terça-feira, 30 de setembro de 2008

O homem a rimar

Para o tio Pedro.

Nós, que ignoramos o mundo e tudo o que nele existe, não conhecemos Luanda nem Tundavala nem Benguela nem o deserto do Namibe, mas vimos um pouco disto através dos olhos do homem que rimava, que ria a rimar, que raiava. Eram olhos soalheiros aqueles, de final de tarde, ampliados por óculos redondos, avolumados.

Este homem tinha, também ele, um certo ar de paisagem, por a sua presença ser espaço, viagem, deserto. Os cabelos ondulavam ao vento, espelhavam vários sóis: iguais ao mar.

Penso muitas vezes no seu quarto musical, no seu Porto de chegada. Nas suas memórias de África, com a qual todos nós sonhamos como outros sonharam com a Terra do Nunca: um lugar impossível cheio de histórias paralelas, diferentes das nossas.

Do Porto se fez ao asfalto. Aquele homem. Sempre rimando. Remando. E nós a vê-lo viajante, debruçado sobre os mapas. Das estradas, dos tesouros.

Sonhamos sobretudo com a sua rolote. Aventureira, poeirenta, a rolar pela Europa. Não conhecemos essa rolote e temos pena.

Quem nos dera ter viajado nela.

Um homem chamado Pessoa e que o era até ao final de si mesmo. Não o conhecemos como devíamos, como podíamos, como queríamos. Mas sabemo-lo assim: um homem profundo como o horizonte.

A rimar com o mundo.

sexta-feira, 19 de setembro de 2008

A senhora Madalena

Hoje à tardinha a senhora Madalena sentou-se no sofá. Era uma coisa que raramente fazia, mas hoje assim foi: sentou-se. É que, apesar de o sol ainda estar alto, a senhora Madalena já tinha a sopa feita e a roupa passada a ferro, já tinha lavado o chão da cozinha e mudado os tapetes da casa de banho.

E portanto, estava livre a senhora Madalena. Completamente livre. Tão livre, que a senhora Madalena chegou até a considerar ir à missa das seis, mas logo afastou essa ideia da cabeça porque não era dada a eucaristias e não gostava das beatas da igreja.

Em alternativa, podia ir às compras, mas realmente a senhora Madalena detestava as filas àquela hora e o frigorífico estava cheio. Além de que não conduzia à noite, via mal e tinha medo do escuro. Para o jantar tinha os restos do empadão. Para depois do jantar uma cama feita de lavado. Para a manhã seguinte o comprimido na mesinha de cabeceira e pão fatiado no armário. E portanto a senhora Madalena, naquela tarde, não tinha absolutamente nada para fazer.

Absolutamente nada. Por isso, fez o que nunca fazia: sentou-se.

A senhora Madalena entusiasmou-se: tinha finalmente tempo para bordar a tal toalha ou para ler o tal livro ou para ligar à tal prima ou para pregar os botões do tal casaco ou para ver uma coisa qualquer na televisão. A escolha era tanta que a senhora ficou indecisa, não sabia o que fazer com o tempo. E, em vez de fazer fosse o que fosse, a senhora Madalena ficou para ali especada a olhar.

É que passou tanto tempo assim que, a certa altura, era hora de jantar. A senhora Madalena apercebeu-se disso porque o estômago falou. E então, a senhora levantou-se e foi comer a sopa. Pôs também o empadão a aquecer no microondas. No entretanto cortou um tomate fresco para acompanhar, temperou-o com oregãos, azeite, sal e vinagre. Comeu tudo com enorme gosto, bebeu um copo água e descascou uma maçã.

Quando acabou de comer o último quarto da maçã, reuniu a loiça num tabuleiro e foi pousá-lo no lavatório. A senhora Madalena tinha uma máquina de lavar loiça, mas nunca a usava, porque preferia lavar tudo à mão. E nessa noite, enquanto calçava as luvas, a senhora Madalena sentiu-se deveras aliviada.

Tinha sujado imensa loiça.

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

A casa (V)

Para a casa, que faz hoje 1 ano e 3 dias.

As paredes eram tortas e tinham umbigos até ao final do corpo.

Entrava-se por um arco-íris e no parapeito da janela cresciam raízes de outras casas. Davam flores e frutos. Oxigénio. Vida.

Na cozinha andava pendurado um sonho de azulejos a espelhar um sol diferente. Aí se refogavam os dias, cheios de cores e formas, sem receitas.

Certo dia, quando decidiram construir o telhado, o homem ilimitado desenhou um algeroz serpenteado para os proteger das chuvas, das inundações. Do dilúvio.

Tudo isto a inspirava: o arco-íris, a janela, o algeroz. O homem ilimitado.

De resto, durante a noite, a casa enterrava-se devagar no chão como as raízes. E rangia os dentes.

