“De facto, já morri várias vezes
ao longo da minha vida
e ressuscitei outras tantas.
Morro e ressuscito com tanta facilidade
que por vezes creio estar vivo
quando estou morto,
e vice-versa.”
Juan José Millás, “La vida a ratos”
(citação traduzida por mim)
Hei de sofrer muito quando Juan José Millás morrer de vez. Se tudo correr conforme previsto, há de morrer antes de mim e eu hei de chorar.
Não conheço Juan José Millás, mas gosto dele como se gosta de um tio, de um professor, de um mentor.
Poderia ler Juan José Millás durante horas. Poderia ouvi-lo também durante horas. Sempre que o leio, sinto precisamente isto: que estive a lê-lo e também a ouvi-lo. Sinto aliás que o conheço, que frequento a sua casa, o seu escritório, que aprecio muito a sua maneira de gesticular e caminhar, que ele me dá livros e recortes de jornais, que nos abraçamos nas despedidas. “Adiós, Anita de mi corazón!”, diz-me Juan José. Só ele me trata por Anita. Mais ninguém.
Ando há meses a ler o seu diário ficcionado. Não é bem sobre o dia-a-dia do Juan José, mas é certamente sobre o dia-a-dia do Juan José. Chama-se “La vida a ratos”, mas o título nada tem a ver com ratos nem ratazanas. “La vida a ratos” poderia ser traduzido por “A vida às vezes” (É mesmo verdade que não existe uma edição portuguesa deste livro?)
Não leio este diário todos os dias. Leio-o às vezes, aos pedaços. E tudo nele me emociona até às lágrimas. Os gin tónicos que Juan José bebe nos cafés, as suas aulas de escrita criativa, as suas conversas com a psicanalista, as suas fobias e paranoias, aquela mania de tomar ansioliticos a torto e a direito, as suas ponderações culinárias. “Na vida tudo se pode fazer depressa, menos um refogado”, diz ele a páginas tantas.
Aquela reflexão linda sobre a sua infância: de que ele era uma criança muito triste, a mais triste de toda a sua geração. A sua obsessão pela mãe. A convicção de que ainda ouve a mãe pigarrear na sala, anos depois de ela ter morrido. Aquele pressentimento de que tudo isto pode ser uma farsa, de que nada é verdadeiramente real. De que o mundo por vezes mostra o seu verdadeiro (falso!) rosto. Por exemplo, quando damos com um relógio parado ou com um copo virado para baixo, quando abrimos um livro ao contrário, quando um ovo traz duas gemas, quando qualquer coisa parece não estar no seu devido lugar. A ideia de que a escrita pode ter essa missão: desconfiar sempre da realidade.
A certa altura diz uma coisa memorável sobre a adolescência. A propósito de viagens e da impossibilidade de explorarmos ingenuamente um lugar. Já conhecemos todos os lugares, mesmo que não os tenhamos visitado. Tudo nos é familiar. Mas há um mundo por explorar: a adolescência, diz ele. “A adolescência é como Marte. (…) Chegamos à adolescência como Colombo chegou à América: sem sabermos nada sobre a sua vegetação, o seu clima, os seus habitantes, a sua geografia.”
Que pessoa linda é Juan José. Pessoa frágil, forte, real, ficcionada, única. Talvez o que mais me emocione em Juan José seja a vulnerabilidade que ele assume e expõe. Os seus medos, as suas frustrações, os seus ataques de pânico e de choro. Não é o que se espera de um homem ocidental com 75 anos. Ou é?
Gostava de estar com o José Juan Millás num café. Não haveríamos de falar de literatura. Não lhe pediria um autógrafo. Juro. Beberíamos um gin tónico. Só isso.