sexta-feira, 28 de março de 2008

No metro

Tem barriga em forma de ovo e sente com a mão o peso do fruto. Quase sorri. Os outros passageiros olham-na atentos, assustados com o fruto desconhecido.
A mulher grávida é, aos olhos dos passageiros, um bicho de duas cabeças.
O homem atrás do ventre vem a dormir. Corpo dobrado sobre si mesmo e barriga inchada, a mão esquerda muito aberta dedilhando a placenta.
Entre o fruto e o mundo, uma parede de sangue.
Entre mulher e mãe, o ovo. Entre mãe e filho, um cordão.
E nós, entre estações, à espera que os outros nasçam.
O metro abre-se como um ovo e nós, os de cá, a saltar para o mundo.
Entre o princípio e o fim, tudo o resto.
E nós, os da vida, no meio.

quarta-feira, 26 de março de 2008

O homem triste

Imaginemos um homem mediano, de estatura média, meia-idade e gostos de classe quase baixa, muito preocupado em medir os outros e a vida. Em dias tristes esse homem dizia:
- Estou triste! - com a simplicidade de quem é triste.
E todos se compadeciam dele.
Um dia alguém disse sem pretensões:
- Uma pessoa feliz tem tanto de felicidade como de tristeza.
E ele foi para casa contar os seus dias tristes para saber os dias felizes. O homem admitiu depois:
- Estou triste!
E todos se compadeceram dele.
Naquela noite foi ao cinema para que os outros vivessem por ele e, no final do filme, sentiu que essa vida (a dos outros) era mais interessante do que a sua.
(Uma conclusão algo ingénua para um homem de meia-idade, admitamos.)
O homem triste decidiu então viver a vida de uma outra pessoa (que não a sua) e entrou num bar para escolher o seu actor. Rapidamente sentenciou que nenhuma pessoa do bar era decididamente interessante. Achou, em primeiro lugar, que o problema era seu, que tinha falta de interesse pela vida em geral, mas depois resolveu culpar o mundo. Disse:
- Ninguém é decididamente interessante.
E pediu a conta. Aquele homem mediano, de estatura média, meia-idade e gostos de classe quase baixa, muito preocupado em medir os outros e a vida, decidiu então mudar de ângulo, que é como quem diz: mudar de vida. Anunciou para o copo de vinho:
- A partir de agora, sou realizador de cinema - isto por lhe faltar o talento dramático dos actores, porque o homem triste prefereria encarnar personagens a racionalizá-las.
Pagou a bebida e perguntou ao rapaz que o servia:
- Onde posso comprar uma máquina de filmar?
O outro riu-se da ignorância do homem triste: um rapaz patético, de aparelho nos dentes, presumivelmente feliz.
- A estas horas em lado nenhum. Pelo menos, não na Bélgica.
O homem triste decidiu então começar por mudar de país. E foi para casa.
No silêncio do quarto assaltou-o uma reflexão sobre a vida. E a propósito disso deu um título ao filme por realizar:
No country for sad men.
Não era um título original, é evidente. Mas era mediano e isso bastava-lhe. O homem triste levantou-se do sofá e partiu a meio da noite.
Claro que o homem triste deu a volta ao mundo e não encontrou o lugar que procurava. Concluiu anos mais tarde, quando a sua estatura média se dobrava para a frente com o peso dos anos, que o mundo inteiro era mais triste do que ele. Pensou:
- Sou um pouco menos triste do que antes.
Isso animava-o imenso.
Era um velho feliz.

terça-feira, 25 de março de 2008

Ressurreição

Aquele vampiro foi à missa e nem sequer acreditava. Há anos que não entrava numa igreja e logo naquele domingo de Páscoa decidiu: Vou à missa. E foi.
Disse a quem o ouviu que ia à igreja ouvir o órgão antigo, de cantar austero e olhar profundo, soturno, vestido de negro. Disse: Aquele órgão com cara de Nosferatu, e logo se arrependeu da comparação. Tossiu, tropeçou, disse muito alto: Aquele órgão com cara de Adamastor. (Por ter barba nas pontas e todas as tormentas no rosto.)
Foi à missa.
O homem de Deus anunciou: Vós sois o sal da terra! e nisto o vampiro chorou o sal de dentro. Assim: de súbito, inexplicavelmente, de marinheiro em alto-mar. O padre falou da ressurreição de Cristo e o vampiro estremeceu, cheio de pecado. (Teve terror a Deus, imenso terror a Deus.)
Quando o órgão cantou no fundo do seu corpo, o vampiro perdeu as asas, virou peixe, entrou numa enorme boca. Chamou-a: Adamastor, e morreu.
Três dias depois abriu-se um caixão e dele saiu um vampiro. Renovado, inspirado, impossível. Disse: Sou Orfeu, por trazer música no corpo. Os homens disseram: É a ressurreição de Nosferatu.
Mas não era. No corpo do homem renascia a própria música, de cantar austero e olhar profundo, soturno, vestido de negro. Uma música um pouco mais real, brutal, divina.
Pelas ruas da cidade andava pé ante pé o órgão daquela igreja, com cara de Nosferatu ou Adamastor, cheio de pecado na voz. Apelidaram-no erradamente de vampiro ressuscitado por desconhecerem o rosto da música.
Do pecado.
Do sal da terra.
E de Deus.

