A Leïla morreu. Chamava-se Leïla-Thérèse. E era tão nova. Tão alta. Tão viva.
Passei agora na rua dela, na porta dela. Número 25. O nome dela ainda lá está. Tirei um nome à placa, não sei porquê.
Em junho escrevemos-lhe um postal. Eu e a Laura. Estávamos juntas num café e gostávamos que ela se juntasse a nós em breve. Foi o que escrevemos.
Há meses que a Leïla não nos queria ver. Não queria ver ninguém. Respondeu-nos por email nesse mesmo dia. Que estava muito fraca, que precisava de recuperar do último tratamento, que aquele postal lhe dava força.
No meu dia de anos enviou-me uma mensagem linda. Eu respondi. Foi a última vez que falámos. Estive a ler isso tudo hoje. Os últimos emails. As últimas mensagens.
Há uns tempos encontrámo-nos no mercado. Lembro-me bem. Ficámos felizes por nos vermos. Ficámos tão felizes. Porque seria? Mais tarde falámos sobre isso. Por que razão estávamos tão felizes naquele encontro? Seria por estarmos no mercado? Seria por ser inverno? Seria por sermos amigas e vizinhas? Por ter sido um encontro não planeado, imprevisto, espontâneo? Realmente era bom encontrar uma amiga no mercado. Era bom encontrar uma amiga num dia de inverno. Mas não era bem isso.
Fizemos compras juntas. Os comerciantes conversavam com a Leïla, riam-se das suas piadas, que eram sempre agudas e sarcásticas. Eu disse-lhe que os comerciantes não se riam para mim. Ela fez uma piada qualquer, não me lembro exatamente o que disse. Apontei para uns dióspiros. Disse-lhe: "São tão bons, estes dióspiros." Ela disse: "A sério? Eu nunca comi um dióspiro." Como era possível? A Leïla, uma mulher tão rural, tão francesa, tão agrónoma, nunca ter comido um dióspiro. Rimo-nos. A Leïla comprou um dióspiro e prometeu-me que depois me diria se tinha gostado. (Gostou.)
No final das compras disse-lhe que estava feliz de a encontrar precisamente porque estava muito triste. Ela respondeu-me que também estava feliz por me ver porque também estava muito triste. Decidimos sair do mercado e beber um copo.
Sentámo-nos à janela de um bar de esquina. Estava frio. A Leïla propôs que bebêssemos vinho quente. Era uma bela ideia. O dia muito escuro lá fora e nós lá dentro, a bebericar vinho quente. Estava bom, não estava? Ui, que bom que estava. Falámos das nossas mágoas, das nossas esperanças. Haveríamos de sair dali menos tristes do que antes, menos frágeis, menos sóbrias. Eu disse mais uma vez que estava feliz por nos termos encontrado, estupidamente feliz. Era possível sentir felicidade na tristeza. A Leïla, tão doente, tão forte, tão viva, disse que o importante nesta vida era passar tempo com as pessoas de quem gostamos. Que o resto não valia um chavo. Eu concordei. Agarrámos nos nossos saquinhos de pano e nas nossas mágoas, e lá fomos à vida. Falámos deste episódio várias vezes. De como era bom encontrar uma amiga num dia triste. De como era bom beber vinho quente no inverno.
Quando o meu filho nasceu, a Leïla trouxe-lhe um orangotango. Rimo-nos com aquele boneco, inventámos vozes e gestos para ele. A Leïla disse ao meu filho que o ia levar a passear muitas vezes com aquele orangotango. E que um dia o ia raptar porque ele era um bebé muito lindo.
A última vez que a vi, foi ao longe. Eu vinha a saltitar pela rua com a minha cria e a Leïla vinha a caminhar devagar, quase sem forças. A Leïla tão doente. Tão triste. Tão fraca. Ela não me viu, mas eu vi-a. Abrandei o passo e fiquei a vê-la. A Leïla tão cheia de tristeza. Tão cheia de perda. E eu tão cheia de pena. Tão cheia de silêncio. Tão cheia de vergonha da minha sorte, da minha saúde, da minha cria. É possível sentir tristeza na felicidade.
