quinta-feira, 29 de novembro de 2007

Margareta na bicicleta

A Margareta tinha sete, mascava chiclete e usava bandolete no alto da testa. Qual foguete em dia de festa vinha Margareta pela praceta em cima da sua bicicleta. Pois logo ali foi cair na valeta da praceta a pobre Margareta da bicicleta. E naquilo engoliu a chiclete, perdeu a bandolete e partiu a bicicleta. Tinha sete a Margareta e desde esse dia nunca mais foi foguete em dia de festa, por já não querer a bicicleta nem andar pela praceta a mascar chiclete. Dizem que a culpa é da valeta, mas eu acho que isso é tudo treta! A culpa é só de Margareta que, depois dos sete, já não quis a bandolete nem ser mais foguete.

quarta-feira, 28 de novembro de 2007

O sonho do psicanalista

O psicanalista sonhou o sonho da sua vida e nesse sonho era ele que se deitava no divã. Falava para o tecto. Não demorou a perceber que afinal falava consigo próprio, pois também ele se sentava na cadeira do psicanalista.
No sonho sonhava que se deitava, embora já estivesse deitado. No fundo, a sensação era a de se afundar mais um pouco no divã. Sentia-se extremamente confortável. Pedia: "Analise-me!" e o psicanalista retorquia: "Analise você!". Um deles olhava para o tecto, o outro olhava para o primeiro.
Silêncio, um silêncio profundíssimo e ele um pouco mais deitado do que antes, no fundo de si mesmo, cada vez mais no fundo. Uma voz pedia-lhe: "Fale-me dos seus sonhos!" e ele reclamou silêncio, um pouco mais de silêncio, ainda mais silêncio, o maior silêncio de todos. Explicou: "Aquele silêncio que vem de dentro e é opaco, impenetrável". Ele deitado no divã e sentado na cadeira: via-se a si próprio na posição do outro e já não sabia quem era.
Quis falar de um sonho e tentou lembrar-se de um. Contou que estava deitado num divã, que pedia ao psicanalista: "Analise-me!" e que este lhe retorquia: "Analise você!". Depois disse que afinal aquilo não era um sonho, que era o momento dentro do sonho e que portanto era real. Tentou falar de outros sonhos e, quando abriu novamente a boca, não tinha voz. O psicanalista deixara de o ouvir, observava-o apenas. Ele deitado no divã a esbracejar, sem uma palavra para dizer.
(Visto assim, do lugar do psicanalista, o psicanalisado mais parecia um náufrago. Morreria afogado no divã a qualquer momento.)
O psicanalista ainda disse: "Fale-me de um sonho que não esse!" e o outro, cada vez mais deitado, queria dizer-lhe bem alto: "Só conheço os sonhos dos outros", mas a sua boca não produzia sons.
Na manhã seguinte, o psicanalista acordou no seu próprio divã e não conseguia levantar-se. Agitava os braços no ar, agarrava-se às almofadas, mas tudo parecia afundar-se com ele. Era o divã que o engolia e o psicanalista, quando se cansara da luta, deixou-se estar naquela enorme boca.
Tinha a esperança de que se tratasse de um sonho dentro do sonho.
Mas era evidente que não.
O psicanalista não sabia nada sobre o seu universo onírico. De facto, só conhecia os sonhos dos outros, alimentava-se deles, vivia para eles. E naquele dia, os outros – unidos por aquele divã e já sem sonhos para sonhar – comiam-no vivo. Para terem os seus sonhos de volta.
(O chamado sonho contra sonhador.)

terça-feira, 27 de novembro de 2007

Western revisited: Lucky Luke

Terça-feira, dia oficial das séries.
Estreia hoje a série "Western revisited".

Acendi a luz e tive a certeza: vi esta manhã Lucky Luke.
A bem dizer, não o vi: na parede branca do quarto estava apenas a sua sombra. Portanto corrijo: esta manhã quase vi Lucky Luke. A parede enorme e ele alinhado ligeiramente à direita, um lenço esvoaçando no pescoço. Trazia o mesmo chapéu de abas largas, o cano da pistola ladeando a perna em arco. Estávamos frente a frente e ouvi ao longe uma harmónica de sopro.
Fechei os olhos e depois a luz. A música calou-se.
Depois reacendi o candeeiro e lá estava ele espelhado na parede, a arma ainda arrumada no cinto, os braços afastados do corpo como quem se prepara para o voo.
De repente ouvi um tiro e pensei que morria.
Mas não, Lucky Luke não se tinha mexido: a pistola junto à cintura, os braços ainda suspensos. E no entanto, inexplicavelmente, assaltou-me a dor da morte.
Olhei para mim: no centro do corpo um furo muito redondo. Gritei um grito de vida e o sangue saiu inteiro com as palavras. Vi-o ainda contra a parede, o chapéu impecável e as botas muito assentes no chão. A arma ainda em repouso. Misteriosamente.
Só então me lembrei. Lucky Luke, sempre mais rápido do que a própria sombra.

