Amanhã é quinta, hoje é quarta, ontem foi terça-feira, 28 de Abril de 2020. A Penélope Cruz fez 46 anos. Os gémeos fizeram oito meses. E eu fiz uma salada de quinoa e feta que ficou bem boa.
O mais velho espetou-se de bicicleta. Foi numa descida do parque. Contra uma cerca.
No regresso a casa apanhámos uma molha daquelas. Constatei que o meu filho tinha vivido duas primeiras vezes de seguida: primeira espeta e primeira molha.
Chegou-me o período. Lavei o cabelo. Escrevi um texto.
Senti um amor carnal pelos meus filhos. Tive necessidade de os morder e apertar. O leitãozinho mais novo riu-se às gargalhadas com as minhas dentadas.
Abri “O livro do ano” do Afonso Cruz. Dei com esta entrada no dia 28 de abril:
“Não é preciso ser cientista para compreender as árvores. É só preciso ser pássaro. Ou Abril.”
O mais velho andou à solta no nosso quarto. Descobriu os meus fios e colares. E também as minhas pulseiras e pregadeiras. Já não me lembrava de nenhum destes acessórios.
Uma vez no cabeleireiro dei com uma revista de moda que dizia na capa: “acessórios essenciais”. Nunca mais me esqueci desta antítese. Não há nada essencial num acessório. O acessório é, por definição, acessório. Mas percebo a ideia de acessórios essenciais.
Li um post muito fixe da Matilde Campilho. Era sobre dois artigos de jornal.
Nunca escrevo sobre jornais. Nunca escrevo sobre o mundo. Nunca escrevo sobre os outros.
Se calhar devia dar um passeio fora da minha cabeça, fora da minha vida.
Não vai ser hoje. Não vai ser ontem, terça-feira, 28 de Abril.
Comi chocolate “caramel au beurre salé”. Pus um dos fios que o meu filho descobriu na gaveta. Olhei-me ao espelho, não senti nada.
No fim do dia, o mais velho deu-me uma cabeçada na boca. Foi um acidente. Sangrei e vi estrelas.
O peixe congelado que comemos ao jantar estava passado.
À noite estive a ver o livro das cores e dos cheiros com o mais velho. Na página verde inventei uma história muito fixe com os vários elementos: era um crocodilo que gostava muito de ervilhas, uma tartaruga que gostava muito de pepino e uma árvore que gostava muito de alface.
O biberão da noite derramou-se no pijama do mais velho. Coitado. Teve mesmo um dia péssimo.
À hora de dormir escrevi este texto sobre o dia terrível na vida do meu filho. Mas afinal não é bem um texto sobre o dia terrível na vida do meu filho. É só um texto sobre um dia. E não é sobre o meu filho, é sobre mim. Que chato.
Nada a fazer. Eu escrevo sobre mim. Para mim. Por mim. Contra mim.
Escrever é viver outra vez. É existir de um lado e do outro.
É apanhar duas molhas. É levar duas cabeçadas.
Escrever é dar um passeio dentro da cabeça. É ser pássaro e cientista. É ser o dia de ontem: 28 de Abril de 2020.
Escrever é o meu refúgio, o meu abrigo. O meu acessório essencial.