Não nos falámos. A Leïla não ia querer a minha pena nem a minha vergonha. Eu sei disso. E agora a Leïla morreu e nunca vai levar o meu filho a passear com o orangotango. Nunca o vai raptar. E nunca mais vamos beber vinho quente.
Mas jamais me vou esquecer que fui feliz naquele dia triste, que encontrei uma amiga nesse dia de inverno e que, juntas, abrimos os nossos corações ao meio, como dióspiros. É que nem sempre é assim. Quase nunca é assim. E é pena. O importante nesta vida é passar tempo com as pessoas de quem gostamos.
O resto, realmente, não vale um chavo.
sexta-feira, 31 de agosto de 2018
quinta-feira, 30 de agosto de 2018
Mary John no México!
Estou feliz feliz feliiiiiz. A Mary John está mesmo a chegar ao México. O meu coração aos tombos.
Uma edição linda das Ediciones El Naranjo com uma tradução em filigrana pela talentosa Paula Abramo.
No México, a Maria João é Maria José. A Mary John é Mary Jo. Mas o amor é o amor. E a vida é a vida.
"Mi primera mentira. Me miraste, te miré. Dos preguntas, dos enigmas. Me preguntaste: ¿Cómo te llamas? Y yo dije: José. Y esto ya no era una mentira. Todo mundo me dice José, menos tú, que me dices Mary Jo..."
Obrigada, México. Obrigada, vida!
Uma edição linda das Ediciones El Naranjo com uma tradução em filigrana pela talentosa Paula Abramo.
No México, a Maria João é Maria José. A Mary John é Mary Jo. Mas o amor é o amor. E a vida é a vida.
"Mi primera mentira. Me miraste, te miré. Dos preguntas, dos enigmas. Me preguntaste: ¿Cómo te llamas? Y yo dije: José. Y esto ya no era una mentira. Todo mundo me dice José, menos tú, que me dices Mary Jo..."
Obrigada, México. Obrigada, vida!
sábado, 25 de agosto de 2018
Literatura juvenil nas Palavras Andarilhas
Que bem que se esteve hoje em Beja, nas Palavras Andarilhas, à sombra das árvores. Eu e a Ana Saldanha cá estivemos a conversar sobre literatura juvenil com uma plateia cheia de entusiasmo e perguntas.
Falámos da gaguez da adolescência, do problema das faixas etárias, de sexo e outros tabus, dos adolescentes, do paternalismo dos adultos, do processo criativo e da censura: a censura explícita, a autocensura e a censura velada.
Os livros juvenis são só para adolescentes? Claro que não. Um livro juvenil pode falar sobre sexo? Claro que pode.
A literatura juvenil é literatura. A literatura é livre. A literatura é de quem a apanhar.
Palavras Andarilhas, um festival das palavras, da narração oral, dos livros, da ilustração e da música. Que maravilha!
Resta-me agradecer à Cristina Taquelim e a toda a equipa andarilha, gente boa que vive nos livros e na leitura. Foi tão bom!
Falámos da gaguez da adolescência, do problema das faixas etárias, de sexo e outros tabus, dos adolescentes, do paternalismo dos adultos, do processo criativo e da censura: a censura explícita, a autocensura e a censura velada.
Os livros juvenis são só para adolescentes? Claro que não. Um livro juvenil pode falar sobre sexo? Claro que pode.
A literatura juvenil é literatura. A literatura é livre. A literatura é de quem a apanhar.
Palavras Andarilhas, um festival das palavras, da narração oral, dos livros, da ilustração e da música. Que maravilha!
Resta-me agradecer à Cristina Taquelim e a toda a equipa andarilha, gente boa que vive nos livros e na leitura. Foi tão bom!
quinta-feira, 23 de agosto de 2018
Supergigante no México
E agora uma notícia supergigante num texto supergigante!
