quarta-feira, 11 de março de 2020

Lava as mãos, meu amor

Que nunca te falte o ar nem te dê a febre, meu amor. Diz que são esses os sintomas da doença. Não te rias. Já morreu muita gente. Bem sei que a paixão também mata, mas este vírus não é da família dos afetos. Não andes nos transportes públicos. Não vás ao mercado. Não vás a lado nenhum. O vírus anda nas pessoas e também nos edifícios e nas coisas das pessoas: nas malas, nos casacos, nos chapéus. Nas mesas, nas cadeiras, nas maçanetas. Basta uma gotícula, meu amor. Sim, uma gotícula microscópica, uma pessoa nem a vê. É como um segredo, como um sentimento: está dentro das pessoas e ninguém sabe. Por isso, lava as mãos, meu amor. Lava as mãos antes de comeres e depois de espirrares. Lava as mãos se te der para a tristeza ou para a saudade. Lava as mãos sempre que tiveres uma ideia ou um raciocínio. Tão bonitas as tuas mãos, tão brancas e lavadas. Fica em casa, meu amor. Aproveita o silêncio. Lê um livro. Há um certo alívio na clausura, vais ver. E não serve nada andar na rua, meu amor. Fecharam os museus. Fecharam os teatros. Fecharam as bibliotecas. Parece que agora a cultura anda à pinha, vê lá tu. Antes eram as praias e os centros comerciais, mas agora não. Já ninguém quer saber do mar e do consumo. Mas já não se pode estar nas bibliotecas. Há lá mais gente do que livros, as pessoas todas muito alinhadas nas salas de leitura, até faz impressão, parecem os livros nas estantes, umas a seguir às outras, as bibliotecas não foram feitas para tanta gente. Fica antes em casa, meu amor. Tens tantos livros para ler aqui. E havia também as cortinas do quarto. Há quantos meses querias tratar daquela bainha? Não te distraias, meu amor. E por favor não toques na boca. Não toques no nariz. Não toques nos olhos. Se sentires uma dor, telefona ao centro de saúde. Uma dorzinha que seja. Um ardor no peito, um sufoco na garganta. Uma náusea. Um sobressalto, um suspiro, uma angústia. 
Mas atenção. Não confundas a doença com infeção. Não confundas o vírus com a gripe. Não confundas o ardor com desejo. Não confundas esse mal-estar com um sentimento.