quinta-feira, 2 de abril de 2020

Hoje sonhei com portais para outras dimensões

Um dos gémeos parece-me quente. Tiro-lhe a febre. Não tem.
Nas últimas 24 horas morreram 183 pessoas na Bélgica. 93% das vítimas tinham mais de 65 anos.
Hoje é dia internacional do livro infantil. Parabéns ao livro infantil.
Dói-me a cabeça. Às vezes parece que me dói a garganta, mas depois passa.
O meu filho mais velho quer fazer desenhos. Faço um acordeão. Fico contente com o resultado. Ele também.
Hoje sonhei com portais para outras dimensões. Os portais não eram portas nem portões. Eram objetos absolutamente normais: um par de óculos, um guarda-chuva, um colar. Uma pessoa abria o guarda-chuva e mudava de cenário.
Um dos minorcas tosse e o outro espirra três vezes seguidas. O mais velho imita-o. Atchim atchim atchim.
A ONU considera esta pandemia a crise mais difícil desde a Segunda Guerra Mundial.
O meu filho mais velho adora o Into the Mood do Glenn Miller.


Recebo fotografias de uma amiga que fez anos ontem. Está a nevar na Bulgária.
No meu sonho há tantos portais para outras dimensões que chega a ser irritante. A certa altura estou a discutir com um velho a propósito de não sei quê, visto o casaco e pim!, vou parar a outro lugar, com a discussão a meio.
Consulto os dados oficiais. Neste momento já são 49160 as vítimas mortais.
O meu filho mais velho aponta para as flores da minha blusa. Diz: “Tanta flor”.
A convite da professora Ana Margarida Ramos, participo numa aula sobre literatura para a infância através do Instagram.

Composição da Ana Margarida Ramos. Aula através do Instagram com os vários participantes.

O meu filho enterra o nariz na minha blusa. Diz: “Cheira bem.”
Adoro o Nick Cave. Não ouço Nick Cave há meses, mas tenho lido as cartas que ele escreve aos fãs.
No meu sonho apercebo-me de que o casaco foi o portal para a nova dimensão. Volto a vestir o casaco para voltar atrás, mas o portal já não funciona.
Parece que os vizinhos de cima têm Covid ou estiveram com alguém que tinha. Estão em quarentena há quase duas semanas.
A vizinha de baixo ligou-me no outro dia. Tem 84 anos. Disse-me que nos devíamos concentrar nas coisas boas. Que a qualidade do ar estava a melhorar e que se calhar os meus filhos não iam ter bronquites no inverno.
Os gémeos já têm dentes. Ou melhor: cada um deles tem um dente.
Na última carta aos fãs, o Nick Cave diz que este não é um momento para criar. É um momento para prestar atenção.
No meu sonho, encontro uma caixa de biscoitos num comboio. Tenho a certeza de que a caixa é um portal, por isso vou direitinha a ela.
Os dentinhos dos meus filhos emocionam-me. Brotam das gengivas como plantas.
Segundo um especialista em doenças infecciosas, devemos usar máscara na rua. Mas no outro dia um perito qualquer em epidemias dizia que a máscara não fazia grande diferença. Opto por esta segunda opinião porque não me ajeito com a máscara.
No sonho, abro a caixa de biscoitos e acordo. Fico desiludida porque não queria acordar, mas comprovo que a minha intuição estava correta: a caixa era um portal para outra dimensão.
Gostava de saber se o Nick Cave usa máscara. Imagino-o em casa, sentado numa enorme poltrona. A prestar atenção.
No meu sonho, as máscaras poderiam ser portais, mas não me lembrei disso enquanto estava a sonhar.
O meu filho mais velho está a olhar para uma fotografia da creche. Fica nisto durante vários minutos. Olha para todas as caras. Não diz o nome de ninguém, não diz absolutamente nada. Fica só a olhar para a fotografia.
Leio num jornal belga que o número de doentes nos cuidados intensivos diminuiu ligeiramente.
Vou ao dicionário ver como se chamam os peritos que andam a falar deste vírus. Descubro que os especialistas em epidemias são epidemiólogos ou epidemiologistas, que os sabedores de viroses são virólogos ou virologistas e que os tipos das doenças infecciosas são infectologistas ou infecciologistas.
Saio de casa. Chamo o elevador. Imagino o vírus no meu dedo indicador. Uma bolinha a subir pelo meu braço como um inseto. Tenho comichão no nariz, mas não coço o nariz.
Na Bélgica os peritos dizem que o pico da epidemia ainda não está à vista. Olho para os gráficos no telemóvel. A curva parece sempre igual: é uma curva. Sinto-me sempre muito burra quando olho para estes gráficos.
Uma vizinha segura-me a porta do prédio para eu passar. Não quero quebrar as regras da boa educação, mas também não quero quebrar a regra do distanciamento social. Ficamos num impasse. A vizinha insiste. Quer dar-me passagem. Quebro a regra do distanciamento social e atravesso o portal.
Estou na rua. Tento prestar atenção, mas não consigo. Não há quase ninguém cá fora. Só eu, a minha sombra e meia dúzia de gatos pingados.
Na praça da igreja, ao verem-me chegar, os pombos estalam no ar. Encolho-me, mas não muito. Antes uma caganita de pombo que de covid.
Uma mulher passa por mim e tosse. Não lhe dou um sopapo por causa do distanciamento social.
Tiro uma fotografia à minha sombra.
Nunca percebi muito bem aquela expressão: “Não és sombra do que eras”.


Sinto alguém atrás de mim na rua, mas não olho para trás. Acelero o passo e toco na sobrancelha.
No sonho as pessoas andam muito afogueadas, de portal em portal. Parecem estar à procura de uma dimensão que ficou há muito para trás. Eu também ando afogueada e não sei porquê.
Um homem aproxima-se. Tem mesmo tromba de Covid. Pede-me uma moeda e eu acelero ainda mais o passo. Penso: “Coitado do homem”. Penso: “Coitada de mim”.
Apercebo-me de que toquei no nariz.
Recebo um email de uma amiga que diz no assunto “long email”. Nesse longo email conta-me que ensinou o avô a usar o Skype. Imagino-a a falar com o avô através do Skype.
Chego a casa e começo a tossir. Uma tosse seca. Toco na boca antes de lavar as mãos.
Tenho falado com os meus pais quase todos os dias. Antes da pandemia não falávamos tanto.
As palavras pandemia e epidemia rimam. As palavras confinamento e isolamento também.
Lavo as mãos e penso na falta de precisão terminológica. As pessoas falam de isolamento, de quarentena e de confinamento como se fossem a mesma coisa, mas não são a mesma coisa.
Olho para a água a correr e penso que a torneira também podia ser um portal. Fecho a torneira, mas nada acontece. Não mudo de cenário, não acordo, não nada.