Disse-me há uns dias a tradutora mexicana Paula Abramo que a sua tradução do Supergigante foi finalista no Prémio Bellas Artes de Traducción Literaria Margarita Michelena 2018 (ata do júri).
Esta tradução primorosa, que eu li e reli, chegou ao México numa edição linda da editora Ediciones El Naranjo, com distribuição por toda a América Latina. Nunca conheci a Paula, mas sigo-a atentamente à distância através do Facebook. Entre muitas outras coisas, a Paula tem traduzido e divulgado tesouros desconhecidos do Machado de Assis! Este mundo é cada vez mais global, cada vez mais próximo, cada vez mais de todos nós, sobretudo graças aos tradutores. O que seria deste mundo sem tradução? Não seria bem um mundo. Seriam imensos mundos isolados. Territórios incapazes de comunicar entre si.
É preciso celebrar os tradutores. Acima de tudo os tradutores literários, essas figuras discretas que circulam nas sombras. Ninguém as vê, mas são eles que nos abrem as portas à literatura de todo o mundo. Trabalham nos bastidores, em silêncio. São praticantes da alquimia linguística, mas quase nunca vêm nas capas dos livros. Além disso, são trabalhadores mal pagos, maltratados, mal tudo.
Valham-nos pelo menos os prémios atribuídos a estas divindades generosas. Lançam a luz sobre o seu trabalho e o seu nome.
Vivam os tradutores literários! Viva a Paula Abramo!
Via página de Facebook da editora El Naranjo |
Disse-me há uns dias a tradutora mexicana Paula Abramo que a sua tradução do Supergigante foi finalista no Prémio Bellas Artes de Traducción Literaria Margarita Michelena 2018 (ata do júri).
Esta tradução primorosa, que eu li e reli, chegou ao México numa edição linda da editora Ediciones El Naranjo, com distribuição por toda a América Latina. Nunca conheci a Paula, mas sigo-a atentamente à distância através do Facebook. Entre muitas outras coisas, a Paula tem traduzido e divulgado tesouros desconhecidos do Machado de Assis! Este mundo é cada vez mais global, cada vez mais próximo, cada vez mais de todos nós, sobretudo graças aos tradutores. O que seria deste mundo sem tradução? Não seria bem um mundo. Seriam imensos mundos isolados. Territórios incapazes de comunicar entre si.
É preciso celebrar os tradutores. Acima de tudo os tradutores literários, essas figuras discretas que circulam nas sombras. Ninguém as vê, mas são eles que nos abrem as portas à literatura de todo o mundo. Trabalham nos bastidores, em silêncio. São praticantes da alquimia linguística, mas quase nunca vêm nas capas dos livros. Além disso, são trabalhadores mal pagos, maltratados, mal tudo.
Valham-nos pelo menos os prémios atribuídos a estas divindades generosas. Lançam a luz sobre o seu trabalho e o seu nome.
Vivam os tradutores literários! Viva a Paula Abramo!
segunda-feira, 20 de agosto de 2018
Palavras Andarilhas
Se puderem e quiserem, venham andarilhar em Beja. Vou lá estar no sábado com a Ana Saldanha a falar de literatura juvenil, "essa terra incógnita".
Programa completo aqui:
https://palavrasandarilhas.pt/palavras-andarilhas-2018/encontro/
segunda-feira, 13 de agosto de 2018
O nosso lifestyle newly revamped
Atenção: este blogue estreia-se finalmente nas últimas tendências do lifestyle. Espero que gostem deste espaço newly revamped, que brilha no escuro.
No comboio para Lille, folheio em alta-velocidade a revista da Eurostar, o gigante ferroviário que atravessa em regime de exclusividade o canal da Mancha e liga Londres às principais cidades dos Países Baixos, da Bélgica e da França. A revista chama-se Metropolitan, assume-se como publicação de lifestyle e é distribuída gratuitamente nos comboios que transportam mensalmente cerca de 800 mil passageiros. Na capa, a declaração de intenções: Food Culture Design & glow-in-the-dark ice-cream. A receita de sempre: futilidade ao mais baixo nível mascarada de requinte e sofisticação.
