quarta-feira, 5 de setembro de 2007

A casa (III)

A mulher do 2.º direito estava a aspirar a casa. Agachou-se um pouco para enfiar o tubo debaixo da cama, mas o bocal começou a puxar o atacador de um sapato escondido atrás da colcha. A mulher urrou impaciente, deixou cair os ombros, desligou o aspirador com um pontapé e o enrolador automático sorveu a ficha à velocidade com o que o filho mais novo engolia o esparguete. A mulher abriu a janela do quarto, pegou no aspirador à bruta e atirou-o pela janela fora, levando-o primeiro ao alto da cabeça qual king kong de dentes cerrados.
Depois coleccionou outros aparelhos domésticos e atirou-os também pela janela: o ferro de engomar, o microondas, a batedeira, a televisão, a aparelhagem, as colunas de som, o leitor de DVD, o computador portátil, a impressora a lazer do filho mais velho, o telefone sem fios (a propósito de fios, esquecemo-nos de mencionar que a mulher perdera algum tempo a desenrolar cuidadosamente os fios da televisão e da aparelhagem para poder separá-las do armário).
No final a mulher avançou para as cadeiras, os quadros, os cristais decorativos, o banco de camurça, a enorme escultura em madeira de um preto raquítico. Quando a polícia chegou a mulher estava a rasgar lençóis, mas apercebera-se a tempo do carro a estacionar lá fora e correra escadas abaixo, saindo pela porta das traseiras.
Correu durante horas, parou para comer qualquer coisa numa tasca e continuou a correr. De repente estava no Cabo da Roca, desequilibrou-se na ponta da terra, agarrou-se à rocha e desceu pelo desfiladeiro sem medo. Como a terra acabava, a mulher do 2.º direito atirou-se ao mar e nadou disciplinada, braço ante braço, até que um pescador a pescou por engano e a levou para uma ilha, onde atracou de seguida um cargueiro que a levou a bordo até aos Estados Unidos.
Chegados à terra prometida, a mulher continuou a correr, pedia perdão, informações, boleia, dinheiro. Chegou a São Francisco, tirou uma fotografia à ponte vermelha por ser igual à de Lisboa, apanhou um ferry boat para Alcatraz e aí conheceu o neto de um ex-prisioneiro que sabia de cor as histórias do avô e as contou uma a uma durante mil e uma noites em águas pacíficas. Almoçaram juntos em Tóquio e despediram-se para sempre cheios de protocolo em Quioto. A mulher percorreu o Japão a correr e foi feita refém na Coreia do Sul por um terrorista da Coreia do Norte. Devido à inexistência de um intérprete com a combinação linguística coreano-português, a mulher do 2.º direito foi libertada e atada a um lugar executivo do voo que ligava a Coreia do Sul à cidade Londres, onde foi recebida pela família em directo para a televisão. No dia seguinte, chegou a casa acompanhada pelos filhos e encontrou todos os aparelhos no sítio: a televisão, a aparelhagem, o leitor de DVD, o telefone. Calou-se de espanto e fechou-se na cozinha. Talvez o marido tivesse estado todo aquele tempo a arranjar os aparelhos, talvez tivesse comprado tudo de novo com as poucas poupanças, mas a mulher preferia pensar que, na verdade, aquele ataque de nervos nem tinha acontecido, que ela tinha voltado atrás no tempo durante aquela volta ao mundo, que era dona de um poder poderosíssimo. Riu-se sozinha enquanto lavava a loiça e começou a fazer planos para várias viagens à volta do mundo que a levassem até aos seus 20 anos. Num segundo, arrependeu-se de toda a vida. Atirou os pratos ao chão enquanto prometia a si mesma: "Não serei a mulher do 2.º direito" e deitou mãos à obra. Saiu pela porta das traseiras e desta vez foi de carro até ao Cabo da Roca para poupar energias.