Isto está a descambar mas não muito. Substituí a mala por um saco de pano. Quase nunca me penteio. Saio de casa de cabelo molhado.
Leio no telemóvel. Falo no telemóvel. Escrevo no telemóvel. Emails, textos, mensagens.
Deixei de usar óculos porque enfim, não há nada para ver.
Visto uma roupa híbrida, que não é pijama mas também não é roupa de rua. Ando sempre com um casaco de malha muito velho e amarrotado. São vários casacos de malha, todos velhos e amarrotados. Um amarelo, outro rosa, outro cinza, outro azul, outro preto.
Continuo a usar brincos. Continuo a tomar as vitaminas. Continuo a embalar os bebés.
Durmo aos bochechos. Gosto muito desta expressão: aos bochechos. E também desta: às pinguinhas. Às mijinhas. Aos pedaços.
Bebo cerveja todos os dias. Como chocolate todos os dias. Tomo banho todos os dias.
Tenho sonhos muito estranhos. Hoje sonhei com um barco enorme. Aconteciam muitas coisas nesse barco, mas já não sei bem o quê. Havia uma tempestade a certa altura e também um lençol muito branco e muito grande.
Estou sempre com pouca bateria no telemóvel. 20%. 10%. Nunca sei do carregador.
Já não posso com o corona nem com as piadas sobre o corona. Os vídeos, as fotos.
O Instagram diz-me que esta semana gostei de vários posts com a hashtag #staythefuckhome. Gosto mais da hashtag portuguesa #euficoemcasa, mas toda a gente usa a outra.
Por acaso hoje não fico em casa. É sexta-feira santa. Fomos andar de bicicleta.
Há quatro anos que não andava de bicicleta.
Primeiro foi o inverno, depois foi a gravidez, depois foi o bebé, depois foi o inverno outra vez, depois foi a outra gravidez, depois mais dois bebés, e depois por aí fora até hoje, sexta-feira santa.
Jesus Cristo na cruz e eu na bicicleta.
Gorda, feia e feliz na bicicleta.
Jesus a morrer por mim. Coitado. E eu naquelas descidas sempre em frente. Uma pessoa nem precisa de pedalar. Vento, sol e liberdade.
E aquele vislumbre muito breve e fugidio da nossa própria infância.