segunda-feira, 3 de setembro de 2007

A casa (I)

Tinha pânico de se esquecer das chaves de casa, por isso a senhora do rés-do-chão verificava três vezes se as trazia no bolso antes de sair. Às vezes, não confiando no tacto, tirava-as do casaco para ver com os próprios olhos se o porta-chaves de três guizos trazia as chaves consigo. Tinha o hábito de trancar a porta mesmo quando só ia à padaria do lado. Antes de sair do prédio, apesar dos guizos cantarem a cada passo, metia a mão no bolso e cumprimentava as chaves mais uma vez.
Portanto, naquele Domingo, qual não foi o seu espanto quando, no regresso a casa, tirou do bolso um porta-chaves demasiado leve. O cantar dos três guizos parecia mais pobre, como se alguns membros da banda não estivessem presentes. A senhora examinou o objecto com as mãos e verificou o impossível: o porta-chaves estava vazio, não havia uma única chave pendurada nos três guizos. O mistério era de tal forma misterioso que a senhora nem o questionou. Olhou para o chão, meteu a mão em todos os bolsos, espreitou debaixo do tapete e nada, as chaves tinham realmente desaparecido. Era um Domingo demasiado agradável para os vizinhos estarem em casa e, por ser uma pessoa informada, a senhora achou que os bombeiros não atenderiam o telefone por causa dos incêndios de Verão.
Sem pensar duas vezes, a senhora fez-se à estrada. Era a primeira vez que andava pela rua sem um destino concreto e o coração batia nervoso atrás da pele. Depois, ao dobrar a primeira esquina, o coração entusiasmou-se com tanta rua por explorar, por isso encheu-se de sangue e deu ordens ao corpo. A senhora riu-se satisfeita, estava contente por alguém lhe indicar o caminho. Dentro do bolso, os três guizos marcavam o compasso com o seu cantar. Ao longe, mais pareciam risos de meninos depois de fazerem uma asneira.