quarta-feira, 30 de abril de 2008

Diálogo sobre o ser - Parte VI

- E se não souberem?
- Se não souberem, podem perder-se.
- Perder-se?
- Claro! Se as pessoas não souberem de onde vêm nem para onde vão, perdem-se.
- Mas as pessoas não se perdem.
- Como não?
- Não se perdem, pronto.
- O Hansel e a Gretel perderam-se.
- Pois foi... Então e depois?
- As pessoas não podem andar perdidas.
- E que vais tu fazer quanto a isso?
- Vou ser bibliotecária.
- ...
- Bibliotecária de passados!
- E o que faz uma bibliotecária de passados?
- Biblioteca os passados das pessoas.
- Biblioteca?
- Sim, biblioteca.
- E como vais bibliotecar os passados das pessoas?
- Da mesma maneira que outros biblitecários bibliotecam outras coisas.
- Eu não sei como é que os bibliotecários bibliotecam.
- Não sabes?
- Não.
- Ora bem: primeiro vou escrever o nome da pessoa na lombada e depois arquivo o seu passado no meio dos outros. Vou ordená-los todos por ordem alfabética.
- E depois?
- Depois ponho tudo em estantes. Assim é mais fácil para consultar.
- Dá-me um exemplo.
- Um exemplo?
- Sim, um exemplo. Imaginemos que eu ando perdida. Que hei-de fazer?
- Ir à minha biblioteca.
- Ok. Então eu digo: "Olá, boa tarde! Ando perdida!".
- E eu pergunto: "Como se chama?"
- "Maria do Carmo Guerreiro".
- "Muito bem!". E vou à estante da letra "G" procurar o teu nome. Quando encontrar, pego no teu passado.
- E depois?
- Depois eu digo: "Aqui está o seu passado".
- "Muito obrigada!"
- "De nada! Leia bem o seu passado. Se tiver dúvidas, pergunte."
- O passado é um livro?
- Claro! Um passado é muito longo.
- Certo. E quem é que vai escrever esses enormes livros do passado?
- Eu.
- Vais escrever o passado de todas as pessoas?
- Sim.
- Então não vais ser bibliotecária.
- Não?
- Não. Vais escrever mais do que bibliotecar.
- Tens razão! Então que nome tem esta profissão?
- Escritora, provavelmente!
- Não, escritora não!
- Porquê?
- Porque eu escrevo passados. Não escrevo histórias.
- Para mim, és escritora na mesma!
- Não sou, não.
- Então és o quê?
- Não sei... Quanto muito, copista.

(continua)

terça-feira, 29 de abril de 2008

Diálogo sobre o ser - Parte V

- Não te preocupes, filha. Nós vamos sempre com ela.
- Mas agora estamos paradas.
- Pois, mas a vida não caminha mesmo.
- Não?!
- Não. Caminha no sentido figurativo.
- Figurativo?
- Sim.
- E nós também?
- Também! Mas o que interessa saber é que a vida caminha sempre para o futuro. E nós vamos sempre atrás dela.
- Está bem.
- Logo, tens de arranjar uma profissão para o futuro.
- Está bem.
- E não para o passado.
- Ok. Já arranjei.
- Já?
- Já.
- Então qual é?
- Bibliotecária.
- Mas isso é outra profissão do passado.
- Não é, não. Esta é do futuro.
- Do futuro?
- Sim, do futuro. Vou ser uma bibliotecária do passado.
- Então, se é do passado, como é que é uma profissão do futuro?
- É do futuro exactamente por ser do passado.
- Pronto. Mas tens de te explicar melhor.
- Se a vida caminha para o futuro e nós vamos sempre com ela, o passado fica para trás.
- Exactamente.
- O futuro vem à frente e o passado atrás.
- Certíssimo.
- Logo, as pessoas, se estiverem sempre a olhar para a frente, não sabem o que ficou para trás.
- Sabem mais ou menos, porque já lá passaram.
- Mas não sabem exactamente.
- Não faz mal, não é preciso saber tudo ao pormenor.
- Não?!
- Não.
- E se depois quiserem saber, como fazem?
- Não fazem.
- Isso não faz sentido.
- Porquê?
- Porque é preciso saber.
- Saber o quê?
- As pessoas precisam de saber de onde vieram.
- Para quê, filha?
- Para saberem o resto.
- O resto?
- Sim, o resto. O caminho. A vida.
- A vida?
- Sim, a vida.
- A vida em que sentido, filha?
- No sentido figurativo.
- ...
- No sentido sempre em frente.
- As pessoas precisam de saber o sentido?
- Precisam de saber para onde vão.

