Um certo homem, de nome Manuel Matias Batalha Pereira, senta-se diariamente no jardim do Campo Mártires da Pátria para ver os pardais voar. Não os apanha, não os assusta, não lhes dá comida, nem guarida, nem nada de nada, fica por ali sentado a vê-los voar. O senhor Manuel Matias não tem família, como é evidente, nem amigos, nem assuntos para tratar, se não de quando em quando na segurança social ou nas finanças. No outro dia tinha passado, por exemplo, várias horas na Loja do Cidadão dos Restauradores, mas fora essas excepções, que até lhe davam novas cores à vida, o senhor Manuel Matias não tinha nada que fazer, senão aquilo: ver voar os pardais. Não os pombos nem as rolas nem as gaivotas, que eram pássaros gordos, altos, adultos, aborrecidos.
Só os pardais.
O senhor Manuel Matias gosta dos pardais por isto: têm um voo imprevisível, incorrigível, caótico, infantil. Ora pousam aqui, ora voam para ali. Sobem para o banco, saltam para o chão, bicam a calçada, viram as costas, voam baixinho, pousam na relva, enfiam-se no canteiro, desaparecem nas árvores. Isto entretém o senhor Manuel Matias. De vez em quando ri-se de certos voos descontrolados, troça dos pardais, chama-lhes nomes.
Traz um saco de plástico que pousa sempre do seu lado direito. A certa altura tira dele uma banana, sempre uma banana, dizem que faz bem à cabeça. Come-a sem grande jeito (alguns pedaços da banana ficam pelos beiços, um pendurado no queixo, outro na ponta esquerda da boca e outro ainda no lábio superior). O senhor Manuel Matias desaprendeu a comer. O senhor Manuel Matias desaprendeu muita coisa.
Do outro lado do Campo Mártires da Pátria está uma senhora a dar comida aos pombos. Não sabemos o seu nome, mas conhecêmo-la de vista. Observa atentamente os olhos do senhor Manuel Matias, é um olhar meigo. O dela e o dele.
A senhora que dá comida aos pombos compadece-se do senhor Manuel Matias, roga pragas à família por o terem abandonado, pensa que são maus filhos, maus netos, maus primos, maus tudo e mais alguma coisa. Abana a cabeça enquanto pensa tudo isto, arranca os pedaços de pão com muita fúria, gosta genuinamente do senhor Manuel Matias.
Do outro lado do Campo Mártires da Pátria está uma senhora a dar comida aos pombos. Não sabemos o seu nome, mas conhecêmo-la de vista. Observa atentamente os olhos do senhor Manuel Matias, é um olhar meigo. O dela e o dele.
A senhora que dá comida aos pombos compadece-se do senhor Manuel Matias, roga pragas à família por o terem abandonado, pensa que são maus filhos, maus netos, maus primos, maus tudo e mais alguma coisa. Abana a cabeça enquanto pensa tudo isto, arranca os pedaços de pão com muita fúria, gosta genuinamente do senhor Manuel Matias.
A senhora que dá comida aos pombos é bem intencionada quando pensa estas palavras feias, mas ignora muita coisa, imensa coisa (não tem culpa disso, claro). Uma delas é que o senhor Manuel Matias, com o seu olhar meigo, é uma besta. Outra é que batia na mulher e ia às putas. Outra ainda é que os netos nem o conhecem por dele terem medo os filhos. Isto é a história real do senhor Manuel Matias mas nem todos são omniscientes como o narrador.
E de facto, não podemos levar a mal o amor que a senhora dos pombos tem pelo senhor Manuel Matias. Este homem tem realmente um olhar meigo e é sensível. Repare-se que ele vem ao jardim para ver os pardais a voar, ri-se deliciado para eles. Isto aperta o coração da senhora, como é natural.
Visto daqui, até nós nos comovemos. Não que perdoemos o senhor Manuel Matias. Não que tenhamos esquecido os seus pecados. Mas ao longe, efectivamente, a velhice comove.
E todos os homens são bons, quando chegam a velhos. Tornam-se imprevisíveis, incorrigíveis, caóticos, infantis. Como os pardais. E desaprendem muita coisa. Imensa coisa.
Todas as coisas.