Terça-feira - Dia oficial das séries

"É terça-feira". Bela música do Sérgio Godinho.
Em memória desta terça-feira (da música e não do dia) apeteceu-me estrear qualquer coisa hoje, terça-feira, 27. Só pelo gozo de estrear!
Vai daí, inventei que a terça-feira é o dia oficial das séries!
Ou seja, às terças sai um texto que se integre numa série qualquer.
Acham bem?
Eu acho!

segunda-feira, 26 de novembro de 2007

Diálogo vítreo

Duas pessoas estão lado a lado numa igreja. Não se conhecem. Um senhor e uma senhora: ele com gabardina de trabalhador independente, ela com coluna vertebral igual à das beatas. Olham para cima procurando a luz que desce do céu (não porque estejam a rezar mas porque contemplam os vitrais de uma janela). A senhora fala primeiro.

- Desculpe, está a rezar?
- Não, estou só a olhar.
- Então posso falar consigo!
- Por acaso, não. Falar interrompe o olhar, sabe?
- Ah, que bela frase. É da Bíblia?
- Não, acho que é minha, mas não tenho a certeza.
- Se calhar é mesmo da Bíblia.
- Se calhar.
(Silêncio.)
- O senhor gosta destes vitrais.
- Sim, gosto.
- Eu também. Parece que Deus desce do céu pela janela, não é assim?
- Não, não desce.
- Não desce?
- Não, Ele está no meio de nós.
- É verdade! O menino é padre?
- Não, sou arquitecto.
- Mas conhece bem a Bíblia.
- Não, nunca a li.
- Então vem muito à missa.
- Não, nunca vou à missa.
- Mas isso é pecado.
- Se calhar. Mas eu não sou crente, sabe?
- Não é crente? Então o que está a fazer nesta igreja?
- A ver os vitrais!
- Mas só vai à igreja quem quer rezar.
- Ora essa! Não posso ir à igreja só ver os vitrais?
- Não!
- Bom, a senhora também não está a rezar.
- Mas vou começar agora! Vou rezar por si, para que veja a luz.
- E se eu não vir a luz?
- Foi porque Deus desistiu de si.
- Desistiu de mim? Mas isso é pecado!
(Silêncio. Agora é ele que fala primeiro.)
- Vou-me embora.
- Faz muito bem. E só volte se for para rezar.
- Está bem! Entretanto vou ali acender uma vela por si.
- Mas você não acredita!
- Em Deus não, mas tenho muita fé em si!
- E por que quer acender uma vela por mim?
- Para que você veja a luz.
- Mas eu já vi a luz, você é que não!
- Para mim, foi você que não viu. É tudo uma questão de fé!

(Despediram-se respeitosos. O senhor acendeu uma vela pela senhora e a senhora rezou pelo senhor. No final olharam um para o outro e depois para os vitrais da janela. Saíam da igreja um pouco mais iluminados do que antes. Graças aos vitrais.)