terça-feira, 18 de março de 2008

Conto infantil para adultos: O mosquito

Naquele pinheiro-manso vivia um mosquito que não sabia que era mosquito por nunca ter visto outro na vida. Uma vez que os seus olhos eram do tamanho do corpo, a única coisa que via de si próprio eram as asas negras. Assim, o mosquito sabia que não era um pássaro por não ter penas, nem uma fada por as asas não serem brancas.
Até que certo dia o mosquito viu uma abelha pousada numa flor e anunciou:
- Olha, se calhar sou uma abelha!
Ficou a ver o que fazia a senhora abelha e achou o seu trabalho interessantíssimo: sugava néctar. O mosquito foi também beber de uma flor e depois, não sabendo o que fazer com tanto néctar, engoliu-o. Era uma experiência agradável aquela; não havia nada mais saboroso no mundo.
Estava o mosquito a deliciar-se com a sua refeição, quando, de repente, a flor da ameixeira gritou:
- Sai daqui, coisa porca!
O mosquito alarmou-se com o insulto e saltou assustado. Reclamou:
- Respeitinho, seu projecto de ameixa! Sou uma abelha! Ainda te corto a raiz com o meu ferrão!
A flor riu-se e abanava as pétalas para refrescar o rosto.
- Que coisa idiota! Tu não és uma abelha, és um mosquito!
- Um mosquito?! O que é um mosquito?
- É uma coisa odiosa! E porca, justamente!
- Porca?!
- Sim, PORCA! Os mosquitos pousam na merda e comem-na!
O mosquito parecia contemplativo. Ora aí estava uma óptima ideia! Perguntou:
- E a merda é má?
- Claro! Cheira mal! Só as flores é que têm um perfume bom!
O mosquito partiu. Agradava-lhe a ideia de comer merda, mas parecia-lhe injusto que a dita fosse mal-cheirosa. Daí o seu projecto de experiência científica:
Ia encher a flor da ameixeira com merda para ver se o perfume desta passava a ser bom.
Era uma ideia fantástica. E o mosquito voava contente.
Tinha finalmente descoberto quem era. E já sabia o que comer.

segunda-feira, 17 de março de 2008

Bebel Gilberto

Apetecia-lhe
uma manhã de algodão
um pássaro na ponta dos braços
um acordar lento
branco
de nuvem contra o céu

Apetecia-lhe
asas
vento
o Homem na Lua

Apetecia-lhe
Claude Monet
fotossíntese
nenúfares à flor da pele
um salto de anfíbio
o lago dos cisnes

E no entanto
a manhã era outra e o corpo limitado

Escolheu Bebel Gilberto
para o horizonte da alma

e foi

uma outra terra
uma outra manhã
um outro corpo

quinta-feira, 13 de março de 2008

O rapaz e a neve

Naquela noite o rapaz achou que amava. Estava escuro e havia neve.
Na mão veio pousar um pequeno floco e ele emocionou-se. Depois, num segundo, a neve morreu água e o rapaz pensou: "Este amor é impossível". Por causa disso, amou ainda mais.
Os flocos de neve eram iguais às bolas de sabão: frágeis, intocáveis, sublimes.
Os flocos caíam.
As bolas subiam.
O rapaz apercebeu-se então que o mundo estava ao contrário e soprou violento para a noite. Os flocos de neve ficaram então suspensos no ar e logo mudaram de trajectória.
(A neve já não cai; sobe.)
O rapaz fica a vê-la subir.
Os flocos de neve flutuam depois sobre as casas e tomam a forma das nuvens, confundindo a própria noite. É tão branca a neve, que os pássaros acordam para o dia. Tão bela, tão irrepreensivelmente bela, que o corpo do rapaz sente uma dor só de a ver.
O rapaz ordenou: "Cai!" e ela caiu das nuvens para morrer nas suas mãos. Ele emociona-se. Diz: "Amo-te!" pensando que o amor é a contemplação do Belo.
O rapaz bebe então a água da neve: são agora um só corpo.
Tudo isto se passa no interior de um pisa-papéis, atrás de uma redoma de vidro. Daí o movimento aleatório da neve. E o mundo ao contrário.
Tudo ali é ficção.
À excepção do Belo.
E da dor.
(Só aquele amor é real.)

