quarta-feira, 21 de novembro de 2007

Declaração

Quando o dia caiu inteiro e o mundo a espreitou através da janela, a rapariga fechou as persianas e os olhos para não o ver. Queria sentir-se sozinha e, pela primeira vez, disse: "Amo-te!". Era um sentimento estranho, até porque a declaração não era dirigida ao mundo nem à janela. Na verdade não era dirigida a ninguém, já que estava sozinha e queria realmente sentir-se só. A rapariga diria mais tarde que amar era um estado de espírito. Mas naquela altura não sabia disso e quis esquecer-se.
Abriu o frigorífico para comer o resto de qualquer coisa e por momentos assaltou-a a ideia de que amava aquele electrodoméstico (a porta cheia de ímanes, a pequena luz ao fundo, o frio sempre pálido, qualquer coisa com sabor a fresco). Era um frigorífico agradável ao toque e ela acariciou-o distraída como as grávidas fazem às barrigas. Claro que, quando desligou a luz do quarto se riu de si própria. Era evidente que não amava o frigorífico.
Antes de adormecer, pensou naquele sentimento de pertença e apercebeu-se de que amava simplesmente o regresso a casa. Que regressar tinha um certo toque de amor e dedicação. Que aquele electrodoméstico simbolizava esse regresso. Estava extasiada com a sua descoberta.
Dormiu toda a noite um sono profundo e na manhã seguinte escreveu uma declaração de amor.
"O teu corpo é para mim um regresso a casa". Afixou-a na porta do frigorífico, releu-a mil e uma vezes.
Claro que a declaração não era dirigida ao electrodoméstico. Na verdade, mais uma vez, não era dirigida a ninguém.
A rapariga sentiu subitamente uma enorme urgência em apaixonar-se e saiu de casa a correr. Tinha imensa pressa.
Era, de certa forma, um regresso a si própria.

Nota aos leitores assíduos: Agora sim, um regresso a sério!