O que dá cabo de mim não é bem este distanciamento surreal. Não é a minha casa. Não é a minha família. Não é a minha vidinha com os seus mini dramas. O que dá cabo de mim é ver o número de mortes aumentar e a solidariedade diminuir. É olhar para os gráficos e já não sentir grande coisa. É ver aqueles arco-irís que as famílias andam a pôr nas janelas e pensar que não, não vamos todos ficar bem. É ver a União Europeia cada vez mais desunida. É ver a discussão acabar sempre no dinheiro. É não me sentir inspirada por um nenhum dirigente. É perceber que isto nos vai transformar para sempre. É pensar que vamos sair deste isolamento ainda mais isolados.
É acima de tudo não ter um fim em vista. Não saber em que momento este pesadelo vai acabar. Não saber se este pesadelo vai acabar de facto.
É não me reconhecer no meio deste negrume. É sentir que eu já não sou bem a mesma pessoa. É olhar para as árvores e achar que elas andam contentes. É pensar que o Covid-19 pode ser o herói do ambiente. É pensar que nós somos o inimigo.
Mas depois às oito da noite ouço as palmas lá fora e isso salva-me. Largo o que estiver a fazer. Abro a persiana à bruta, abro a janela e grito, urro, bato palmas. O meu marido vai buscar o xilofone, o nosso mais velho guincha de entusiasmo. Diz: “palminhas”. Ficamos os três à janela a fazer barulho. Vejo a vizinha do lado que é italiana. Vejo a família do quarto andar, ele espanhol, ela italiana, os dois filhos a bater nas pandeiretas. Vejo mais uns vizinhos à frente, em baixo e em cima, não sei quem eles são. Acenamos uns aos outros. A vizinha do lado diz qualquer coisa que eu não percebo. Ela repete, eu não percebo. Rimo-nos, batemos palmas. A nossa ovação é uma oração. Eu bato palmas para os profissionais da saúde, claro, mas também para os que recolhem o lixo, para os que asseguram que os supermercados continuam a funcionar, para os polícias, para os bombeiros, para os professores. Eu bato palmas para os teletrabalhadores, para os independentes que não sabem como vão pagar a renda no próximo mês, para os artistas que andam a disponibilizar a sua arte para nos salvarem e para se salvarem a eles. Eu bato palmas para todos os doentes que estão no hospital, para os que morreram, para os que sobreviveram e também bato palmas para todos os que batem palmas, para os que ficam em casa e não perdem o Norte. Eu bato palmas para os meus filhos, para as crianças de todo o lado, para os pais, para os avós, para os que estão sozinhos, para todos os homens e mulheres e todos os que não estão nesta lista e deviam estar.
Eu bato palmas e tenho vontade de abraçar os meus vizinhos, de abraçar o mundo inteiro. Eu bato palmas e tenho vontade de desenhar um arco-íris e de escrever por baixo desse arco-íris “vamos todos ficar bem”. Porque de repente também acredito nisso e não há nada mais humano do que esta esperança, esta vontade. Esta salva de palmas.
O arco-íris dos meus sobrinhos. |