domingo, 31 de dezembro de 2017

Por último

O último a chegar, o último a sair, o último a rir, na última hora, no último instante, em última instância, em último recurso, o último cartuxo, o último tango, no último dia, no último domingo, o último voo do flamingo, em último caso, em última análise, por último, ultimamente, a esperança é sempre a última

segunda-feira, 25 de dezembro de 2017

Veio de longe.

Veio de longe. Veio do Norte. Veio de repente.
Veio no inverno. Ao fim da tarde.
Veio num impulso. Num frenesim. Numa rajada.
Veio assim do nada.
Com força. Com fúria. Com euforia.
E passou por nós como um sopro. Como uma onda. Como um fantasma.
Veio radiante. Veio simples. Selvagem.
Veio à vontade. À toa. À solta.
Quem viu, sabe que viu. Mas ninguém lhe deu um nome. Ninguém sabe o que era nem ao que vinha.
Estamos todos à janela. À espreita. À espera que passe outra vez.
Que venha depressa. De qualquer maneira. 
Aos ziguezagues. Aos pinotes. Aos trambolhões.

quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

Eu sou. Eu sei.

Eu sou. Eu sei. 
Eu dou. Eu rei.
Eu com. Eu sem.
Eu vou. Eu nem.
Eu vim. Eu vi. 
Eu fiz. Eu quis. 
Eu li. Eu ri.
Eu snif. Eu nhec.
Eu cá. Eu lá. 
Eu sim. Eu não. 
Eu tic. Eu tac.
Eu cof. Eu choc.
Eu som. Eu sol.
Eu dor. Eu cor. 
Eu vrum. Eu flor. 
Eu luz. Eu voz.
Eu céu. Eu chão. 
Eu pé. Eu mão.
Eu mar. Eu ar. 
Eu mãe. Eu pai.
Eu mas. Eu mais.
Eu cão. Eu pão.
Eu ai. Eu ui.
Eu bem. Eu mal.
Eu já. Eu plim.
Eu splash. Eu fim.

segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

Pós-parto

O leite sobe. A neve cai. A noite cai. 
Uma noite muito longa e fria. 
Uma noite imensa, que nunca mais vai acabar. 
É uma noite para toda a eternidade. 
Cai por terra como um assombro. E não há como escapar.
O meu filho chora. Eu choro. As minhas maminhas choram também
Caímos todos das nuvens. Caímos na tristeza. Caímos em nós. 
Eu e o meu filho na noite: dois mamíferos melancólicos. 
Ando a ler Marguerite Duras. Uma edição mal-ajeitada. 
As folhas desprendem-se à medida que leio. Caem que nem tordos.
É uma leitura para este outono. 
As folhas caem. Ele dorme. E eu leio.

“L'amant est venu près d'elle, il a mis son corps contre le sien. Il dit qu'il sait ce qu'elle a en ce moment, ce désespoir, cette peine. Il dit que c'est comme ça, quelquefois, à une certaine heure de la nuit, ce désarroi, qu'il sait comme on est perdu. Mais que ce n'est rien. Que c'est comme ça pour tout le monde la nuit quand on ne dort pas. Il dit que peut-être ils vont s'aimer, qu'on ne sait pas tout de suite.
Et puis il la laisse pleurer.
Et puis elle dit que peut-être elle a faim.” (L’amant de la Chine du Nord, Marguerite Duras)

Mais uma folha caída. Mais uma noite imensa. 
E então levanto-me e como pão com manteiga.
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domingo, 3 de dezembro de 2017

Mary John é Livro do Mês!

Apesar do frio e da falta de luz, o mês de novembro não correu nada mal.
A "Mary John" foi selecionada livro do mês pelos leitores que participaram na votação da CEPE (Coordenação do Ensino de Português) na Bélgica e na Holanda: https://escritores.online/mary-john-ana-pessoa-livro-do-mes-novembro/
LIVRO DO MÊS é uma iniciativa conjunta do Instituto Camões e da plataforma escritores.online.
Obrigada a todos os leitores que participaram na votação!