terça-feira, 11 de março de 2008

História sobre o choro

Para a Scout

De vez em quando chorava. Com uma raiva tal que o choro fazia barulho. Repito: o choro fazia barulho. Não a voz nem o esboço de voz nem o soluço tantas vezes reprimido. Nada disso, porque ela não soluçava nem dizia nada: chorava apenas. E portanto era o choro em si que fazia barulho, a água que vinha de dentro. A sua força era tal que caía com violência, explodindo no chão como pedaços de mar contra as rochas.
O que conhecia de mais parecido com o seu choro eram as quedas de água. Essa comparação apaziguava-a.
Por vezes sentia que desperdiçava energia, que alguém devia inventar barragens e moinhos portáteis que aproveitassem o seu choro. Pensava: A energia da minha queda de água iluminaria o prédio durante dias.
Adiantemos que ela não percebia nada de física nem de electricidade nem de mecânica. Estes seus planos eram portanto simples divagações do seu espírito aberto e da sua mente imaginativa.
Certo era que naquele dia estava realmente triste e chorou durante horas. Horas. E de repente, num abrir e fechar de olhos, parou de chorar. Estava ainda com a cara torta mas, de um momento para o outro, já não havia lágrimas para a sua queda de água. Era a primeira vez que tal sucedia. Perguntou-se se o choro seria uma fonte de energia renovável. Não sabia e ficou chateada por não saber. (A eventualidade de nunca mais chorar assustava-a.)
Pegou no telefone. Era urgente saber se o choro era renovável. Apercebeu-se que não tinha a quem perguntar tal coisa e foi antes para o escritório. Abriu o terceiro volume da enciclopédia.
Encontrou.
Choro s.m.
E leu algumas palavras aleatoriamente.
Fisiológico, sistema nervoso, lacrimação, pressão ocular, limbo, neurológico. De seguida, uma figura enorme representando a glândula lacrimal. Mais abaixo: género musical brasileiro. Por fim: derramamento de seiva. Voltou atrás. Derramamento de seiva a partir de superfícies cortadas das plantas. Disse:
- Curioso!
Depois: provérbios. Escolheu um.
Quem chora ou canta, seus males espanta.
Não tinha uma resposta para a sua pergunta. Fechou o terceiro volume da enciclopédia, arrumou-o e voltou para a sala.
Cansada do silêncio pôs-se a cantar. A canção não saía propriamente cantada, porque não conhecia letras de canções. Achou essa falha gravíssima e esforçou-se um pouco mais.
Lembrou-se então de uma canção de infância sobre um gato mariquinhas que fugia dos ratos. Aprendera-a nos escuteiros, era uma canção divertida.
Cantou-a.
De repente pensou: O canto é uma fonte de energia.
Repetiu o pensamento: O canto é uma fonte de energia.
Parecia-lhe uma descoberta fantástica e endireitou-se no sofá para ganhar seriedade. Era um projecto exequível, mas não sabia onde começar.
Talvez por isso tenha começado por rir.
Depois levantou-se.
Declarou para as paredes: Vou por aí mudar o mundo.
E foi.

quinta-feira, 6 de março de 2008

O vizinho polaco

O meu vizinho finge falar sozinho mas eu bem sei que fala com o cão. Passeiam-se pelo quarteirão e eu passo por eles de manhã. Não percebo o que dizem.
O vizinho vê-me, ri-se, cumprimenta. Diz: Bonjour! como quem fala às crianças e eu sorrio. Queixamo-nos normalmente do frio.
À noite desce as escadas desde o 4.º andar e fica à porta do prédio a falar baixinho. O cão ouve-o e cheira insistentemente o passeio. Encontro-o à entrada: eu de saco de lixo na mão e ele de cigarro na boca. Falamos do lixo ou do cão.
Ontem contou-me que tem família em Itália e eu interessei-me. Um minuto e meio de conversa. Depois perguntou-me: Também tem família em Itália? e eu disse que não.
O meu vizinho polaco ficou desolado por eu não ter família em Itália. Apercebi-me disso enquanto abria a porta. Corrigi a tempo: Vou procurar um primo em Roma. Gostava de ter família em Roma.
Ele riu-se. Eu também. Passou-lhe a tristeza. Deseja-me: Bonne nuit! como quem promete sonhos. Respondo no mesmo tom e subo a escada a rir.
Há nestes encontros uma dimensão de amor: o meu vizinho gostava de ser meu avô.
Estava a meio das escadas e decidi aprender polaco.
Para ser sua neta, claro. E falar com o cão.