terça-feira, 28 de abril de 2020

Os três porquinhos

Herdámos dos vizinhos do sétimo uns livros com histórias e canções em francês. Gostamos tanto desses livros que já adquirimos mais uns quantos. 



O mais velho deve andar com saudades da língua francesa. Volta e meia senta-se no chão e ouve as canções em silêncio. Ultimamente não larga os três porquinhos. O livro tem uns botõezinhos em baixo para ouvir os vários capítulos. Ele carrega no primeiro botão e a história começa: 

“Il était une fois
trois petits cochons
bien roses et bien ronds...”

O meu filho ri-se porque eu digo esta frase ao mesmo tempo que o narrador. Depois o narrador conta que chegou a hora de os três porquinhos saírem de casa dos pais e de construírem, cada um deles, a sua própria casa. “Au revoir, papa! Au revoir, maman !”, dizem os três porquinhos e lá vão eles à sua vidinha. O meu filho acena para mim, diz “Au revoir” e explica-me: “É francês”.
Olho para os meus três filhos, todos eles “bien roses et bien ronds”, e pergunto-me qual destes três leitões vai construir a casa de palha. A de madeira ainda vá, mas uma cabana de palha é de uma enorme irresponsabilidade. O mais velho escuta a história com imensa atenção, o segundo concentra-se nas palmas das mãos, o terceiro sacode as pernas e dá gritinhos.
Decidi que o infeliz idiota da casa de palha será este mesmo, o mais novo porque é o mais aluado. Grande otário, disse-lhe, devias levar já um par de estalos por antecipação para não seres tão preguiçoso.
Depois pensei nessa cabana feita às três pancadas e enterneci-me. Imaginei-o deitado numa cama de palha a tocar harmónica, sem grandes planos, sem grandes medos. Os olhos vivos e o riso fácil, uma certa infância ainda. Parece distraído, mas não está. Observa com atenção o movimento das nuvens e das árvores, qualquer coisa nele está em harmonia com o mundo. Hesito com o par de estalos. Se vier o lobo, há de ser devorado, mas a sua vida será mais intensa que a dos outros porquinhos, tão esforçados e cautelosos. Na verdade talvez seja ele a chave da história. Nem sempre o esforço compensa. Por vezes é preciso perder tempo para ganhar tempo. Para que interessa perder anos de vida a construir uma casa de pedra cheios de cuidados e de medos, se não compreendermos absolutamente nada sobre a vida e o mundo?
A bem dizer, talvez seja o porquinho da casa de palha o verdadeiro herói da história. Quando o lobo vier só ele vai prestar atenção. Só o porquinho da casa de palha vai antecipar a sua chegada. Vai parar de tocar harmónica, vai observar os rolos de palha, vai prestar atenção à mudança do vento e colocar hipóteses sobre o futuro. Só ele estará a olhar para o horizonte quando o lobo aparecer ao longe e vai ser ele a avisar os irmãos, que estarão nessa altura confortavelmente instalados nas suas casas.
Retirei então o par de estalos que tinha reservado para o mais novo. É ele que nos vai salvar. Com a sua harmónica e o seu poder de observação.
Olhei para ele emocionada. As pernas a dar a dar, aquele ar de quem não mora aqui. Tanto idealismo e expressividade.
Este mundo não precisa de mais gente acomodada e receosa. Este mundo precisa de pessoas sonhadoras e contemplativas.
Entretanto o mais velho já não está a ouvir a história dos três porquinhos. Está de roda dos legos, a construir uma torre muito direitinha.
Dou um caldo na cabeça do mais velho e mando abaixo a torre de legos com um pontapé. Grande otário, digo-lhe, vais ser tu o que vai construir a casa de pedra. Não percebeste nada de nada. Falhei em tudo.