As pessoas urbanas andam de metro. Algumas vêm sentadas e outras vêm de pé.
Entre as pessoas que vêm de pé, umas vão encostadas à porta, outras agarradas ao varão, no centro da carruagem. As pessoas mais urbanas ouvem música, outras leem um livro. As pessoas ainda mais urbanas fazem as duas coisas ao mesmo tempo: ouvem e leem, leem e ouvem. As pessoas mais ou menos urbanas não fazem nada disto, olham no vazio; os olhos abertos e desfocados.
Um homem lê um jornal e está visivelmente zangado com qualquer coisa que poderá não ter nada que ver com o jornal. Coça a testa, suspira.
Uma senhora traz um chapéu na cabeça que é quase uma cartola, está absolutamente ridícula.
Uma mulher de cabelo muito comprido segura as duas alças da sua malinha elegante com as suas duas mãos elegantes. A mala cintila e os lábios da mulher também.
De repente, o metro pára, mas não numa estação. Fica parado no meio do nada, entre uma estação e outra, no escuro.
As pessoas urbanas olham para o vidro do lado direito e para o vidro do lado esquerdo, mas só se vêem a si próprias, porque não há luz do lado de lá, só há luz dentro do metro.
As pessoas urbanas ficam a ver o seu próprio reflexo e depois entreolham-se através do espelho. Os olhos das pessoas urbanas olham para o reflexo de outros olhos. São muitos pares de olhos que dizem uns aos outros:
"Eu estou a ver-te a ver-me a ver-te a ver-me."
Uma voz off anuncia em francês que o metro partirá assim que possível. Merci de votre compréhension. A voz off repete a mesma informação em neerlandês e depois em inglês.
Ouvem-se os primeiros suspiros aqui, ali e acolá, uf, buf, pffff, mas ninguém diz nada, ninguém refila, ninguém reclama. As pessoas urbanas são civilizadas e pacientes.
A senhora do chapéu ridículo aperta um pouco mais o varão com a sua luva de cabedal preto. A luva faz um som de cabedal, chuiiiic. O rapaz que vem encostado à porta enterra as mãos ainda mais nos bolsos do casaco e roda as pontas dos pés para dentro. Calça uns All Stars verdes e um deles vem desapertado.
As pessoas estão muito caladas e respiram menos, é preciso poupar oxigénio.
O homem do jornal ajeita os óculos e sacode o jornal que, apercebendo-se de qualquer coisa, endireita as folhas.
A mulher dos cabelos muito compridos tosse duas vezes para a sua mão elegante, cof, cof.
Um moço despenteado a rigor cerra os dentes várias vezes seguidas. As pessoas urbanas percebem que o rapaz cerra os dentes, porque os maxilares do moço mexem-se.
Uma senhora asiática que lê um livro abana a cabeça sem tirar os olhos do seu livro. Talvez não tenha gostado da passagem que acaba de ler.
Um homem gordo com ar de escocês que produz o seu próprio whisky olha para o teto, parece concentrado em alguma coisa.
A senhora do chapéu ridículo lança um olhar reprovador à rapariga magra, que olha explicitamente para o seu próprio reflexo. Vários passageiros ficam a observar a rapariga magra, que não observa mais ninguém, só o seu reflexo no vidro. A rapariga magra decide refazer o seu penteado urban casual, o que implica tirar pelos menos seis ganchos da cabeça e voltar a colocá-los na cabeça. O penteado da rapariga fica exatamente igual, mas a rapariga está contente com o resultado.
A primeira pessoa a olhar para o relógio é a mulher dos cabelos muito compridos. Mas há pelo menos quatro pessoas a olhar para o telemóvel e essas não precisam de consultar o relógio para saberem as horas.
Um homem abana a perna por baixo de uma mochila grande que, devido à trepidação, também estremece. A mochila e a perna fazem barulho, tecido contra tecido, zuique, zuique, zuique, zuique.
Ainda só passaram três minutos, talvez quatro.
As pessoas urbanas sabem perfeitamente que poderão ficar ali fechadas uns quinze minutos ou até meia hora ou mesmo uma hora seguida ou mais ainda. Tudo pode acontecer dentro de um túnel escuro. As pessoas urbanas estão preparadas para isso. Olham para o vidro. Algumas pessoas hesitam, parecem estar com receio.
A verdade é que não sabem bem onde estão nem qual das estações fica mais perto da sua posição atual: se a anterior, se a seguinte. Poderá ser necessário andar a pé pelo túnel, na escuridão. Como é óbvio, não será necessário andar a pé pelo túnel, na escuridão. Haverá, pelo menos, uma ou outra lanterna.
Para passarem o tempo, as pessoas urbanas pensam nas suas vidas ou então na distância entre a localização do veículo debaixo de terra e a estação seguinte. Também mexem em coisas: na carteira, no telemóvel, na agenda.
Um homem careca estala os dedos das mãos, um por um, claque, claque, claque. E nesse momento, como que por milagre, o metro soluça e retoma a marcha. Primeiro avança muito devagarinho, mas a seguir já vai lançado como habitualmente. As pessoas urbanas suspiram de alívio, descomprimem devagar, sorriem.
O metro pára na estação seguinte. Umas pessoas entram, outras saem.
Entretanto, o senhor da mochila grande mete conversa com a mulher dos cabelos muito compridos. A mulher ri-se e responde. Ele diz outra coisa e ela responde. A mulher do chapéu ridículo lança um olhar reprovador ao senhor da mochila e à mulher dos cabelos muito compridos. As pessoas urbanas não devem falar umas com as outras.
Uma senhora pequenina atende o telemóvel e diz uma série de coisas muito rápido numa língua não identificada.
A vida volta progressivamente ao normal. Urban casual.
No final do dia, nenhuma das pessoas urbanas se lembrará dos minutos que passou no túnel, no meio do nada, na escuridão.
Ainda bem!
É melhor não pensar no escuro, na falta de luz ao fundo do túnel.
Sensação estranha, aquela, a de estar enfiada num buraco rodeada de estranhos. Zuique, zuique, tecido contra tecido.
As pessoas urbanas não entram em pânico.
Não é que não tenham vontade.
É mesmo só porque parece mal.