Para a Scout
De vez em quando chorava. Com uma raiva tal que o choro fazia barulho. Repito: o choro fazia barulho. Não a voz nem o esboço de voz nem o soluço tantas vezes reprimido. Nada disso, porque ela não soluçava nem dizia nada: chorava apenas. E portanto era o choro em si que fazia barulho, a água que vinha de dentro. A sua força era tal que caía com violência, explodindo no chão como pedaços de mar contra as rochas.
O que conhecia de mais parecido com o seu choro eram as quedas de água. Essa comparação apaziguava-a.
Por vezes sentia que desperdiçava energia, que alguém devia inventar barragens e moinhos portáteis que aproveitassem o seu choro. Pensava: A energia da minha queda de água iluminaria o prédio durante dias.
Por vezes sentia que desperdiçava energia, que alguém devia inventar barragens e moinhos portáteis que aproveitassem o seu choro. Pensava: A energia da minha queda de água iluminaria o prédio durante dias.
Adiantemos que ela não percebia nada de física nem de electricidade nem de mecânica. Estes seus planos eram portanto simples divagações do seu espírito aberto e da sua mente imaginativa.
Certo era que naquele dia estava realmente triste e chorou durante horas. Horas. E de repente, num abrir e fechar de olhos, parou de chorar. Estava ainda com a cara torta mas, de um momento para o outro, já não havia lágrimas para a sua queda de água. Era a primeira vez que tal sucedia. Perguntou-se se o choro seria uma fonte de energia renovável. Não sabia e ficou chateada por não saber. (A eventualidade de nunca mais chorar assustava-a.)
Pegou no telefone. Era urgente saber se o choro era renovável. Apercebeu-se que não tinha a quem perguntar tal coisa e foi antes para o escritório. Abriu o terceiro volume da enciclopédia.
Pegou no telefone. Era urgente saber se o choro era renovável. Apercebeu-se que não tinha a quem perguntar tal coisa e foi antes para o escritório. Abriu o terceiro volume da enciclopédia.
Encontrou.
Choro s.m.
E leu algumas palavras aleatoriamente.
Fisiológico, sistema nervoso, lacrimação, pressão ocular, limbo, neurológico. De seguida, uma figura enorme representando a glândula lacrimal. Mais abaixo: género musical brasileiro. Por fim: derramamento de seiva. Voltou atrás. Derramamento de seiva a partir de superfícies cortadas das plantas. Disse:
- Curioso!
Depois: provérbios. Escolheu um.
Quem chora ou canta, seus males espanta.
Não tinha uma resposta para a sua pergunta. Fechou o terceiro volume da enciclopédia, arrumou-o e voltou para a sala.
Não tinha uma resposta para a sua pergunta. Fechou o terceiro volume da enciclopédia, arrumou-o e voltou para a sala.
Cansada do silêncio pôs-se a cantar. A canção não saía propriamente cantada, porque não conhecia letras de canções. Achou essa falha gravíssima e esforçou-se um pouco mais.
Lembrou-se então de uma canção de infância sobre um gato mariquinhas que fugia dos ratos. Aprendera-a nos escuteiros, era uma canção divertida.
Lembrou-se então de uma canção de infância sobre um gato mariquinhas que fugia dos ratos. Aprendera-a nos escuteiros, era uma canção divertida.
Cantou-a.
De repente pensou: O canto é uma fonte de energia.
Repetiu o pensamento: O canto é uma fonte de energia.
Parecia-lhe uma descoberta fantástica e endireitou-se no sofá para ganhar seriedade. Era um projecto exequível, mas não sabia onde começar.
Talvez por isso tenha começado por rir.
Depois levantou-se.
Declarou para as paredes: Vou por aí mudar o mundo.
E foi.