Era orgânica. Gaudiana. Imperfeita.
Igual à vida.

terça-feira, 9 de setembro de 2008

And now for something completely different

Aquele artista em específico era diferente dos outros.
Era. Não haja dúvida.
Não só dos artistas, mas dos seres humanos em geral. Isto era aliás visível aos olhos de todos: a sua pose era diferente, o seu andar, as suas sobrancelhas. Aquele artista (sexo masculino, nacionalidade russa) era diferente no tacto, no verbo, no cabelo, nas covinhas da bochecha, na barba, reza a história que era diferente nas unhas dos pés e das mãos. (Isto não vimos nós, mas acreditamos. Pi-a-men-te.)
Diz-se que eram unhas de fibra de vidro e não de fibra orgânica como as nossas. Eram, digamos, uma espécie de cascos que não se cortavam à tesoura, mas que se partiam ao meio!
Bom, mas nem sequer é preciso irmos por aí, porque não eram só as características físicas que distinguiam aquele artista. Definitivamente, não eram. Muito pelo contrário. As características físicas eram irrelevantes ao pé das outras.
Porque o que era realmente diferente naquele artista não era tanto a sua diferença, mas sim e sobretudo o facto de a sua pessoa, a sua arte, o seu modo fazerem a diferença. Toda a diferença. Do MUNDO.
Para comprovar isto, basta recordarmo-nos do dia da sua morte: realmente é indiscutível que, no dia em que aquele artista morreu, todos sentiram a diferença. Não haja dúvida. Todos. Sem excepção.
Depois, voltou tudo ao normal, mas no momento da morte, naquele preciso segundo, todos sentiram.

Nota: Por outro lado, no dia do seu nascimento ninguém sentiu a diferença, mas isto deve-se ao facto de, naquela época, as pessoas não estarem habituadas a pessoas verdadeiramente diferentes.
A propósito, Liev Tolstói nasceu exactamente no dia 9 de Setembro há 180 anos, mas ninguém deu por ela. Pelos mesmos motivos.

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

Aquário

Certo dia, a rapariga disse que queria ser peixe.
Sim, peixe, com guelras e umas barbatanas dos lados, milhares de escamas a escarpar-lhe o corpo. Um peixe.
Andava farta dos homens, das mulheres, das criancinhas, do seu corpo quadrado em cima das pernas.

Poetizava para dentro:
Não seria mau de todo respirar pela boca. Respirar realmente pela boca. Fazê-lo por natureza e não por escolha.
(A rapariga abria e fechava a boca insistentemente, os olhos muito abertos, perdidos na água.)
Havia na casa da avó um aquário enorme, redondíssimo, e a rapariga dizia que aquela era a sua casa: um loft transparente, cheio de luz e de água, feito de vidro. Uma casa original.

Dias mais tarde, desiludiu-se: o facto de o aquário não ter saída chateava-a profundamente e a rapariga acabou por desistir daquela casa. Decidiu então viver num rio.
(A ideia de nadar até ao fim da água e da vida entusiasmava-a.)

Lembrou-se depois dos afluentes e, nessa noite, sonhou que desembocava num rio que desembocava noutro e depois noutro e caía eternamente pela água dentro. Quando acordou, desaguou definitivamente no mar e não quis sair dali.
Disse: "Serei um peixe de água salgada" e pensou no mar por dentro, na sua boca de peixe a respirá-lo, a bebê-lo, a ouvi-lo, a cheirá-lo, a senti-lo.

Seria um peixe-balão (gostava do nome) e flutuaria lentamente nas águas. Depois fechou os olhos para boiar perdidamente, redondamente, infinitamente, sem peso nem alma. As barbatanas muito abertas, a boca dentro de água.

E no entanto, nesse preciso instante, sobressaltou-se. Disse: "um peixe a boiar é um peixe morto". A rapariga endireitou-se na cadeira, chorou de susto. Ficou em silêncio alguns minutos, uma espécie de choque transformava-lhe o rosto.

Perguntou-se: Para quê viver no mar, se não podia deitar-se nele, de rosto contra o sol e o sal?

Era uma rapariga interessante. Definida. Definitiva. De carne e osso.
(Jamais abdicaria do seu direito a boiar.)

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

Em Setembro

Em Setembro passou-se isto:

O sol pôs-se de perfil e nós desenhámo-lo na areia.

(Lembro-me que o círculo original era demasiado perfeito para os dedos das mãos.)

No final do desenho, espreguiçou-se o final de uma onda e o sol do chão morreu.
Perguntei: "Que dia é hoje?".

Lembro-me que, nesse instante, a terra acabou. Abruptamente.
Responderam-me: "O primeiro".

Na escuridão entrelaçámos os dedos imperfeitos.
Lembro-me disso.

Desenhámos depois o sol do céu.
E fez-se luz.

Era a rentrée* da vida.

*Para quem não gosta de galicismos, substituir rentrée por recorrência, recriação, repetição ou reticência.