isto e rodava a anca larga.
No fundo do moinho havia um saco e ninguém sabia o que tinha dentro. O Senhor Müller recusava-se a abri-lo e guardava o moinho como um guarda prisional. Dizia que era secreto, mais valioso que os tesouros, que um moleiro tinha mais do que qualquer pirata no mar alto, por interpretar melhor o vento.
O moleiro inspirava até o fim de si mesmo e ficava suspenso, cheio, gasoso, branco como as nuvens. Dizia:
- Só o ar é puro e livre, só o ar viaja pelos corpos, dentro do próprio sangue.
O Senhor Müller era naturalmente louco, mas a sua loucura parecia saudável, fazia-lhe bem ao corpo, não fosse o segredo perturbante do saco.
Claro que na aldeia se falava constantemente daquele mistério e o padre servia-se dele aos domingos, para incentivar o terror a Deus. As crianças diziam que nele (no saco e não em Deus) dormia um monstro e as senhoras benziam-se quando alguém falava no nome da Senhora Müller e sugeria que a pobre mulher estava muito bem embrulhada no saco.
A padeira remexia desconfiada a farinha que vinha do moinho e provava-a antes de fazer a massa. Mas no final, todos comiam do pão, até mesmo o padre e as beatas nas suas metaformoses religiosas de pão que se transforma em corpo.
- O corpo transforma-se em ar!
(Era assim que o Senhor Müller explicava a morte.)
O moleiro morreu no próprio moinho, numa tarde sem vento. Antes de se ocuparem do corpo, os aldeões dirigiram-se ao saco. Era tão pesado que até o próprio padre teve de ajudar os homens a arrastarem-no para a rua. As crianças esconderam-se no moinho e as mulheres, cheias de terror nos olhos e no corpo, agarravam-se umas às outras. E fizeram bem.
Porque quando a boca do saco se abriu, saltaram para o mundo todas as inspirações possíveis, todo o ar imaginado, desde um furacão até às nuvens mais brancas, de formas variadas. Era um espectáculo bonito de se ver aquele, o ar a explodir de liberdade, cheio de cores, texturas e cheiros.
Os aldeões pensaram ter visto um milagre, mas o padre acusou o moleiro de heresia e o assunto foi literalmente enterrado.
O Senhor Müller ainda disse:
- Guardei tudo isto para que nunca nos faltasse o ar!
E algumas pessoas ouviram-no, já que a sua voz andava à solta, a viajar pelos corpos.
- Guardei tudo isto para que nunca nos faltasse o ar!
E algumas pessoas ouviram-no, já que a sua voz andava à solta, a viajar pelos corpos.