(continua)

sexta-feira, 25 de abril de 2008

Diálogo sobre o ser - Parte IV

- Não, filha, nenhuma máquina consegue ir ao passado.
- Não?
- Não!
- Então vou para o futuro.
- Também não há máquinas que viajem para o futuro.
- Nesse caso, fico à espera.
- De quê?
- Do futuro.
- Está bem! Mas no futuro também não há copistas.
- Como sabes?
- Sei, pronto.
- Então já lá estiveste!
- Não. Mas sei que não haverá copistas.
- Porquê?
- Porque nessa altura tudo será feito por máquinas.
- Tudo?
- Tudo, tudo, tudo!
- Incluindo viajar para o passado?
- Isso não.
- Porquê?
- Porque ainda ninguém inventou a máquina de viajar no tempo.
- Agora ainda não. Mas se calhar no futuro já inventaram.
- Filha, vamos lá ver uma coisa: tu não podes viver em função do passado.
- Não?
- Não. A vida caminha para o futuro e não para o passado.
- A vida caminha?
- Sim.
- Anda a pé?
- Sim.
- E porque não vamos com ela?

(continua)

quinta-feira, 24 de abril de 2008

Diálogo sobre o ser - Parte III

- Filha, não podes ser copista.
- Não posso?
- Não.
- Porquê?
- Porque copista é uma profissão doutro mundo. É uma coisa da Idade Média, praí.
- Então pronto.
- Pronto, o quê?
- Vou para lá.
- Para onde?
- Prá Idade Média.
- A Idade Média não é um sítio.
- Não?!
- Não. É uma parte da História.
- Como os adultos?
- Não, filha. Uma época mesmo. Que aconteceu no passado, há muito tempo. Só nessa altura é que havia copistas.
- Então pronto.
- Pronto, o quê?
- Vou para lá.
- Ó filha, mas tu não podes ir para o passado.
- Não?!
- Não.
- Porquê?
- Porque não podes viajar assim no tempo.
- Mas eu não ia a pé.
- Então ias como?
- De avião.

(continua)

quarta-feira, 23 de abril de 2008

Diálogo sobre o ser - Parte II

- Queres que a mãe te ofereça uma máquina de escrever?
- Não.
- Então como vais escrever os teus livros?
- Eu não vou escrever, vou copiar.
- Pronto. Então como vais copiar os livros?
- À mão.
- À mão?
- Sim. À mão.
- Mas filha, ninguém te vai dar dinheiro para copiares livros à mão.
- Não faz mal.
- Faz, faz. Se ninguém te dá dinheiro para seres copista, quer dizer que isso não é uma profissão.
- Para mim é.
- Mas para os outros não. Tens de arranjar outra.
- …
- A mãe ensina-te a escrever no computador, queres?
- Não. Quero escrever à mão.
- Não gostas de máquinas, é isso?
- Gosto. Eu gosto de máquinas.
- Ai gostas?
- Gosto.
- Então o que queres ser quando fores grande?
- Copista.

(continua)

terça-feira, 22 de abril de 2008

Diálogo sobre o ser - Parte I

- E já sabes o que queres ser quando fores grande?
- Sei!
- Então, o que queres ser?
- Copista.
- Como?
- Copista.
- Porquê, querida?
- Porque gosto de escrever.
- Queres ser escritora, é isso?
- Não. Copista.
- Copista de quê?
- De livros.
- Queres escrever livros, não é?
- Não. Quero copiá-los.
- Copiá-los?
- Sim, copiá-los.
- Para quê, filha?
- Para saber os livros.
- Para saber?!
- Sim.
- Para sabê-los de cor?
- Não, para saber mesmo.

(continua)

quarta-feira, 16 de abril de 2008

Um homem caminha no parque.

Não passeia pelo parque. Caminha. Senão vejamos:
É quase baixo e anda cabisbaixo a contar as pedras do chão. Vem aliás zangado com as pedras do chão. A bater nas pedras do chão. (Indignamo-nos.)
Traz também as mãos presas nos bolsos.
(Imaginamo-las pesadas como as pedras do chão.)
O homem traz portanto pedras nos bolsos.
Além disso, o homem não segue o trilho que o jardineiro tão cuidadosamente esculpiu para os homens que passeiam. Em vez disso, vai em frente (sempre em frente), atrás de uma recta que só ele vê.
Temos a certeza que o homem vê essa recta, porque o seu trajecto é impecavelmente alinhado, alheado, alienado. Vai sempre a direito pela relva, pisa o que tiver a pisar (incluindo eventuais pedaços de merda que julgamos ver daqui). Dá a sensação que, havendo por aqui um lago, o homem o atravessaria sem hesitar. Seguiria em frente como um touro e caminharia inacreditavelmente sobre a água, ainda zangado com as pedras do chão e dos bolsos, ignorando o milagre.
(Infelizmente, não há por aqui um lago e o homem segue mortal como os outros.)
O homem caminha. Não passeia.
Se passeasse, traria a cabeça içada, o nariz elevado, o olhar mais ainda. Tocaria naturalmente com o pensamento nas nuvens. Seria um homem um pouco mais alto, um pouco mais livre, um pouco mais pássaro. E, como já se disse, o homem que caminha é baixo, cabisbaixo.
(De pássaro só o nariz, que adivinhamos aquilino, como os bicos das aves de rapina.)
E subitamente apercebemo-nos de que este homem tem qualquer coisa de árvore. Repetimos: de árvore. É uma semelhança curiosa, tendo em conta que este homem caminha sempre em frente e as árvores só andam para dentro.
(Da terra, claro.)
Observamo-lo com mais atenção e reparamos que este homem e as árvores têm em comum a curvatura do tronco. Um é vertebrado, o outro não, já se sabe. Mas ambos dobram a coluna para a frente, por causa do peso da vida, muito próxima do chão.
Formulemos uma hipótese: este homem é uma árvore andante.
E daí talvez não. Somos nós que andamos e confundimos o movimento.
(Ilusão de óptica.)
Concluímos: O homem anda para dentro. Sempre em frente, para dentro da terra.
Daí as pedras do chão.
E as dos bolsos.

