Tem um ano e meio e, depois de 48 horas em ambiente hospitalar, que implicaram a inserção de agulha na mão direita para recolha de sangue, a colheita de secreções nasais através da introdução de um longo tubo de plástico pelo nariz acima, a colagem de elétrodos no torso, a colocação de um sensor no dedo do pé, a inserção de cateter na mão direita, a fixação de um circuito de tubos de plástico à volta da cabeça com saída de oxigénio nas narinas, o encontro com numerosos enfermeiros e médicos cobertos de batas e máscaras, a realização de duas sessões de fisioterapia respiratória e a passagem de duas noites mal dormidas por causa dos fios, dos elétrodos, do sensor, dos alarmes, do ranho, do cateter, e o raio que a parta, mãe e filho estão exaustos, impacientes e meio tantãs.
O meu filho chora. Uma enfermeira acaba de lhe lavar o nariz com um jato de soro fisiológico. Tento acalmá-lo no colo mas eu própria também preciso de um colo.
A enfermeira pediátrica, entretida a desenlaçar os fios que prendem o meu filho a vários aparelhos, pergunta-me se não trouxe um brinquedo para o menino. Explico-lhe que os fios que ligam o meu filho aos vários aparelhos me impedem de chegar à outra extremidade do quarto, onde se encontra o saco dos brinquedos. A enfermeira prontifica-se imediatamente a ir buscar o saco. Agradeço-lhe a atenção e a simpatia.
O meu filho chora nos meus braços enquanto abro o saco. Encontro, no meio dos legos e panelas, a ovelha e o crocodilo de que o meu filho tanto gosta. Hesito entre uma e outro, mas acabo por escolher um livro. O meu filho acalma-se assim que vê a menina da capa. Senta-se na sua cama a folhear o livro.
A enfermeira pediátrica, sempre afetuosa, diz-me num tom complacente: “Ó mamã, o seu filho não precisa de livros com esta idade. O seu filho precisa é de brincar!”
Olho para a enfermeira incrédula, mas a enfermeira olha agora para o meu filho de ano e meio e diz-lhe naquele tom infantil e tolo que as pessoas usam para falar às crianças: “Os livros são para mais tarde, bebé. Para partires a cabeça a fazer trabalhos para a escola. Agora tens de brincar!”
O meu filho olha para a enfermeira já mais calmo e regressa depois ao seu livro.
À saída do quarto, a enfermeira diz-me entusiasmada que anda uma raposa lá fora nos charcos. Que sou capaz de a ver da minha janela. A enfermeira diz ainda que gosta muito de raposas, que são animais muito bonitos e inteligentes. Concordo.
Passo os minutos seguintes à janela, de olhos postos no relvado à volta dos charcos. Apercebo-me nesse momento de que estou sem os óculos, nem sequer os trouxe para o hospital. Não consigo usá-los com a máscara nas fuças e, assim como assim, não há um horizonte onde pousar os olhos desde que a maleita chegou há coisa de um ano. Em março de 2020, por sinal, estava com o meu filho no hospital. Celebramos agora o aniversário da peste exatamente no mesmo hospital, já em clausura. Isto para dizer que me habituei ao longo deste ano a não enxergar a ponta de um corno. Desisti de usar óculos. Desisti de ver basicamente.
Ainda assim, fico à janela.
Vou olhando lá para fora enquanto penso na enfermeira pediátrica e nas muitas pessoas inteligentes e astutas como raposas, que ainda hoje consideram que os livros não são para meninos, que os livros existem para nos partir a cabeça e jamais para nos divertir ou encantar. Que não reconhecem propósito nenhum nesta coisa dos livros para crianças.
Ironicamente o livro que o meu filho folheia fala de uma grupeta de brinquedos que aguarda impacientemente o regresso a casa do menino que irá brincar com todos eles. O livro chama-se “Alors ?” na versão francesa, é da extraordinária Kitty Crowther (Catherine Crowther) e inclui um corvo, um cão, um coelho, um gato, um mocho e um urso que vão entrando um a um no quarto e perguntando a uma boneca: “Então?” (“Alors ?”) “Ele já chegou?” A boneca vai dizendo: “Não, ainda não chegou!”, até ao momento em que todos ouvem um barulho e o menino entra de rompante pelo quarto adentro, onde é recebido em grande euforia pelos seus companheiros de brincadeira.
Enquanto espero pela raposa que nunca chega a aparecer (ou que eu nunca chego a ver), penso no desencontro entre livros e não-leitores. Concluo que, como leitora e autora, devia ter interpelado a enfermeira pediátrica. Ouça lá, devia ter-lhe dito, que grande parvoíce acaba de dizer. Os livros não são para mais tarde. Os livros são para todos, em todas as idades, em todos os momentos. Isso vindo de si, devia ter-lhe dito com o dedo indicador no ar, uma enfermeira que trabalha exclusivamente com crianças, fica-lhe mesmo muito mal.
Procuro a raposa nos charcos e imagino-me a mostrar este livro da Kitty Crowther à enfermeira, a conquistá-la a cada página. A persuadi-la de que um livro não parte cabeças. Um livro consola, emociona, surpreende e brinca também.
Infelizmente a enfermeira não regressa ao meu quarto. Fico triste com a oportunidade perdida porque é esta a missão de todos os que leem e escrevem: nunca parar de defender o livro, nunca deixar de fora um potencial leitor, nunca deixar de fazer a pergunta “Alors ? Ele já chegou?” Porque um dia, quem sabe, esse leitor vai chegar e todos nós, que fazemos parte da festa dos livros, vamos querer recebê-lo em grande euforia.
Temos de estar atentos como raposas.
Feliz dia internacional do livro infantil!