sexta-feira, 23 de novembro de 2007

Os dez dedos das mãos

Aquela rapariga lambe os dez dedos das mãos. Está sentada sozinha numa mesa de quatro e come uma salada agressiva, cheia de pormenores coloridos. Tem um garfo numa das mãos e na outra três anéis. Espeta o garfo na salada e encosta-o aos dedos da mão dos três anéis, que ajudam a dobrar a folha de alface. Olha só para o prato enquanto come e é agora que lambe os dez dedos. Um a um e sempre o mindinho primeiro (só depois os outros, por ordem de chegada). De vez em quando não lambe mas chupa. Faz imenso barulho, mas mal se ouve porque a música do bar toca mais alto.
Interesso-me pela rapariga que lambe os dez dedos das mãos.
No final da refeição rápida lambe apenas quatro dedos: os dois polegares, um dos indicadores e um mindinho. É rápida com a língua e com as mãos. Limpa depois a saliva dos dedos nas calças de ganga, puxa uma mala inquieta e tira do seu interior um pacote de tabaco de enrolar e uma bolsa velha, que tem na frente um arco-íris estranho de loja marroquina. Da bolsa emerge uma pequeníssima caixa de cartolina e, de dentro da caixa, uma folha de papel muito frágil. Deita tabaco para cima da folha, enrola-a com ambas as mãos, lambe uma das margens e, quase por magia, nasce um cigarro. A rapariga tem um esboço de sorriso no rosto, lambe novamente o papel, depois um dos dedos, mete o cigarro na boca, roda-o com a língua, acende e fuma.
Entretanto começa a roer as unhas de ambas as mãos, passa o cigarro de um dedo para outro. Quando a beata deixa de minguar, a rapariga apaga o cigarro com força, esmaga-o no cinzeiro. E de repente, acontece algo verdadeiramente imprevisível: para meu grande espanto, a rapariga lambe a palma da mão inteira. Explico: põe a língua de fora, estica-a para os lados exibindo-a em toda a sua amplitude e lambe a mão dos três anéis, que ergue alta e muito aberta.
Descontrolo-me com aquela visão. Levanto-me sobressaltada, dirijo-me à rapariga: "O que é que está a fazer?". Ela olha-me de lado, quase indignada. Responde: "Estou a lavar-me!" e dobra-se sobre si mesma para lamber o seu próprio lombo.

Era evidentemente a primeira mulher-gata que eu conhecia. Uma mulher fantástica e uma gata extremamente limpa, as duas numa só. A partir desse dia invejei a rapariga que lambia os dez dedos das mãos. Por ela me fazer sentir realmente incompleta.

