quinta-feira, 6 de setembro de 2007

Recém-nascer

Para a Nina

A certa altura o feto estava de cabeça para baixo mas não sabia. Sentia-se bem naquela posição, tinha finalmente aprendido a girar dentro do balão de água. Passado muito tempo o feto abriu os olhos e contemplou as suas mãos. Já tinham pequenas rugas e o feto interessou-se pela trajectória complicada daquelas linhas. No céu do ventre as nuvens ficaram sisudas, pintaram-se de um vermelho demasiado escuro e de repente um raio de luz dividiu o céu ao meio trazendo à memória as imagens dos santos em dias de milagre. O feto disse: "Que belo dia para nascer!" e voou ao encontro do céu, onde o esperavam duas mãos mas, em vez de subir, o bebé caiu e essa mudança de perspectiva assustou-o. Gritou: "Quero a minha casa".
Um corte de tesoura e a ligação quebrou-se abruptamente. O recém-nascido chorava de terror, sangrava da barriga, tinha frio, detestava a vida fora de casa. Disseram: "É um menino" como se o bebé pudesse ser outra coisa, por isso o recém-nascido pensou: "O que sou hoje é um mero acaso". Deitaram-no no colo da mãe e ele lembrou-se do balão de água, do colchão macio da placenta. Perguntou-se: "Para quando o regresso?". Mãe e filho olharam-se pela primeira vez. Era um olhar surpreendido, cheio de tempo e de espaço. Ela disse: "Sou a mãe!" e ele reconheceu a voz. Ficou a ouvi-la falar e concluiu: "És a minha casa vista por fora!".