quinta-feira, 30 de novembro de 2017

Uma vez servi hambúrgueres aos Xutos e Pontapés

Hoje é o último dia de novembro e começou a nevar em Bruxelas. O meu filho nasceu há três dias. Neste momento está com soluços. Era um dia quase perfeito, mas uma amiga deu entrada no hospital e o Zé Pedro morreu. Vejo a neve a cair e canto O Homem do Leme dentro da cabeça.
Uma vez servi hambúrgueres aos Xutos e Pontapés. É mesmo verdade. Foi numa roulotte do Rock in Rio. O Tim fez o pedido e eu cumpri todos os desejos: coca-colas, cervejas, batatas. O Tim olhou para a conta: "Eh pá, acho que te enganaste." Eu desculpei-me: "É que eu não sei fazer contas". O Tim ralhou-me. "Mau, mau, Maria". Fez uma piada qualquer sobre tabuada, a que se seguiu um esforço conjunto: eu e o Tim a fazer a conta juntos. Ora, um hamburguer assim, outro assado, colas, cervejas, este era com menu, o outro não era. Às tantas, admiti: "Não consigo concentrar-me". O Tim riu-se, chutou um número. Eu perguntei: "Mas eu enganei-me na conta para cima ou para baixo?" Ele disse: "Para baixo". Eu disse: "Então, não faz mal!" O Tim riu-se. Insistiu. Aquelas coisas de sempre: nem pensar, quero pagar. Eu disse que estava bem assim. Sou fã e tal.
"De certeza?" Eu disse: "De certeza". Ele disse: "Coitado do patrão!" Eu encolhi os ombros. O patrão era um tipo sujo e desonesto, mas eu não disse isso. Na verdade, não devo ter dito nada. E nem fiz uma piada sobre a minha alegre casinha. Fiquei para ali com cara de parva a dar uns quantos chutos à minha desconcentração. Depois eles foram-se embora, os Xutos e Pontapés, com aquele jeito inventado de serem rockeiros à portuguesa, os seus hambúrgueres e cervejas e coca-colas, e eu fiquei a vê-los ir com a sensação de que um dia escreveria sobre isso. O meu momento desconcentrado com os Xutos e Pontapés.
Neva lá fora e eu canto: "E uma vontade de rir nasce do fundo do ser. E uma vontade de ir, correr o mundo e partir, a vida é sempre a perder".
Não há dias perfeitos. Não há salvação eterna. Não há deus que nos valha.
Mas há canções extraordinárias. E pessoas.
Incluindo alguns artistas.

quarta-feira, 22 de novembro de 2017

Estou grávida até dizer chega

Estou grávida até dizer chega. Trago aqui dentro um parasita, que não é uma lombriga nem um cuco. É um segredo humano, muito bem guardado. Escondi-o no meu baú reprodutor há uns meses e trato-o com grande sigilo por causa dos predadores e dos espíritos maus. Nunca se sabe. 
Ssshhhiu! É o meu fruto secreto. 
E nunca sonho com ele. Nunca escrevo sobre ele. 
Mas penso nele o tempo todo.
O meu esboço de gente. Ainda sem rosto, sem nome, sem trejeitos.
Ninguém o conhece. Ninguém sabe ao que vem. Mesmo eu, nunca o vi mais gordo. 
Para já, rebola e dá pontapés. É o meu hóspede clandestino. E acho que gosta de viver aqui dentro.
De manhã, olho-me ao espelho e observo a minha barriga toda emproada, o meu umbigo do avesso. Sou um pequeno astro.
As pessoas sorriem para mim na rua, fazem-me perguntas: É o primeiro filho? É menino ou menina? Está para breve?
As perguntas surpreendem-me. Como é que eles sabem? Quem lhes contou o meu segredo de Estado? Agarro-me à barriga, respondo a bichanar. Bshiu, bshiu, bshiu!
Para a semana revela-se o mistério. Acabam-se os segredinhos. E eu, por acaso, tenho pena. Voltarei a ser uma pessoa muito sozinha e este fruto humano será quem ele quiser ou puder ser. Passará a existir pelo seu próprio pé. E terá o nariz Pessoa, os olhos Bandarra, o feitio do pai, a energia das avós. Será muito parecido comigo, muito parecido com o Homem Ilimitado. Será uma versão melhorada, uma cópia barata, o completo oposto, o que for.
Aí vem ele. O forasteiro. A mergulhar de cabeça no mundo. Igualzinho a todos os outros. Diferente de todos os outros.
Uma pessoa a sério.

