segunda-feira, 12 de novembro de 2007

O fiscal - Capítulo III

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Por Fábio Reynol

A mulher virou-se e foi à cozinha. Enfim o homem encontrara alguém que reconhecia e até respeitava o seu honroso cargo auto-proclamado de fiscal da língua portuguesa. Isso o fez lembrar de sua última diligência, na qual interpelou um padre pelo uso inadequado da palavra "mesmo" como pronome relativo. Sem delongas, ele entrara na sacristia logo após a missa e fora direto ao sacerdote:
- Desculpe-me, reverendo, mas um erro grosseiro foi cometido hoje em sua homilia.
- A que se refere? Virou-se o padre com ares de preocupação.
- Lembra-se de quando se referiu ao cálice do altar?
- Sim. O que o senhor tem contra o mesmo?
- É exatamente isso, "o mesmo" não é adequado. Na verdade, eu o considero um erro horroroso de estilo. Eu devo pedir que o senhor não use mais "o mesmo".
- Quer dizer que eu não posso usar o mesmo porque o senhor não gosta do estilo dele?
- É mais do que isso, reverendo. Ele faz parecer que o senhor é pouco versado na língua, compreende?
- O senhor está dizendo que o cálice que eu utilizo na liturgia faz as pessoas julgarem a minha educação, por isso eu não devo mais usar o mesmo?
- O senhor não entendeu, padre. Não é o cálice a questão, ele pode continuar, só peço que o senhor não use mais "o mesmo".
- Que cálice devo utilizar então?
O fiscal perdeu a paciência e as estribeiras e berrou com o funcionário de Deus:
- O MESMO, PADRE!
E o padre desceu das tamancas eclesiais:
- Ponha-se para fora daqui seu maluco de... As demais palavras do padre lhe escaparam da memória, talvez por serem totalmente inadequadas a um vocabulário sacerdotal. Enquanto o homem de Deus disparava ofensas contra o fiscal, o homem dos vocábulos foi arrastado para fora da igreja pelos braços do sacristão. Desde então ele decidiu apresentar suas credenciais de fiscal antes de interpelar qualquer outro infrator. Isso deveria lhe garantir um mínimo de respeito.
O tratamento que agora recebia da mulher era prova disso. Nunca havia sido recebido com tanta deferência desde que se aventurara nessa perigosa profissão. O espanto pela educada recepção e o flashback da humilhação na sacristia o fizeram distrair a ponto de só agora perceber o local onde estava. A sala parecia ter saído de um página de Eça de Queiroz. Uma cristaleira do século XIX com licoreiras coloridas parecia ser a peça mais nova do recinto. Em cima do móvel um galo de louça preto de crista vermelha fitava uma coleção de mais de vinte pratos ornamentais na parede oposta. Pesadas cortinas de veludo mantinham o sol quase completamente do lado de fora.
Sem tirar o traseiro do assento, o fiscal esticou o pescoço para os lados aproveintando-se da ausência momentânea da proprietária. Observou o ponto que mais lhe chamou a atenção e o anotou imediatamente em seu bloco: "Ausência de livros de qualquer espécie. Sem evidências de consultas freqüêntes à gramática, nem mesmo um mini-dicionário à vista. Possível biblioteca no andar superior (?)". Deparou-se de repente com uma foto antiga na parede de uma casa de campo em meio a um vinhedo, imaginou que lugar seria aquele e meteu novamente o bloco no bolso. (continua)