quinta-feira, 22 de novembro de 2007

O fiscal - Capítulo IV

Para perceber o que aqui se passa, clique aqui


Por Ana Pessoa


Depois lembrou-se do que o trouxera ali e, antes que a mulher falasse outra vez, apressou-se com a acusação: "A senhora fala mau português!". A autora gargalhou da cozinha, onde começou a preparar um chá. A porta entreaberta deixava ver o seu riso não contido e o homem corou de raiva. Respondeu misteriosa: "Isso não existe, senhor fiscal!" e o homem desesperou com aquela afronta. Saltou no sofá como um sapo: "Como assim, senhora?" e a mulher retorquiu calmamente: "Não há mau nem bom português, senhor fiscal. A língua é de quem a fala!".
O fiscal cortou a conversa com um gesto próprio de maestro perante a orquestra e disparou num compasso acelerado apontando o dedo indicador para o tecto: "A senhora é uma assassina de palavras: diz fato com um "c" ao meio, escreve ótimo com um "p" ao meio, são tiros directos no coração das palavras!". A mulher lançava a cabeça para trás para que as gargalhadas saíssem fluidas. Depois regressou à sala com um tabuleiro dançando nos braços ao som das chávenas que batiam delicadas nos pires.
Estavam agora sentados frente a frente, ela igual ao sol (cabelos eriçados como raios e o corpo avolumado, muito convexo) e ele igual a uma lua quase nova, minguando ainda (cabelo a escorrer pela testa e a coluna dobrada para a frente, um pouco côncavo).
Ela disse quase maternal que não era criminosa, que o português tinha vestígios de uma língua antiga e concluiu sem mais explicações: "Mas os polícias não têm de saber latim, não é assim?". Enquanto o senhor fiscal barafustava dizendo que não era polícia, a senhora espantava-se com a sua nova frase rimada. O homem escreveu no seu bloco: "problemas graves de isolamento, diz que português é latim". Depois fechou o caderno com uma violência teatral e impôs-se: "Minha senhora, eu sou o fiscal de palavras!".
A mulher olhou-o como se o visse pela primeira vez e o homem assustou-se com aquele olhar, saltou novamente no sofá e perguntou rápido: "Que foi?". A mulher abriu muito os olhos e depois os braços (a chávena muito equilibrada na mão direita, o pires pousado na esquerda). "Senhor fiscal, acabo de descobrir a sua palavra!" e o homem, um pouco mais curvado do que antes, repetiu várias vezes: "Como é que é?".
A autora sorveu ruidosa o seu chá e disse como quem revela um milagre: "Desumbigar. O senhor fiscal precisa de se desumbigar!". O homem estava confuso, repetiu mais uma vez a sua pergunta e a mulher esclareceu cheia de poesia: "O senhor fiscal precisa de sair de dentro, de se abrir ao mundo, de destorcer o cordão umbilical, de subir do ventre até aos olhos, de saltar para fora".
Fez-se silêncio à excepção do chá que continuava a estalar nos lábios da senhora. A palavra estranha ao ouvido regressava ao tímpano do homem, ganhava volume na boca, tinha um sabor qualquer a infância. O fiscal constatou: "Essa palavra não existe!", mas a mulher encolheu os ombros despreocupada. "Agora que eu a disse, passa a existir!".
O homem saltou outra vez: estava indignado. Abanou a cabeça e o bloco de notas no ar e, enquanto abria o caderno, dizia ameaçador: "A senhora pode ir presa por isto!". Ordenou muito formal: "Nome completo e profissão" e a mulher obedeceu prontamente: "Maria Apalavrada, inventora de palavras.".
A mão do homem congelou no bloco de notas. O fiscal ironizou ainda: "Ai sim? E que palavras inventa a senhora?". "Todas as que não existem e deviam ser inventadas!", respondeu criminosa a autora. O verbo desumbigar reapareceu no ouvido do homem e ele desejou secretamente que a palavra existisse. A mulher achou que tinha ganho um cliente por isso discursou: "Invento e vendo palavras. É, de facto, um óptimo negócio porque as pessoas precisam de se exprimir e não têm palavras. Você precisava do verbo desumbigar para organizar o seu pensamento. "Desumbigar" é o seu verbo, senhor fiscal! Há uma palavra para cada um de nós!".
Quase sem querer o homem riu e ela riu com ele.
Só então o homem tirou o chapéu e a mulher brincou dizendo: "Um negócio de tirar o chapéu, não é, senhor fiscal?" e ele riu com aquela frase tão bem dita. De repente, o senhor endireitou as costas, era agora mais homem do que fiscal, e quis saber: "E a sua palavra, qual é?".
A mulher sorriu o seu melhor sorriso. "Eu também tenho um verbo: inversar! Preciso do inverso das palavras, de inventar versos, de inverter o pensamento. Toda eu sou versos invertidos!".
O homem recostou-se no sofá, já não saltava, as palavras ganhavam subitamente um outro sabor.
E foi assim que naquela tarde, o senhor fiscal e a inventora de palavras viram o inverso de um no outro e gostaram do que viram. Ele desumbigou e ela inversou, entre os dois havia um fio invisível de sílabas que os ligava.
No final da noite já não se sabia quem era quem, a língua de um era a língua do outro.
FIM

quarta-feira, 21 de novembro de 2007

Declaração

Quando o dia caiu inteiro e o mundo a espreitou através da janela, a rapariga fechou as persianas e os olhos para não o ver. Queria sentir-se sozinha e, pela primeira vez, disse: "Amo-te!". Era um sentimento estranho, até porque a declaração não era dirigida ao mundo nem à janela. Na verdade não era dirigida a ninguém, já que estava sozinha e queria realmente sentir-se só. A rapariga diria mais tarde que amar era um estado de espírito. Mas naquela altura não sabia disso e quis esquecer-se.
Abriu o frigorífico para comer o resto de qualquer coisa e por momentos assaltou-a a ideia de que amava aquele electrodoméstico (a porta cheia de ímanes, a pequena luz ao fundo, o frio sempre pálido, qualquer coisa com sabor a fresco). Era um frigorífico agradável ao toque e ela acariciou-o distraída como as grávidas fazem às barrigas. Claro que, quando desligou a luz do quarto se riu de si própria. Era evidente que não amava o frigorífico.
Antes de adormecer, pensou naquele sentimento de pertença e apercebeu-se de que amava simplesmente o regresso a casa. Que regressar tinha um certo toque de amor e dedicação. Que aquele electrodoméstico simbolizava esse regresso. Estava extasiada com a sua descoberta.
Dormiu toda a noite um sono profundo e na manhã seguinte escreveu uma declaração de amor.
"O teu corpo é para mim um regresso a casa". Afixou-a na porta do frigorífico, releu-a mil e uma vezes.
Claro que a declaração não era dirigida ao electrodoméstico. Na verdade, mais uma vez, não era dirigida a ninguém.
A rapariga sentiu subitamente uma enorme urgência em apaixonar-se e saiu de casa a correr. Tinha imensa pressa.
Era, de certa forma, um regresso a si própria.