Não dá para esconder mais esta verdade.

sexta-feira, 17 de novembro de 2017

A-ma-re-lo

Curioso! Os últimos livros que entraram cá em casa são todos amarelos. Começo a achar que os comprei por causa das capas. Sei lá. O amarelo dá-me pica e vontade de rir.
A-ma-re-lo. Sempre gostei da palavra e da cor.
De resto, esteve um belo dia de outono, deixem-me que vos diga. O sol pousou torrado na varanda e eu sentei-me por ali a permanecer. Aproveitei e tirei uma foto aos livros amarelados. Assim:


Nisto topei o vaso das ervas daninhas, onde nasceu uma flor amarela muito pequena. Deve ser uma florzinha lixada para nascer assim, no meio do frio e das plantas beras. Se calhar ela própria é uma espécie invasora. Não sei.
Ao longe, o outono. As folhas das árvores por todo o lado: no chão, nos ramos, a esvoaçarem por aí. Delicadas e amarelas a dar com pau.
Uma amiga tem um casaco amarelo lindo. Eu nunca tive um casaco amarelo, mas tenho um caderno amarelo que tem uma banana na capa. Gosto da expressão francesa "avoir la banane". Nunca usei esta expressão. Algumas pessoas tratam-me por Ana Banana.
Há uns anos fui vacinada contra a febre amarela. Lembrei-me agora. Tenho saudades das páginas amarelas.
E mais nada.
Gostava barés de ter um casaco amarelo.

sábado, 11 de novembro de 2017

Eis um discurso extremamente sensato

Bom, não é bem assim. Não podemos ser simplistas. 
Até porque coiso e tal. Antes e depois. Ali e acolá. 
É uma questão extremamente complexa. 
A verdade é que. Trinta e um de boca. O diabo a quatro. 
Se, por um lado, isto, por outro, aquilo. 
Há que analisar os vários fatores. 
Uma vez que. Ainda que. A não ser que. 
Temos de separar as águas. Dar a mão à palmatória. 
E não podemos tirar conclusões precipitadas. 
Sejamos razoáveis. 
Não é por acaso que. 
Causa, efeito. Tiro e queda. São e salvo. 
A história já por várias vezes demonstrou que. 
Vai e vem. Vira e mexe. Leva e traz. 
O mundo atravessa momentos difíceis. 
Antes de mais. Acima de tudo. Além disso. 
E temos de admitir. 
O que der e vier. De mal a pior. É fazer a conta. 
No fundo. De facto. Com efeito. 
E não esqueçamos o seguinte. 
Sempre que. Salvo se. Se bem que. 
É esta a verdade nua e crua. Pura e dura. Curta e grossa. 
Por outro lado, a vontade política sim ou sopas. 
Cara ou coroa. Oito ou oitenta. 
Seja como for, o que está em causa é. 
Porque enfim. A fim de. Assim que. 
De maneira que não nos podemos limitar a. 
Volta e meia. Assim e assado. 
Repare no seguinte. 
Se é verdade isto, ainda é mais verdade aquilo. 
No sentido em que. Ao passo que. À medida que. 
E isso torna difícil, se não mesmo impossível. 
Mundos e fundos. Cobras e lagartos. 
Logo, é natural que. Alhos com bugalhos. Unhas e dentes. 
Há uma linha ténue entre tal e tal.
E de uma coisa tenho a certeza. 
O problema da sociedade atual é precisamente.
Bládiblá.  
Re-béu-béu, pardais ao ninho. 
Já se sabe que. Gregos e troianos. 
Quanto mais disto, menos daquilo. 
Ao contrário do que se previa, verificou-se que. 
Entretanto. No entanto. Porquanto. 
Não podemos ignorar que. 
Preto no branco. Ouro sobre azul. 
Em última análise, interessa saber se. 
Porém. Todavia. Contudo. 
Sem eira nem beira. Sem pai nem mãe. 
Sobretudo, não há respostas simples. 
Poucas e boas. Resmas e paletes. 
Vivemos numa época em que é extremamente difícil coiso. 
Por isso, é como te digo. 
Aguenta. Come e cala. Chuta para canto. 
E, entre uma coisa e outra, venha o diabo. 
Firme e hirto. A par e passo. 
Navegar na maionese. 
E isto não é dizer pouco.

