Li finalmente O Ano do Pensamento Mágico, de Joan Didion. Começa assim: “A vida muda num instante. Sentamo-nos para jantar e a vida, como a conhecemos, acaba.”
A Joan Didion morreu na véspera da véspera de Natal. O João Paulo Cotrim morreu três dias depois. Não conheci a Joan nem o João, mas senti um pasmo cardíaco quando soube da morte de ambos.
Há uns meses apareceu um caracol numa alface cá em casa. Era um caracol muito pequenino. Fui mostrá-lo às crianças. O mais velho matou-o sem querer.
Reli a Mrs Dalloway e reli também As Horas. Aproveitei para rever também o filme. Fui então um pouco mais longe, e já agora, li o guião de cinema. Foi um exercício intrincado porque uma mulher real é personagem num livro onde uma outra personagem lê o livro que a mulher real escreveu.
As Horas começam com a famosa carta que Virginia Woolf escreveu ao marido no dia em que se suicidou. A carta acaba assim: “Não acredito que duas pessoas pudessem ter sido mais felizes do que nós fomos”.
Não foi um ano lá muito feliz. Chorei algumas vezes. Não me ri muito. Mas por acaso no outro dia tive um ataque de riso que me tirou o fôlego.
Aconteceram coisas estranhas.
A invasão do Capitólio. Aquele navio encalhado algures no Egito. O voo da Ryan Air desviado para a Bielorrússia. Aquela louca que me seguiu até casa. As cheias na Alemanha e na Bélgica. A quantidade de roupa que já não me serve. A quantidade de pessoas que se foi embora de Bruxelas. Grandes amigos do peito. Os vizinhos do lado. O menino da creche. Um amigo do mais velho.
Puxa. Parem lá de zarpar.
Perdi muito cabelo. Perdi umas luvas pretas. Fui multada por excesso de velocidade. Aprendi a letra de algumas canções tradicionais. A minha favorita é aquela assim: “Indo eu, indo eu, a caminho de Viseu”.
Demos muita coisa das crianças. Uma banheira, um carrinho, dois berços, muita roupa. Passamos férias em Portugal. Passamos duas noites no hospital.
Nevou em fevereiro. Nevou em abril. Nevou em novembro. Nevou em dezembro. Ainda não tenho um bom calçado para a neve.
Nasceu a Lua. A Salomé. A Sara.
Cortei um dedo a abrir uma lata de feijão. Cortei um dedo a abrir uma lata de atum. Cortei um dedo a ralar couve-flor. Foi sempre o mesmo dedo.
Senti-me muitas vezes exausta. Senti-me muitas vezes sozinha.
Ainda assim, tentei fazer o que esperavam de mim. Tomei as vitaminas. Tomei a vacina. Cortei o cabelo. Lavei os dentes. Separei o lixo. Comprei finalmente um desodorizante. Montei a árvore de Natal.
O mais velho pede-me beijinhos. Os mais pequenos dão-me grandes abraços. Ainda me acontece olhar para o meu marido e sentir um sobressalto. É do caneco.
Em 2022 espero que o bicho amaine e que nos deixe rir um bocado. Rir mesmo. À toa. Às gargalhadas. Sem medo. Sem pudor. Sem máscara.
Esta vida anda tão séria. Arre.
Bom ano, malta!