Passo os olhos pelos artigos. No início divirto-me com as expressões complicadas cheias de cores e texturas: sow cool, white hot, blue steal, cold comfort. Depois passa-me o conforto e instala-se de súbito o desconsolo da insatisfação, a angústia nervosa do consumismo.
É este o efeito das revistas lifestyle. A sensação de que algures na urban jungle há uma vida paralela muito melhor do que esta, com preocupações e necessidades muito mais refinadas. Os artigos publicitários e artificiosos vêm disfarçados de reportagens sobre as fashion boutiques e as concept stores. Gritam-me aos sentidos, dão-me ordens. Party like a Parisian, dizem-me. Grab a quick bite, smell the roses, join the locals. Don't miss. Don't let. Get ready. Pull up a deckchair. Uma pessoa apanha o comboio e sente-se logo em falta com a sua própria vida, porque não trouxe a manta de piquenique e não sabe onde ficam as culinary trends nem a vibrant nightlife. Além do modo Imperativo, os autores narram as suas descobertas fúteis quase sempre na primeira pessoa do plural. We love. We are crazy about. We kick up our heels. Nós: aquela entidade coletiva a que todos queremos pertencer, mas que ninguém sabe ao certo quem é. A experiência é comum a um grupo e, por isso, impõe-se. E é esta entidade coletiva não identificada que nos diz onde fica o buzz-worthy restaurant, onde devemos tomar um whisky-infused cocktail e onde podemos comprar statement socks, cool-kid jewellery e hipster-friendly gifts. Produtos disfarçados de conceitos. Conceitos disfarçados de coisas. Até as pessoas não são bem pessoas. São gourmet aficionados. São uma arty crowd. É difícil perceber a fronteira entre os artigos e a publicidade. Uma das secções chama-se Promotion e outra chama-se Publi-reportage. A linguagem é dazzling e cosmopolitan. Está repleta de hotspots, pit stops, pop-ups, start-ups, top-shops. Necessidades novas, soluções para problemas que desconhecíamos. Tudo isto pulverizado de vibrações e sensações. Um fresh spin, uma festive feel, uma viral sensation, um laid-back family vibe, etc.
Avanço pela revista vibrando de irritação e desânimo.
Em Amesterdão há uma professora de ioga que junta nas suas aulas uma manada de alunos e uma grupeta de cabras. A professora, inicialmente apreensiva em relação a este método, rapidamente percebeu os benefícios que resultam de abraçarmos uma cabra. Fica assim lançado o convite para hit the hay.
E tudo é cheerful, newly revamped, cosmopolitan, inspiring, outstanding, breath-taking e unforgettable.
Assim vai a sociedade ocidental. Caminhando elegantemente em sapatos de salto alto e com óculos escuros da Miu Miu para o precipício da superficialidade. Tudo going gaga com a latest craze. Cada vez mais obcecados com tendências e experiências. Todos tão sedentos de humanidade e pureza, mas cada vez mais sozinhos e infelizes. Afastados da vida, da natureza, dos outros e até de nós próprios.
No meio desta superficialidade a dar ares industrial-chic, o que importa perceber, julgo eu, é que a malta com dinheiro e poder nos media quer precisamente isso. Que nós, a entidade coletiva não identificada, continuemos a alta-velocidade, sentadinhos de preferência na classe turística, a sonhar com uma vida artificial cheia de brilhos e salamaleques, e a investir todo o nosso dinheiro e energia em coisinhas e eventos cheios de formas e sem qualquer conteúdo. Chego a Lille a sentir-me enganada e vazia de ideias.
Mas nem tudo é mau. Spice up your life, malta! Acabo de ler nesta revista que as Spice Girls poderão vir a juntar-se novamente. Zig-a-zig-ah! Eu não sou hipster-friendly nem gourmet aficionada, mas também não sou imune aos artifícios das tendências.