sexta-feira, 3 de novembro de 2017

Tem e não tem

Tem corpo. Tem fogo. Tem fome. Tem cheiro. 
Tem bicho carpinteiro. Tem mau feitio. Tem sangue-frio. 
Tem vistas curtas. Tem costas largas.
Tem mau perder. Tem mau olhado. Tem mau génio.
Não tem troco. Não tem remédio. Não tem razão. 
Tem ambição. Tem frustração. Tem alergia.
Não tem culpa. Não tem cura. Não tem vergonha.
Não tem medo. Não tem emprego. Tem fezada.
Não tem sal. Não tem sol. Não tem tempo. 
Tem bom senso. Tem maus hábitos. 
Não tem jeito. Não tem juízo. Não tem futuro. 
Tem boa boca. Boa onda. Bom humor.
Tem curso superior. Tem amor próprio.
Tem histórias. Tem insónias.
Tem dúvidas. Tem dívidas.
Tem saúde. Tem saudade.
Tem potencial. Tem número de identificação fiscal.
Tem cara de cu. Tem cara de pau.  
Não tem ilusões. Não tem soluções.
Não tem cabeça. Não tem paciência.
Não tem Norte. Não tem sorte.
Não tem certeza. 
Tem personalidade. Tem força de vontade.
Tem enxaquecas. Tem estaleca.
Tem telhados de vidro. Tem sexto sentido.
Tem macacos no sótão. Não tem noção. 
Tem lata. Tem graça. Tem garra. Tem asma.
Não tem papas na língua. 
Tem pelo na venta. Tem problemas.
Não tem pena. Não tem pila. Não tem pinta. 
Não tem ponta por onde se lhe pegue.
Tem corte de cabelo. Tem animal doméstico.
Tem idade para ser tua mãe.

domingo, 29 de outubro de 2017

Aarhus 39 - Festival Internacional de Literatura Infantojuvenil

Ui! Passei uns dias bem bons no Festival Internacional de Literatura Infantojuvenil.
Volto da Dinamarca cheia de pujança e apetite.
Foi assim: dezenas de autores de toda a Europa, uma biblioteca pública de fazer cair o queixo, salas repletas de crianças e adolescentes, debates interessantes sobre inspiração e escrita, leituras ilustradas ao vivo e muitas outras coisas. Segue uma pequena reportagem fotográfica:
Tudo se passou no edifício Dokk1, uma biblioteca upa-upa debruçada sobre o rio.

A cerimónia de abertura contou com a presença de centenas de crianças e da Princesa Mary da Dinamarca.

A seleção de jovens europeus que escrevem para os mais novos coube a
Kim Fupz Aakeson (DK), Matt Haig (UK) e Ana Cristina Herreros (ES).
O jornal dinamarquês "Information" publicou um suplemento literário
dedicado quase exclusivamente ao Hay Festival de Aarhus.
As autoras Aline Sax (BE) e Anna Woltz (NL) discutem identidade e família com o público; Salla Simukka (FI), Cornelia Travnicek (AT) e Endre Lund Eriksen (NO) debatem questões de género e homossexualidade; Michaela Holzinger (AT), Elisabeth Steinkellner (AT) e Cathy Clement (LU) falam sobre férias, liberdade e tédio; David Machado (PT) e Maria Parr (NO) refletem sobre o poder das palavras e das histórias.
Na universidade de Aarhus teve lugar um seminário que incluiu uma divertida sessão com o ilustrador dinarmarquês Cato Thao-Jensen; uma leitura da Maria Turtschaninoff (FI); e uma troca de ideias entre as autoras dinamarquesas Sarah Engell e Sanne Munk Jensen sobre o tema: "Que histórias devem ser hoje contadas às crianças?"

Desta foto constam duas leituras que contaram com ilustrações ao vivo pelo ilustrador dinamarquês Soren Jessen a partir do meu conto e das histórias de Aline Sax (BE), Cornelia Travnicek (AT) and Annette Münch (NO).

