Uma espreguiçadela
prolongada no espaço e no tempo. Onze e meia da manhã. O sol através das cortinas. Vários livros
à cabeceira. Um, dois, três. Muito longe das mãos. Lá fora tudo fechado. As lojas, os bancos, os supermercados. Meia vontade de fome. Cozinha com sol nas pontas dos pés. Uma
revista qualquer. Não
sei quê do ego. A obsessão pelo sentido das coisas, pelo
terceiro olho, bladiblá. Um bocejo. Pequeno-almoço
na varanda. Ovos mexidos, torradas, café com leite. O eco das torradas nas
traseiras. O eco das vozes. O nosso ego na varanda.
O prédio da frente, sem
flores nos parapeitos. Um prédio feio quase bonito.
A máquina da roupa contra o silêncio. Cinco quilos de roupa interior. Cuecas e meias.
Meia vontade de caneta e papel. Um texto de domingo em pantufas.
Sem verbos sequer.
E
um livro vazio no sofá.
Ego sum.
segunda-feira, 25 de agosto de 2014
sexta-feira, 22 de agosto de 2014
Cores quentes
Não, não está sol, mas hoje é sexta-feira e estou rodeada de cores quentes. Por exemplo, o meu iPod é cor de laranja e os guindastes na rua também. Hoje não vi nenhum, mas sei que os elétricos são amarelos. E este autocarro tem uma risca cor de laranja em baixo. Aquelas barreiras de proteção são amarelas. As bananas da mercearia também. Aquele guarda-chuva ali à frente também. E os telhados desta rua são laranjas ou então vermelhos. O interior da minha carteira nova também é vermelho e o meu cartão multibanco é laranja. E hoje estou com uma bandolete cor de laranja que me aperta a cabeça e trago uma saia às bolinhas amarelas e o meu bálsamo para os lábios tem sabor a laranja, o meu creme das mãos cheira a limão e em casa tenho uma caneta fluorescente amarela, um lápis HB vermelho e um caderno cor de laranja. Por isso é verão na mesma. É verão quando eu quiser.
Chove praí que eu gosto.
É sexta-feira.
Chove praí que eu gosto.
É sexta-feira.
Um céu estrelado
Da esquina do
corredor emerge um ser humano do sexo masculino que vem finalmente assentar a poeira cósmica dos dias. Leva as mãos atadas a uma pasta azul que ostenta as estrelinhas da
União Europeia, mas os meus olhos miópes e imaginativos não veem nada disso. Os meus olhos veem um homem profundo que traz ao peito um
céu estrelado. Um homem com um céu por dentro, que afinal não veio assentar poeira cósmica nenhuma. É um homem como outros, a resvalar nos corredores sem metafísica nem transcedência. Tem um metro e oitenta, mais coisa menos coisa, e o sexo masculino possivelmente entediado. Adivinho olhinhos igualmente míopes, sem grandes voos, já que passam os dias trancados
num edifício aos quadradinhos com vista para outro edifício aos quadradinhos,
ambos pertencentes à União Europeia.
Ora, isto permite-nos concluir que, a bloquear a vista dos eurocratas, está precisamente o céu estrelado da burocracia.
Ora, isto permite-nos concluir que, a bloquear a vista dos eurocratas, está precisamente o céu estrelado da burocracia.
quinta-feira, 21 de agosto de 2014
A escrita de A a Z
Ana
Banana Cigana
Declaradamente Em Furor
Gatafunhava Histórias Improvisadas
Jocosamente Kafkianas
Logrando Manufaturar
Narigudas Orações Prosaicas
Quando Resolveu Soletrar
Terminantemente
Um Verdadeiramente Wonderful
Xixi (Yááá!)
Ziguezagueante
Declaradamente Em Furor
Gatafunhava Histórias Improvisadas
Jocosamente Kafkianas
Logrando Manufaturar
Narigudas Orações Prosaicas
Quando Resolveu Soletrar
Terminantemente
Um Verdadeiramente Wonderful
Xixi (Yááá!)
Ziguezagueante
terça-feira, 19 de agosto de 2014
Sapatos, pés e calcanhares
As sapatarias irritam-me.
É preciso falar com a senhora da loja, pedir aquela bota naquele número e ficar
à espera da resposta e depois da caixa, que nunca mais chega, que se calhar nem vai chegar. Olhe, só tenho assim. Ou então: Há, mas são verdes.
Cheira logo a esturro e não é dos sapatos, porque os da loja são novos.
E se quero comprar botas, compro sabrinas. Se quero em preto, só há em castanho. Se estão apertados, não há maior. Paciência.
Os meus pés transpiram de angústia.