No comboio para Lille, folheio em alta-velocidade a revista da Eurostar, o gigante ferroviário que atravessa em regime de exclusividade o canal da Mancha e liga Londres às principais cidades dos Países Baixos, da Bélgica e da França. A revista chama-se Metropolitan, assume-se como publicação de lifestyle e é distribuída gratuitamente nos comboios que transportam mensalmente cerca de 800 mil passageiros. Na capa, a declaração de intenções: Food Culture Design & glow-in-the-dark ice-cream. A receita de sempre: futilidade ao mais baixo nível mascarada de requinte e sofisticação.
Passo os olhos pelos artigos. No início divirto-me com as expressões complicadas cheias de cores e texturas: sow cool, white hot, blue steal, cold comfort. Depois passa-me o conforto e instala-se de súbito o desconsolo da insatisfação, a angústia nervosa do consumismo.
É este o efeito das revistas lifestyle. A sensação de que algures na urban jungle há uma vida paralela muito melhor do que esta, com preocupações e necessidades muito mais refinadas. Os artigos publicitários e artificiosos vêm disfarçados de reportagens sobre as fashion boutiques e as concept stores. Gritam-me aos sentidos, dão-me ordens. Party like a Parisian, dizem-me. Grab a quick bite, smell the roses, join the locals. Don't miss. Don't let. Get ready. Pull up a deckchair. Uma pessoa apanha o comboio e sente-se logo em falta com a sua própria vida, porque não trouxe a manta de piquenique e não sabe onde ficam as culinary trends nem a vibrant nightlife. Além do modo Imperativo, os autores narram as suas descobertas fúteis quase sempre na primeira pessoa do plural. We love. We are crazy about. We kick up our heels. Nós: aquela entidade coletiva a que todos queremos pertencer, mas que ninguém sabe ao certo quem é. A experiência é comum a um grupo e, por isso, impõe-se. E é esta entidade coletiva não identificada que nos diz onde fica o buzz-worthy restaurant, onde devemos tomar um whisky-infused cocktail e onde podemos comprar statement socks, cool-kid jewellery e hipster-friendly gifts. Produtos disfarçados de conceitos. Conceitos disfarçados de coisas. Até as pessoas não são bem pessoas. São gourmet aficionados. São uma arty crowd. É difícil perceber a fronteira entre os artigos e a publicidade. Uma das secções chama-se Promotion e outra chama-se Publi-reportage. A linguagem é dazzling e cosmopolitan. Está repleta de hotspots, pit stops, pop-ups, start-ups, top-shops. Necessidades novas, soluções para problemas que desconhecíamos. Tudo isto pulverizado de vibrações e sensações. Um fresh spin, uma festive feel, uma viral sensation, um laid-back family vibe, etc.
Avanço pela revista vibrando de irritação e desânimo.
Em Amesterdão há uma professora de ioga que junta nas suas aulas uma manada de alunos e uma grupeta de cabras. A professora, inicialmente apreensiva em relação a este método, rapidamente percebeu os benefícios que resultam de abraçarmos uma cabra. Fica assim lançado o convite para hit the hay.
E tudo é cheerful, newly revamped, cosmopolitan, inspiring, outstanding, breath-taking e unforgettable.
Assim vai a sociedade ocidental. Caminhando elegantemente em sapatos de salto alto e com óculos escuros da Miu Miu para o precipício da superficialidade. Tudo going gaga com a latest craze. Cada vez mais obcecados com tendências e experiências. Todos tão sedentos de humanidade e pureza, mas cada vez mais sozinhos e infelizes. Afastados da vida, da natureza, dos outros e até de nós próprios.
No meio desta superficialidade a dar ares industrial-chic, o que importa perceber, julgo eu, é que a malta com dinheiro e poder nos media quer precisamente isso. Que nós, a entidade coletiva não identificada, continuemos a alta-velocidade, sentadinhos de preferência na classe turística, a sonhar com uma vida artificial cheia de brilhos e salamaleques, e a investir todo o nosso dinheiro e energia em coisinhas e eventos cheios de formas e sem qualquer conteúdo. Chego a Lille a sentir-me enganada e vazia de ideias.