As estrelas do festival - Chris Riddell, Cressida Cowell e Meg Rosoff - encantaram e conquistaram.
Na última noite tivemos direito a um jantar à luz das velas. Em cima: eu, Sandrine Kao (FR), Aline Sax (BE), Elisabeth Steinkellner (AT), Annelise Heurtier (FR), Cornelia Travnicek (AT) and Michaela Holzinger (AT). Em baixo, à direita: a equipa portuguesa, constituída pelo David Machado e esta minha pessoa.

domingo, 22 de outubro de 2017

No Institut Saint Jean Baptiste de la Salle, em Bruxelas

Uh là là! Ontem passámos uma bela tarde no Institut Saint Jean Baptiste de la Salle, em Bruxelas. Eu, a Karateca, o Supergigante, a Mary John e este pequeno-grande ser dentro de mim estivemos à conversa com a malta do 6.º, 7.º e 8.º anos. Eram mais de 40 alunos, entre os 11 e os 14 anos, cada um com o seu percurso. Lusodescendentes, emigrantes, portugueses da Silva, todos têm em comum a identidade secreta de quem é de lá e de cá. Por causa disso, têm aulas de português ao sábado! À pergunta: "O português é a vossa língua materna?" responderam quase todos que sim.


No ano passado uns leram a Karateca, outros o Supergigante. A Mary John era novidade para as três turmas, menos para a Wendy que, com o seu ar de Terra do Nunca, já vinha com uma Mary John debaixo do braço. 
As perguntas mais divertidas foram sobre as personagens femininas. Porque é que a karateca é tão complicada? Porque é que ela diz e desdiz? Porque é que a Joana diz uma coisa e faz outra? Porque é que ela não diz o que sente? Serão estas personagens tão diferentes de nós? Não seremos todos complicados? Umas vezes de uma maneira, outras vezes de outra? Não temos sempre dúvidas? O que ganhamos com isso? O que perdemos?





Acabámos o encontro com uma leitura da Mary John. Tinha pensado ler só uma página, mas acabei por ler umas cinco. O silêncio ia alto e concentrado!
Resta-me agradecer às professoras Sílvia e Maria Franquilina o convite e a simpática receção. Foi um dia em cheio!


sexta-feira, 20 de outubro de 2017

Um homem massaja-lhe os pés

Um homem massaja-lhe os pés e ela concentra-se nele. Um rosto muito pequeno e frágil. Os olhos em bico, a tez escura. Talvez seja vietnamita ou cambojano. Os dedos do homem nos seus tornozelos e ela pensa em Marguerite Duras e no seu amante chinês, tão intensamente mole, de causar dó e asco ao mesmo tempo.
Fecha os olhos, mas não relaxa. Está sentada num cadeirão muito burguês e balofo e apercebe-se agora mesmo da sua existência igualmente burguesa e balofa. Neste momento, reflete sobre a quantidade de toalhas que o massagista oriental usa durante a massagem. Seis quilos de toalhas, talvez oito. Uma máquina de roupa.
Abre os olhos e observa. Só então lhe ocorre que nem fizera a depilação. Que chato. Há semanas que não olha para as pernas. Contempla as suas patas descuidadas mesmo em frente àquele rosto delicado. As unhas dos pés com vestígios de um verniz fossilizado. Coitado do homem caído a seus pés. Se lhe der um pontapé, ele cai e parte-se aos pedaços.
Jamais teria um amante chinês, pensa. Ou vietnamita. Ou cambojano. Eram homens demasiado pequenos para a sua existência. Eis um pensamento tacanho e desidratado, igualzinho aos seus pés. É uma mulherzinha burguesa, balofa e também muito racista no amor e no sexo. Ainda assim, gosta de um bom amasso.
No final da massagem, sai do salão aos pulinhos, os pés de súbito muito leves, levezinhos. Na primeira esquina, encontra um pequeno milagre: uma vontade ansiosa de escrever com as mãos e com as patas traseiras. Começa a escrever logo ali, a caminho de casa. As patas e as ideias muito hidratadas.
Por vezes fazia-lhe bem pôr a vida de molho. Enfiar o pé na argola.
Levar um bom apertão.

