terça-feira, 17 de junho de 2008

Hoje é o dia

A rapariga recém-chegada a Santa Apolónia entra num café e pede uma bica. Diz realmente: "Era uma bica!".
Fica de pé ao balcão: os cotovelos apoiados no vidro. Se fumasse, fumaria. Se escarrasse, escarraria. Mas a rapariga não faz nada disso, espera só. A bica chega, recém-chegada como ela e a rapariga parece feliz com o encontro. Agita no ar um pacote amarelo, rasga-o num só gesto, começa a despejá-lo.
E nesse instante, nesse preciso instante e exactamente ali (aos pés de Alfama e na boca do rio que ria sempre), a rapariga recém-chegada olha para o pacote já rasgado e lê: Um dia serei turista na minha cidade. Era um pacote de açúcar igual aos outros: da Nicola e de pontas enrugadas, um rectângulo quase quadrado, um amarelo de Verão que se prolonga. Com uma frase no ventre. Um dia serei turista na minha cidade.
A rapariga fica a ver o açúcar cair como quem vê o tempo a passar. E de repente não há nada, só o pacote vazio. Prende-o na mão esquerda, os cinco dedos a segurá-lo. Bebe finalmente o café e o amargo da boca coincide com outro amargo qualquer. Não sabe identificar qual.
Regressa ao papel amarelo, vira-o do avesso, roda-o nos dedos. Lê no verso do pacote: Hoje é o dia. Do outro lado a mesma frase inicial. Deste lado: Hoje é o dia.
Amachuca-o de repente (o pacote e o dia), deita-o fora, paga. Sai dali apressada (da boca do rio, dos pés de Alfama) e entra pela cidade dentro.
Depois perde-se, claro. Como os turistas.
E os lisboetas.
Era portanto uma rapariga com dois versos.
Igual ao pacote de açúcar.