E nunca é um bom momento para experimentar sapatos. Tenho a meia rota ou as unhas feias ou os sapatos gastos ou as pernas tortas. Se encontro o que procuro, não têm o meu número. Se têm o meu número, ficam largos. Se quero o número abaixo, não há. Se há, não me servem.
Às vezes compro na mesma. Que se lixe, pode ser que alarguem. Se alargam, nunca os uso. Se não alargam, ficam para lá. Se me servem, não gosto deles. Se gosto deles, fico indecisa.
Se são confortáveis, são feios. Se são bonitos, são caros. Caneco.
Às vezes compro na mesma. Tenho pés sofisticados.
Se compro em camurça, alguém me pisa. Se compro sandálias, começa a chover. Se estou satisfeita, parte-se o salto. That's it. Estou calejada.
Talvez valesse a pena andarmos para aí descalços. Ganharíamos mais calo para a vida. E desistíamos daquela ideia de ter pés macios e hidratados. Que parvoíce.
Os meus pés servem para andar e dar pontapés. Não servem para ser bonitos nem elegantes. São o nível mais baixinho de todos. São reles e malcheirosos.
Não me chegam aos calcanhares.
Cheira logo a esturro e não é dos sapatos, porque os da loja são novos.
E se quero comprar botas, compro sabrinas. Se quero em preto, só há em castanho. Se estão apertados, não há maior. Paciência.
Os meus pés transpiram de angústia.
E nunca é um bom momento para experimentar sapatos. Tenho a meia rota ou as unhas feias ou os sapatos gastos ou as pernas tortas. Se encontro o que procuro, não têm o meu número. Se têm o meu número, ficam largos. Se quero o número abaixo, não há. Se há, não me servem.
Às vezes compro na mesma. Que se lixe, pode ser que alarguem. Se alargam, nunca os uso. Se não alargam, ficam para lá. Se me servem, não gosto deles. Se gosto deles, fico indecisa.
Se são confortáveis, são feios. Se são bonitos, são caros. Caneco.
Às vezes compro na mesma. Tenho pés sofisticados.
Se compro em camurça, alguém me pisa. Se compro sandálias, começa a chover. Se estou satisfeita, parte-se o salto. That's it. Estou calejada.
Talvez valesse a pena andarmos para aí descalços. Ganharíamos mais calo para a vida. E desistíamos daquela ideia de ter pés macios e hidratados. Que parvoíce.
Os meus pés servem para andar e dar pontapés. Não servem para ser bonitos nem elegantes. São o nível mais baixinho de todos. São reles e malcheirosos.
Não me chegam aos calcanhares.
segunda-feira, 18 de agosto de 2014
Dois quilos de literatura da pesada
A senhora disse que eu tinha peso a mais.
De início indignei-me (Granda patega!), mas depois dignei-me.
A senhora referia-se à mala de viagem, claro, claro, claro.
Tirei três livros da mala e enfiei-os no saco.
Foi suficiente: os três livros, juntinhos, pesavam dois quilos. (Ganhei!)
A senhora desejou-me boa viagem e eu encolhi a barriga.
Durante o voo, para passar o tempo e o espaço, pensei nos três livros.
Eram literatura da pesada.
E, no entanto, quem olhasse para eles, jamais diria.
Eram textos desocupados. Pareciam três pedaços de prosa inócua.
Um falava sobre o vazio, outro sobre a desumanização e outro sobre ninguém.
Sempre tive esta atração pelo vácuo.
Sou oca e inconsistente.
Pareço uma aeronave a deslizar como se fosse levezinha.
Tenho a cabeça no ar.
(Literalmente no ar.)
Olho pela janela.
As casinhas lá em baixo. Tão banais e desabitadas.
Está a chover em Bruxelas.
São gotas mirradas, mas fazem mossa.
Não há nada mais pesado do que o vazio.
De início indignei-me (Granda patega!), mas depois dignei-me.
A senhora referia-se à mala de viagem, claro, claro, claro.
Tirei três livros da mala e enfiei-os no saco.
Foi suficiente: os três livros, juntinhos, pesavam dois quilos. (Ganhei!)
A senhora desejou-me boa viagem e eu encolhi a barriga.
Durante o voo, para passar o tempo e o espaço, pensei nos três livros.
Eram literatura da pesada.
E, no entanto, quem olhasse para eles, jamais diria.
Eram textos desocupados. Pareciam três pedaços de prosa inócua.
Um falava sobre o vazio, outro sobre a desumanização e outro sobre ninguém.
Sempre tive esta atração pelo vácuo.
Sou oca e inconsistente.
Pareço uma aeronave a deslizar como se fosse levezinha.
Tenho a cabeça no ar.
(Literalmente no ar.)
Olho pela janela.