Mas nem tudo é mau. Spice up your life, malta! Acabo de ler nesta revista que as Spice Girls poderão vir a juntar-se novamente. Zig-a-zig-ah! Eu não sou hipster-friendly nem gourmet aficionada, mas também não sou imune aos artifícios das tendências.
quarta-feira, 8 de agosto de 2018
Seis vezes seis
É quarta-feira. Hoje há mercado. E eu faço 36 anos.
Vou comprar ameixas. Alperces. Pepino. E azeitonas, pera abacate, queijo de cabra, húmus. Com sorte, ainda há pão com nozes e meloas doces. Eu sou feliz à quarta-feira. Especialmente hoje, que está mais fresquinho. A minha cria odeia calor e eu preciso de arejar as ideias. Talvez aprenda qualquer coisa hoje. A mulher dos legumes, que parece um homem, dá-me sempre bons conselhos. As mãos duras e calejadas, uma espécie de luvas nos pulsos. Espero que o senhor dos queijos me faça um elogio. Passa a vida a amanteigar-me. "Esse vestido fica-lhe tão bem." Vou almoçar àquele sítio novo aqui ao lado. Tem um bom terraço. O meu filho fica sentado na mesa a brincar com o guardanapo. Depois havemos de ir ao parque ver as árvores e os pássaros. Eu vou beber café, ele vai comer relva. Pelas 16h convém estarmos em casa para lhe dar a fruta. Eu faço planos dentro da cabeça e também faço 36 anos. Sou um seis ao quadrado. Um seis vezes seis na tabuada da vida. Nada mau. Um dia talvez venha a ser um sete vezes sete, um oito vezes oito. Eu olho para o meu filho, este pé descalço que só sabe pôr terra à boca, e penso que ele ainda nem chegou ao início da tabuada. Ao um vezes um. E penso também que talvez um dia ele chegue aqui, ao seis vezes seis. E que nessa altura talvez saiba que o tempo e o espaço continuarão depois dele. Que, na melhor das hipóteses, gostará de estar entre os vivos e chegará ao fim da tabuada. Ao dez vezes dez. Que a história da vida é feita das histórias dos dias. Das nossas paixões, das nossas zangas. Das nossas idas ao mercado, dos nossos passeios no parque. Que a maior parte dos dias acabam da mesma maneira. Com um certo cansaço. Que não é nada mau regressar a casa. Que o amor existe. Que o amor pode. Que o amor ordena. E que, depois do seis vezes seis, ainda há muita tabuada pela frente. Eu, que sempre fui uma nostálgica debruçada sobre o passado, chego aos 36 a pensar nos próximos 36 anos. Oxalá cheguemos a esse futuro. Oxalá a minha tabuada ainda não vá a meio. Gostava que me restasse mais tempo com este menino, pé descalço, do que o tempo que vivi sem ele.
