Estou aqui encarcerada a pensar sobre outros momentos de encarceramento.
É que eu sempre passei tempo fechada em casa. E nem sequer sou introvertida. Falo pelos cotovelos, rio-me muito alto e preciso tanto dos outros, amo os outros. Não há nada que me dê mais pujança do que um jantar romântico ou um copo com amigos ou um almoço de família. Adoro estar à mesa. Não me esqueço das frases nem dos abraços, dos gestos, dos pratos, dos debates. Faz-me tão bem pensar com os outros, existir com os outros.
Mas sempre fiz por passar tempo sozinha e em casa. Não propriamente para me desligar ou para fugir. Pelo contrário. Eu gosto de estar sozinha precisamente para me ligar ao mundo, para pensar sobre ele, para prestar atenção e escrever sobre isso, ler sobre isso. E são esses momentos aparentemente vazios que mais preenchem os meus dias.
Acontecem-me muitas coisas quando estou em casa. Deito-me no sofá e leio qualquer coisa. Escrevo qualquer coisa. Sinto qualquer coisa. Aprendo qualquer coisa. Anoto. Percebo. Ouço. Vejo. Penso. Lembro-me. Emociono-me. Tenho uma ideia. Tenho uma dúvida. Tomo uma decisão. Em casa os minutos podem durar horas e é tudo mais intenso, mais concentrado.
Depois fui mãe e a maternidade trouxe outra espécie de confinamento. É uma solidão acompanhada, que é talvez a pior solidão de todas. No início ficava em casa com os meus rebentos porque eram muito pequenos, depois porque ainda não estavam vacinados. Agora fico em casa quando estão doentes ou porque a creche fecha ou porque a babysitter não vem.
Em qualquer dos casos, ontem ou hoje, a ler no sofá ou a dar banhos aos minorcas, o isolamento vem sempre acompanhado de hesitação e ambiguidade. Para quê ficar em casa se podia estar na rua? Para quê estar sozinha se podia estar acompanhada?
Mais cedo ou mais tarde chega o momento de contraste com a vida lá fora. E é tudo tão melhor lá fora. Pessoas nos cafés, nas esplanadas, nos bares, nos restaurantes. De certeza que eu não preferia estar a beber uma caneca de cerveja? Para quê escrever um livro, se o sol estava tão bem instalado na esquina? Para quê perder anos com a infância destes bebés, se a felicidade mora claramente naquele bar com luzinhas nas janelas?
Mais cedo ou mais tarde chega o momento de contraste com a vida lá fora. E é tudo tão melhor lá fora. Pessoas nos cafés, nas esplanadas, nos bares, nos restaurantes. De certeza que eu não preferia estar a beber uma caneca de cerveja? Para quê escrever um livro, se o sol estava tão bem instalado na esquina? Para quê perder anos com a infância destes bebés, se a felicidade mora claramente naquele bar com luzinhas nas janelas?
A vida em reclusão parece exigir uma determinação que eu nem sempre tenho.
Houve ainda outro tipo de isolamento. Foi no final de 2015, com os atentados em Paris. Nessa altura andámos todos mais recolhidos. A sensação nas ruas era a de ansiedade e medo. Qualquer coisa poderia explodir a qualquer momento, poderíamos morrer naquela loja, naquela esquina. As ruas estavam despidas de gente e de vida. O cenário era triste. Depois uma bomba explodiu em Bruxelas e depois outra e, com elas, explodiu também esse medo. O que mais temíamos acontecera por fim e afinal estávamos vivos, embora não iguais. A primeira coisa que fiz foi andar a pé. A segunda foi comprar um livro. E a terceira foi comer chocolate.
Agora estamos todos fechados em casa outra vez. Mas a sensação é bastante diferente. O que nos move (ou o que não nos move) não é bem o terror. É um medo mais positivo. É uma firmeza na vontade. Estamos conscientes e seguros. Estamos numa importante missão antivírus apesar de estarmos em casa. Temos em mente não a morte, mas a vida, porque o futuro está nas nossas mãos (lavadas). Além disso, não há alternativa. Os cafés estão fechados, as lojas também. Há esse consolo no castigo.
É certo que nenhum de nós escolheu este triste fado, mas sinto-me hoje unida a todos os que estão em clausura. Podemos estar sozinhos, mas não estamos sozinhos nisto.
Queremos proteger os nossos, é certo. Mas acima de tudo queremos proteger os outros: os mais velhos, os diabéticos, os hipertensos, os doentes cardíacos, etc.
Ontem saí de casa, vi as ruas despovoadas, lojas e cafés fechados, elétricos vazios, e não me bateu a ansiedade. Talvez tenha respirado um pouco menos do que o habitual, é verdade, talvez tenha estado mais alerta, as mãos enfiadas nos bolsos. Mas não senti pânico nem tristeza. Senti contentamento e gratidão.
Obrigada, vizinhos. Obrigada a todos os que cuidam. Não é só o pessoal do setor da saúde (que merece obviamente todos os aplausos e louvores). Somos todos nós. Os que ficam em casa. Os que não correm riscos. Os que não têm medo da solidão. Os que atuam, mesmo que isto implique não fazer nada.
Palminhas a nós.