terça-feira, 17 de outubro de 2017

Ela escreve e o país arde

Ela escreve e o país arde. A culpa logo ali, na ponta dos dedos. E então pára de escrever. Faz outra coisa qualquer. Por exemplo, rega as plantas. As suas mãos em brasa.
O país arde e ela caminha para o elétrico. Lê um artigo sobre amamentação. Aponta a expressão "breast friend". No Facebook, algumas mulheres falam de assédio sexual. Só as mulheres falam de assédio sexual. Os homens estão-se a flamejar para isso.
O país arde e ela pensa naquele padre da sua infância. Aquele homem místico a pousar-lhe a mão no joelho. A falar-lhe da beleza por dentro e da beleza por fora. A capela compenetrada naquela coisa do divino, Jesus muito crucificado. Não se percebe se estará morto ou vivo. A menina muito bem sentada no banco da capela, a ouvir o Senhor Padre, pronta a confessar os seus pecados. Mas aquela mão desconcentra-a. A mão divina pousada no joelho. Tomara que aquela mão saia dali, pensa. Porque o seu joelho não tem vocação nenhuma para o sobrenatural. É um joelho muito feio e peludo, cheio de cicatrizes. Ainda hoje, quando pensa no seu joelho, pensa em todos os seus pecados e também naquela mão divina, que afinal era a mais humana de todas as mãos, a mais feia de todas as mãos.
O elétrico chega ao seu destino e ela pensa no seu país a arder, naquela memória em chamas e coloca então a hipótese de esse padre morrer num incêndio. O homem carbonizado, extremamente morto. Depois arrepende-se desse pensamento, claro. Faz outra coisa qualquer. Por exemplo, escreve um texto. Sempre é uma pequena fogueira para a alma. Talvez qualquer coisa aconteça. Um certo ardor por dentro, quem sabe. Mas está difícil escrever neste mundo. Está difícil viver.
Um certo vazio em todas as coisas.
O país arde e ela passa pela livraria bonita. Os livros muito bem sentados na montra. Não se percebe se estarão mortos ou vivos. Lembra-se então daquele livro enigmático, que falava de um futuro inventado em que os bombeiros queimavam livros. Fahrenheit 451, a temperatura a que o papel arde. Diz que o autor escreveu o livro em duas semanas. Uma autêntica combustão criativa.
Há qualquer coisa inspiradora nessa ideia, de facto.
A literatura no meio das chamas. Esturricada. Fulgurante.
Reduzida a cinzas.

sexta-feira, 6 de outubro de 2017

Mary John no catálogo White Ravens 2017

Uau! Que boa notícia!
A Mary John foi incluída no catálogo White Ravens 2017, uma seleção de 200 livros infantojuvenis de todo o mundo publicada anualmente pela Biblioteca Internacional de Literatura Infantojuvenil em Munique.
A edição de 2017 conta com obras em 38 línguas de 56 países.
Portugal está representado pelos livros "O convidador de pirilampos" (Ondjaki e António Jorge Gonçalves), "A cidade dos animais" (Joan Negrescolor), "Onde moram as coisas" (Pedro Ferrão e Marc Parchow) e "Mary John" (com ilustrações magníficas do Bernardo P. Carvalho).
Eis as palavras mui generosas que o júri escreveu sobre a "Mary John":

"In contemporary Portuguese young adult literature, the novels of Ana Pessoa (b. 1982) take up an exceptional place. The author is masterfully adept at describing the cosmos of maturing teens, with its challenges and dramas, turbulences, moments of happiness, disappointments, and catastrophes. She writes in an authentic language that captures the protagonists’ sense of life and closely orients itself to their pulse. In an astonishing way, her newest book does all this and more. “Mary John” sets itself apart from the author’s previous novels by its even more coherent storytelling, its undisguised, intense language, and the deep insight it offers into the emotional world of the protagonist and first-person narrator. Maria João, called Mary John, writes a single, long letter to Júlio “Pirata”, her first, unrequited love. She openly writes of friendship, longing, desire, and sexuality and the painful process of dealing with feelings such as rejection and loneliness. (Age: 14+)"

Texto disponível em: http://whiteravens.ijb.de/book/774
É possível pesquisar os catálogos White Ravens por língua, país, título, etc.: http://whiteravens.ijb.de/list