Vou comprar ameixas. Alperces. Pepino. E azeitonas, pera abacate, queijo de cabra, húmus. Com sorte, ainda há pão com nozes e meloas doces. Eu sou feliz à quarta-feira. Especialmente hoje, que está mais fresquinho. A minha cria odeia calor e eu preciso de arejar as ideias. Talvez aprenda qualquer coisa hoje. A mulher dos legumes, que parece um homem, dá-me sempre bons conselhos. As mãos duras e calejadas, uma espécie de luvas nos pulsos. Espero que o senhor dos queijos me faça um elogio. Passa a vida a amanteigar-me. "Esse vestido fica-lhe tão bem." Vou almoçar àquele sítio novo aqui ao lado. Tem um bom terraço. O meu filho fica sentado na mesa a brincar com o guardanapo. Depois havemos de ir ao parque ver as árvores e os pássaros. Eu vou beber café, ele vai comer relva. Pelas 16h convém estarmos em casa para lhe dar a fruta. Eu faço planos dentro da cabeça e também faço 36 anos. Sou um seis ao quadrado. Um seis vezes seis na tabuada da vida. Nada mau. Um dia talvez venha a ser um sete vezes sete, um oito vezes oito. Eu olho para o meu filho, este pé descalço que só sabe pôr terra à boca, e penso que ele ainda nem chegou ao início da tabuada. Ao um vezes um. E penso também que talvez um dia ele chegue aqui, ao seis vezes seis. E que nessa altura talvez saiba que o tempo e o espaço continuarão depois dele. Que, na melhor das hipóteses, gostará de estar entre os vivos e chegará ao fim da tabuada. Ao dez vezes dez. Que a história da vida é feita das histórias dos dias. Das nossas paixões, das nossas zangas. Das nossas idas ao mercado, dos nossos passeios no parque. Que a maior parte dos dias acabam da mesma maneira. Com um certo cansaço. Que não é nada mau regressar a casa. Que o amor existe. Que o amor pode. Que o amor ordena. E que, depois do seis vezes seis, ainda há muita tabuada pela frente. Eu, que sempre fui uma nostálgica debruçada sobre o passado, chego aos 36 a pensar nos próximos 36 anos. Oxalá cheguemos a esse futuro. Oxalá a minha tabuada ainda não vá a meio. Gostava que me restasse mais tempo com este menino, pé descalço, do que o tempo que vivi sem ele.
quarta-feira, 1 de agosto de 2018
A experiência física da leitura
Quando gosta de um livro, agarra nele de qualquer maneira e abana-o. Depois grita-lhe aos ouvidos e bate-lhe. Dá-lhe umas belas chapadas na capa e no traseiro. Só então abre o livro em qualquer página e fecha-o logo a seguir. Repete o movimento vezes sem conta. Abre e fecha. Abre e fecha. Abre e fecha. Por vezes detém-se numa passagem e amachuca a folha, dobra-a, rasga-a. Brinca com o pedaço de papel, mete-o na boca. Depois atira o livro para o lado e agarra-o outra vez. Roda-o de um lado para o outro com as duas mãos e, quando o apanha a jeito, morde-lhe a lombada com grande convicção. Pimba, bem feito. Às vezes aleija-se, coitado. Alguns livros são duros de roer.
A leitura, para o meu filho, é uma experiência física e não uma experiência intelectual.
À noite, quando me deito com o meu Kindle, sinto-me uma leitora menor. Os livros eletrónicos não são livros a sério. Não têm cheiro. Não têm sabor. Estou para ali largada a ler os diálogos epifânicos da Rachel Cusk e só me apetece metê-los na boca. Aaah, penso, quem dera morder as lombadas da Rachel Cusk.
Falta-me a experiência física da leitura. Não sinto o tato dos livros. Em contrapartida, posso consultar o dicionário num clique e procurar passagens específicas. Ainda assim, a minha boca sofre. Chora por mais.
Ontem à noite lambi o Kindle, mas não gostei da experiência. O Kindle é o fast food dos livros. Sabe a plástico.
Por causa do meu filho, ando aqui cheia de ganas de devorar livros. Não consigo ignorar este desejo.
Hoje à noite vou atacar as estantes de cima.
A leitura, para o meu filho, é uma experiência física e não uma experiência intelectual.
À noite, quando me deito com o meu Kindle, sinto-me uma leitora menor. Os livros eletrónicos não são livros a sério. Não têm cheiro. Não têm sabor. Estou para ali largada a ler os diálogos epifânicos da Rachel Cusk e só me apetece metê-los na boca. Aaah, penso, quem dera morder as lombadas da Rachel Cusk.
Falta-me a experiência física da leitura. Não sinto o tato dos livros. Em contrapartida, posso consultar o dicionário num clique e procurar passagens específicas. Ainda assim, a minha boca sofre. Chora por mais.
Ontem à noite lambi o Kindle, mas não gostei da experiência. O Kindle é o fast food dos livros. Sabe a plástico.
Por causa do meu filho, ando aqui cheia de ganas de devorar livros. Não consigo ignorar este desejo.
Hoje à noite vou atacar as estantes de cima.
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