sexta-feira, 20 de março de 2020

Alguém conhece alguém

Nos últimos dias há sempre alguém que telefona a alguém e conta a esse alguém que conhece alguém que tem covid, mas felizmente não esteve em contacto com essa pessoa nas últimas semanas, mas esteve com alguém que esteve com essa pessoa, por acaso deram dois beijinhos, mas foi só uma reunião de trabalho, as pessoas não se tocaram mas no final comeram um bolo de amêndoa e beberam um sumo de maçã porque alguém fazia anos e até brindaram, que estupidez, brindar com sumo de maçã, mas seja como for só um grande azar poderia ditar o contágio por aí, e o alguém que ouve a história respira fundo e diz “vai correr tudo bem”, que é uma frase que as pessoas dizem precisamente quando tudo pode correr mal, e o primeiro alguém diz ao outro alguém que não é por ele nem por fulano nem sicrano, é mesmo pela sua mãe com quem esteve várias vezes nessa semana e a mãezinha, já se sabe, além de idosa e diabética, passa a vida com as amigas igualmente idosas e diabéticas, e nisto interrompe o discurso para tossir, uma tosse seca, cof cof, e os dois alguéns ouvem a tosse e não dizem nada, por um momento fica só a tosse e o silêncio, e depois despedem-se, “vai correr tudo bem”, “claro que vai”, que bom terem feito aquela chamada, era uma maneira de estarem próximos e seguros, cuida de ti, tu também, cof cof, o primeiro alguém desliga a chamada e decide que já nem vai à rua dar a volta ao quarteirão, cof cof, e não é bem pela saúde dele, é pela dos outros, e sente-se de repente bastante bem na sua pele, e decide que as coisas não lhe correram assim tão mal na vida, afinal apaixonara-se várias vezes, passara vários verões no Gerês, dera grandes mergulhos daquela rocha muito alta e escorregadia, a filha tinha casado bem, tantas vezes adormecera na praia a ler um livro, tinha dormido ao relento no pico do Pico, tinha ido a Veneza com a primeira mulher e a Paris com a segunda, já para não falar naquelas tardadas a jogar à bisca e a beber cerveja, agora apetecia-lhe mesmo era um prato de tremoços, mas só tinha amendoins, por isso bebe uma cerveja e come amendoins, que engraçado lembrar-se agora daquelas tardes a jogar à bisca, na altura nem pareciam tão importantes, e esse alguém por ali fica, na mesa da cozinha a tarde toda, cof cof, cof cof, a pensar que se ele morrer em breve, não vem daí grande mal ao mundo nem grande bem, a sua presença ou ausência era um bocado indiferente, e ainda bem, mas no fundo tinha sido uma parvoíce ter deixado de fumar, cof cof.