segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

Feitiço

Lisboa fala e as palavras saem amarelas, de asas abertas, chiando pelas ruas como os eléctricos. A boca arqueia-se um pouco mais e a saliva é agora um rio cheio de história, onde tantos outros navegaram antes de mim. Chamo-lhe:
Puta!
e Lisboa ri-se inteira. Inclina-se para trás e a Rua Augusta amplia-se como um pescoço, a maçã de Adão em pleno Rossio.
Beijo-a e subo a Calçada do Lavra, lavrando-lhe o corpo.
Lisboa respira e os pássaros migram. O bater das asas é igual ao estrondo das ondas no oceano e eu mergulho.
Vejo Lisboa de perfil, do Jardim do Torel, onde alguns se conformam com a velhice das coisas.
Ela abraça-me maternal e caem folhas de plátano dos seus cabelos. Têm a forma de mãos e devolvem-me carícias.
Salto.
Braços contra braços.
E perco-me em Alfama. Digo:
Perdoa-me por não conhecer o teu corpo.
Lisboa ri-se, cheia de condescendência.
Desemboco no Martim Moniz e tenho medo das corujas que espreitam das casas.
Lisboa sussurra e eu arrepio-me. Imagino-a nocturna, vampira, silenciosa, Nosferatus. Prometo:
Subirei ao teu castelo esta noite.
Tenho frio nas mãos, por isso compro castanhas. Já não sei quem abraça quem.
Tropeço na calçada e caio no Príncipe Real, redondo como o ventre original.
Voo sobre o Campo Grande e arranco telhas de algumas casas. Rogo pragas aos que lá ficam.
Lisboa canta e o seu fado vem macio e branco como as nuvens.
O meu sono é profundo.
Lisboa sorri, cheia de mistério e segredo.
Engole-me com a lentidão das serpentes.
Chamo-lhe:
Feiticeira.
E fico.