As casinhas lá em baixo. Tão banais e desabitadas.
Está a chover em Bruxelas.
São gotas mirradas, mas fazem mossa.
Não há nada mais pesado do que o vazio.
terça-feira, 12 de agosto de 2014
Julie Delporte
Descobri a Julie Delporte. Os lápis de cor da Julie Delporte, o gato da Julie Delporte, o apartamento, o ex-namorado, as angústias da Julie Delporte. Ando a atrasar a leitura para que o diário não acabe. Este diário é sobre mim.
A Julie Delporte abre as páginas da sua vida ao mundo.
Ainda bem.
Journal é um livro subtil e impetuoso.
Não há nada como escrever sobre a nossa verdade. Com as nossas palavras. O nosso pulso. Os nossos lápis.
A Julie Delporte tem os ovários atestados de testosterona, mas disfarça bem. Por momentos, até parece frágil.
Tenho saudades dos meus lápis de cor.
Vou desenhar as letras como a Julie Delporte.
Ainda bem.
Journal é um livro subtil e impetuoso.
Não há nada como escrever sobre a nossa verdade. Com as nossas palavras. O nosso pulso. Os nossos lápis.
A Julie Delporte tem os ovários atestados de testosterona, mas disfarça bem. Por momentos, até parece frágil.
Tenho saudades dos meus lápis de cor.
Vou desenhar as letras como a Julie Delporte.
sexta-feira, 8 de agosto de 2014
Um oito deitado de bruços
Ao oitavo dia do oitavo mês chegou uma criança que era um oito prolongado. Um oito deitado de bruços. À espera da eternidade.
Era o "símbolo do infinito, um oito preguiçoso".
Era o "símbolo do infinito, um oito preguiçoso".
(citação e imagem do livro "O pintor debaixo do lava-loiças" de Afonso Cruz)
terça-feira, 5 de agosto de 2014
A minha mala de viagem
A minha mala de viagem
não gosta de viajar, mas viaja na mesma. É mole e quadradona. Tem quatro
rodinhas e pelo macio. Para onde eu vou, ela roda também. Às vezes rosna. Leva
um tabefe.
A minha mala de viagem é malandra. Às vezes muda as minhas coisas de sítio e ri-se de mim no escuro. Tira de um bolso e põe no outro. Eu ralho, ela ri-se.
A minha mala de viagem gosta de andar no escorrega das malas. Quando aterra no tapete, dá um grito e bate palmas. Eu tenho vergonha, ela não.
A minha mala de viagem veio com um livro de instruções, tem uma personalidade complexa.
A minha mala de viagem adormece no comboio. Fica com um fio de baba pendurado no fecho. Quando acorda, desliza na direção certa e chega sempre ao destino.
A minha mala de viagem assobia nas filas e nas escadas rolantes. Nunca apressa as rodinhas. Tem tempo para tudo. E espaço para tudo. É gorda e tem as costas largas, nunca se queixa.
A minha mala de viagem anda comigo ao colo. Engole os sapos todos e também os meus sapatos. Às vezes não traz as minhas cuecas ou a escova de dentes. Ela ri-se. Eu não.
A minha mala de viagem anda de lado ou então às voltinhas. Vai sempre à minha frente e puxa por mim.
Eu sigo-a, porque sou mole e quadradona.
Vou para onde me levam.
A minha mala de viagem é malandra. Às vezes muda as minhas coisas de sítio e ri-se de mim no escuro. Tira de um bolso e põe no outro. Eu ralho, ela ri-se.
A minha mala de viagem gosta de andar no escorrega das malas. Quando aterra no tapete, dá um grito e bate palmas. Eu tenho vergonha, ela não.
A minha mala de viagem veio com um livro de instruções, tem uma personalidade complexa.
A minha mala de viagem adormece no comboio. Fica com um fio de baba pendurado no fecho. Quando acorda, desliza na direção certa e chega sempre ao destino.
A minha mala de viagem assobia nas filas e nas escadas rolantes. Nunca apressa as rodinhas. Tem tempo para tudo. E espaço para tudo. É gorda e tem as costas largas, nunca se queixa.
A minha mala de viagem anda comigo ao colo. Engole os sapos todos e também os meus sapatos. Às vezes não traz as minhas cuecas ou a escova de dentes. Ela ri-se. Eu não.
A minha mala de viagem anda de lado ou então às voltinhas. Vai sempre à minha frente e puxa por mim.
Eu sigo-a, porque sou mole e quadradona.
Vou para onde me levam.
sábado, 2 de agosto de 2014
Supergigante na Visão
O Supergigante é um dos "30 livros solares" selecionados por Sílvia Souto Cunha na Visão desta semana.
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