Nota aos leitores assíduos: Agora sim, um regresso a sério!

sexta-feira, 16 de novembro de 2007

A decoradora

O filho da decoradora tinha 9 anos quando disse à mãe: "Só agora é que percebi o que fazes.". Estavam a lanchar na cozinha, os dois a beber leite e a comer pão com manteiga. A mãe não percebeu logo a frase e o filho explicou: "Antes achava que decoravas mesmo as casas!".
A mãe engoliu o último gole de leite e esclareceu que era isso mesmo que ela fazia. O filho continuou: "Não, mas tu decoras no sentido de pôr bonito e eu achava que decoravas no sentido de decorar mesmo, como quem sabe a tabuada!". A mãe riu-se: "Então tu achavas que a mãe ia a casa das pessoas decorar a tabuada?". "Não, achava que ias a casa das pessoas memorizar a casa inteira para saberes tudo-tudo-tudo o que as pessoas têm lá dentro." A mãe riu-se mais ainda, abanava a cabeça com tal disparate. "Então, e de que serviria o meu trabalho?".
O miúdo encolheu os ombros e disparatou. Depois disse: "Às tantas fazia mais sentido seres decoradora da tabuada!" e a mãe divertia-se. O filho entusiasmou-se, tinha imensos projectos para a mãe, levantou os braços, disse quase num grito: "Podias ser assim uma espécie de psicóloga das casas! Entravas, decoravas o que as pessoas tinham lá dentro e depois debitavas tudo!".
A mãe arrumava os pratos no lava-loiças e repetiu atónita: "Psicóloga das casas?". O filho exclamou pela primeira vez um "evidentemente" e, de súbito, era como se já não tivesse 9 anos. A decoradora perguntou: "E o que faz a psicóloga das casas?". O filho fez uma cara feia, voltava a ter 9 anos. "Ó mãe! O mesmo que as psicólogas da cabeça. Vai lá dentro ver o que existe, para as pessoas saberem quem são!".
A mãe não disse nada.
Depois de lanchar, o filho foi brincar com os vizinhos e a decoradora afundou-se no sofá, afogou-se, fundiu-se. Era urgente olhar para a sua própria casa, contemplá-la, examiná-la, decorá-la. Intitulou-se psicóloga das casas e começou pela sua. Queria arrumar a casa toda para se conhecer um pouco.
Disse: "Antes de mais, sou mãe!" e começou pelo quarto do filho.
Era o início da decoração (no sentido da tabuada).

quarta-feira, 14 de novembro de 2007

Estado líquido

E ao ver o mar morria um pouco por nascer de outra forma, os olhos vacilavam nas ondas e a boca enchia-se de água. Sentia-se - por assim dizer - inteira e naquele dia, quis ser mar e foi desaguar na maré baixa, longínqua como os horizontes. Um erro de perspectiva e, ao esticar as mãos, os dedos pareciam dedilhar as ondas, as unhas crepitavam à superfície com a espuma. Os pés enterravam-se finalmente na água e as pernas eram longas, movediças, instáveis. Disse: "Sou mar!" e saboreou o último raio de sol no rosto. Depois dissolvera-se na maré, era agora um corpo em estado líquido. Ao provar a sua saliva, disse de si para si: "Sou salgada!". Um corpo dentro de outro corpo, sem limites, era uma parte do todo. De repente desejou que alguém a bebesse, quis ser o sabor salgado numa língua qualquer. Mas normalmente queria ser apenas sal, sonhava que era um grão no topo de uma salina, branca como os sonhos bons. De resto parecia reconciliada com o seu corpo em estado líquido. Era uma parte de mar, esquecia-se muitas vezes do corpo anterior a este. Quando tentava entender-se, dizia de si própria: "Sou o sal da água" e rebentava vaidosa com as ondas.

segunda-feira, 12 de novembro de 2007

O fiscal - Capítulo III

Para perceber o que aqui se passa, clique aqui.