sexta-feira, 11 de abril de 2008

Ítaca

Falemos. Do mar.
Para que. O horizonte exista.
O tal mar.
Chamado.
Distância.
Para que. O longe prossiga.
E o amor.
A dor. A cor.
O pôr.
Do sol.
Persista.
À flor.
Da pele.
Falemos. Do mar.
Chamado.
Distância.
Para que. O regresso insista.
A vida se dispa.
E a vista chegue.
Ao final.
Dos dedos.
Do final.
Dos dias.

terça-feira, 8 de abril de 2008

Retrato de homem ao sábado de manhã

Para o meu pai

Não se levanta cedo nem tarde. Levanta-se, pronto.
Toma banho, apesar de o dia ainda ser novo.
Penteia o cabelo e veste camisa. Não é necessário, mas veste.
Está para sair e pergunta: "Trago pão?". Respondem-lhe: "Traz".
O homem vai à Sacolinha tomar o pequeno-almoço. Sempre à Sacolinha. E das duas, uma: ou vai a pé até à do Edifício Sol, ou vai de carro à do Bairro do Rosário. Por vezes, vai também àquela outra, não muito longe da praça de touros.
Fica ao balcão. Sempre ao balcão, embora não lhe falte tempo nem vontade.
Pede: Um quarto de vigor, como se não houvesse outro leite nem outra medida. Um quarto de vigor. Come uma merenda ou uma empada, qualquer coisa com sal dentro, que combine com o seu ar de marinheiro fora d'água.
Pede: "Dois mafrinhas!".
Não se engana no tipo de pão nem na quantidade. Estes variam, mas ele não.
Não se engana.
Bebe um café e paga, antes mesmo de saber quanto deve.
Não faz nada disto com pressa.
Faz, apenas.
Vai à tabacaria do Cidadela comprar o Expresso. Noutros tempos levaria também Português Suave, mas agora não. Só leva o Expresso. A senhora do quiosque tem ar de cozinheira, de governanta, de senhora que vive prós outros. Pergunta invariavelmente pela família.
Está tudo bem, obrigado!
O homem segue contente por lhe perguntarem pela família, por a senhora ser simpática, por a vida ser boa e branda aos sábados de manhã. Diz um Bom dia! satisfeito, quando chega a casa.
Tem dois sacos na mão. Num a leitura, no outro o pão.
Para alimentar a família.
É um homem fascinante.
Não faz por ser.
E, no entanto, é.

segunda-feira, 7 de abril de 2008

Mulher à janela

Queria estar em casa e, quando estava, queria estar noutro lugar. Escolhia por isso a janela da sala para os seus serões e ficava horas a ver a chuva, bem como as pessoas debaixo dela.
A chuva era fina e transparente. Por vezes, não se via. Uma chuva a fingir que não era.
As pessoas eram pequenas ou grandes. As que vinham da esquina eram pequenas e depois ficavam grandes. As que vinham da outra ponta da janela eram grandes e ficavam pequenas. As primeiras apareciam imprevistas no fundo da rua e subiam muito lentas, como caracóis, até desaparecerem enormes na outra ponta da janela. As segundas apareciam enormes e minguavam a cada passo, até desaparecerem formigas na esquina. Quem subia a rua era pequeno e inchava até ser gente. Quem descia a rua era pessoa, que se tornava depois em quase nada.
A mulher media as pessoas da esquina com o polegar da mão esquerda: alinhava-o com o olho e depois concordava com a designação "polegarezinhos". Achava que as pessoas que vinham da esquina eram duendes. Que só depois se transformavam em pessoas.
Por outro lado, os que vinham da ponta da janela já eram pessoas e depois ficavam cada vez mais pequenos até desaparecerem na esquina com o tamanho exacto de um polegar. Eram agora duendes.
A sua rua dividia os dois mundos e a mulher à janela preferia minguar a crescer. Ou seja, gostava mais de duendes do que de pessoas. Por isso, quando saía de casa, nunca subia a rua: descia sempre. Fosse qual fosse o seu destino, começava o seu trajecto por descer a rua que unia os dois mundos.
Pelos seus cálculos, minguava cinquenta vezes em cada saída, porque dava cinquenta passos até ao dobrar da esquina. A esta altura seria, pois, mil vezes mais pequena do que um polegar. Qualquer dia, serei um só átomo, prometia a si mesma.
Ninguém via a mulher à janela, pois era demasiado pequena para os olhos. Hoje à tardinha, olhou para o seu reflexo na janela e nem mesmo ela se viu.
Era quase igual à chuva:
uma pessoa a fingir que não era.