Por Fábio Reynol

A mulher virou-se e foi à cozinha. Enfim o homem encontrara alguém que reconhecia e até respeitava o seu honroso cargo auto-proclamado de fiscal da língua portuguesa. Isso o fez lembrar de sua última diligência, na qual interpelou um padre pelo uso inadequado da palavra "mesmo" como pronome relativo. Sem delongas, ele entrara na sacristia logo após a missa e fora direto ao sacerdote:
- Desculpe-me, reverendo, mas um erro grosseiro foi cometido hoje em sua homilia.
- A que se refere? Virou-se o padre com ares de preocupação.
- Lembra-se de quando se referiu ao cálice do altar?
- Sim. O que o senhor tem contra o mesmo?
- É exatamente isso, "o mesmo" não é adequado. Na verdade, eu o considero um erro horroroso de estilo. Eu devo pedir que o senhor não use mais "o mesmo".
- Quer dizer que eu não posso usar o mesmo porque o senhor não gosta do estilo dele?
- É mais do que isso, reverendo. Ele faz parecer que o senhor é pouco versado na língua, compreende?
- O senhor está dizendo que o cálice que eu utilizo na liturgia faz as pessoas julgarem a minha educação, por isso eu não devo mais usar o mesmo?
- O senhor não entendeu, padre. Não é o cálice a questão, ele pode continuar, só peço que o senhor não use mais "o mesmo".
- Que cálice devo utilizar então?
O fiscal perdeu a paciência e as estribeiras e berrou com o funcionário de Deus:
- O MESMO, PADRE!
E o padre desceu das tamancas eclesiais:
- Ponha-se para fora daqui seu maluco de... As demais palavras do padre lhe escaparam da memória, talvez por serem totalmente inadequadas a um vocabulário sacerdotal. Enquanto o homem de Deus disparava ofensas contra o fiscal, o homem dos vocábulos foi arrastado para fora da igreja pelos braços do sacristão. Desde então ele decidiu apresentar suas credenciais de fiscal antes de interpelar qualquer outro infrator. Isso deveria lhe garantir um mínimo de respeito.
O tratamento que agora recebia da mulher era prova disso. Nunca havia sido recebido com tanta deferência desde que se aventurara nessa perigosa profissão. O espanto pela educada recepção e o flashback da humilhação na sacristia o fizeram distrair a ponto de só agora perceber o local onde estava. A sala parecia ter saído de um página de Eça de Queiroz. Uma cristaleira do século XIX com licoreiras coloridas parecia ser a peça mais nova do recinto. Em cima do móvel um galo de louça preto de crista vermelha fitava uma coleção de mais de vinte pratos ornamentais na parede oposta. Pesadas cortinas de veludo mantinham o sol quase completamente do lado de fora.
Sem tirar o traseiro do assento, o fiscal esticou o pescoço para os lados aproveintando-se da ausência momentânea da proprietária. Observou o ponto que mais lhe chamou a atenção e o anotou imediatamente em seu bloco: "Ausência de livros de qualquer espécie. Sem evidências de consultas freqüêntes à gramática, nem mesmo um mini-dicionário à vista. Possível biblioteca no andar superior (?)". Deparou-se de repente com uma foto antiga na parede de uma casa de campo em meio a um vinhedo, imaginou que lugar seria aquele e meteu novamente o bloco no bolso. (continua)

quinta-feira, 1 de novembro de 2007

Página 161

Perguntaram-me:
Qual é a frase que se encontra na 5.ª linha da página 161 do livro que andas a ler?
É que no cinzento de Bruxelas tudo acontece.
Admito: gosto destas correntes e fui a correr para casa ler!
E ao reler a frase da 5.ª linha da página 161, adorei-a um pouco mais do que antes.
É que gosto tanto dela que quase decidi não a partilhar convosco.
Até porque esta frase é um pouco complexa para a cortar: traz um travessão no ventre e ganha voz a meio.
Vai daí, decidi transcrever tudo, desde o final da 4.ª linha até ao final da 6.ª, para que a frase e a voz fossem completas:
"Já de porta fechada, tinha-a encarado - «Quero vê-la muito bem. Olhe para cá...»"
(Lídia Jorge, Combateremos a Sombra, D.Quixote, 2007)
Dita assim, esta frase é ainda mais estranha do que a pergunta.
Um pedido ("Olhe para cá") em forma de ordem, provavelmente de homem para mulher. Duas personagens à porta fechada, encarando-se e tratando-se por você. Faz-me querer chegar à última página ainda hoje!
Para que a corrente não acabe, pergunto a mais uns quantos.:
Cata, OrCa e Claudette, olhem para cá, qual é a frase que se encontra na 5.ª linha da página 161 do livro que andam a ler?

Nota aos leitores assíduos: vou nas asas dos livros para uma terra a cores e volto daqui a imensos voos.