quinta-feira, 30 de junho de 2022

A boca que não fala

Um dos minorcas abriu a porta da casa de banho no momento em que eu saía do meu merecido duche. Apontou para o meu corpo nu. Disse “maminhas”. Disse “umbigo”. Disse “pilinha”. 

Perguntei-lhe se tinha certeza em relação à pilinha. Ele olhou melhor e respondeu em tom de pergunta: “Boca?!”

Chocou-me que não conhecesse o termo correto, mas subscrevi rapidamente a sua interpretação e acrescentei que sim, era uma boca, mas não falava. Depois tirei nota desta minha descrição, que me pareceu adequada para os tempos que correm. 

Eis uma boa frase para escrever numa parede ou para bordar num lenço dos namorados: “A vagina é uma boca, mas não fala.”

A propósito de vaginas: um dos meus livros acaba de ser traduzido para inglês. A editora pediu-me com esmero e preocupação para retirar um curtíssimo diálogo em que se fala sobre o período, sobre tampões a incharem dentro da vagina, sobre pensos higiénicos com e sem alas, sobre dedos cheios de sangue, sobre o nojo dos rapazes perante a ideia de uma vagina a sangrar e sobre a vontade incontrolável que sentem, ainda assim, de enfiarem os dedos pela vagina dentro. 

Fiz uma contraproposta, em que mantinha os tampões, os pensos higiénicos, os dedos cheios de sangue, o nojo dos rapazes, mas suprimia o desejo. A editora aceitou e a minha vagina conformou-se em silêncio.

No outro dia comi um hamburguer num restaurante americano. Enquanto mastigava a minha sandes, beberiquei uma coca-cola e ruminei a canção do Sinatra que pairava no ar. Às tantas topei um cartaz atrás da minha mesa e engasguei-me. O cartaz dizia assim: “There is a new yorker in every city”. 



Praguejei em português e não em inglês ou francês, o que diz muito mais sobre mim do que o Sinatra ou a coca-cola que estava a beber.

Fomos a Nova Iorque há uns anos. Como todo o dedicado turista, tiramos fotos à estátua da liberdade, passeamos no Central Park, subimos ao Empire State Building. Vimos muita arte, muito arranha-céu, muito teatro. Tive um ataque de riso num stand up como nunca jamais na minha vida, chorei baba e ranho num musical da Broadway. Mas vimos acima de tudo muita pobreza e miséria, muita gente suja, perdida, louca. Pessoas deitadas no chão, a falarem sozinhas, um homem a defecar no meio do asfalto. Vi dois tipos aos gritos num parque infantil. “You shut the fuck up”, gritava um deles. 

Não conheço mais nada nos Estados Unidos, mas sei muito mais sobre Los Angeles, Las Vegas, Texas e Alasca do que sei sobre as Astúrias, a Bretanha, a Toscânia, os países bálticos, os balcãs, os escandinavos, já para não falar da Ucrânia e da Rússia. 

Algo em mim se revolta com a enorme intromissão deste hamburguer americano na minha existência. Talvez o meu estômago. Talvez o meu coração. Talvez a minha vagina.

Estranho país os Estados Unidos. Todos podem e devem acumular propriedade, dinheiro, fundos, produtos em abundância: granadas, espingardas, cosméticos, drones, ativos, ações, calças de ganga, banha da cobra. Os mais oportunistas poderão crescer à custa dos outros, contratando-os, explorando-os, controlando-os. Os mercados são livres, assim como os preços e a concorrência. O Estado regulamenta o mínimo possível. A bem da economia, do crescimento e da escolha, claro.

Mas no que toca ao corpo de uma mulher já não é bem assim. No que toca ao corpo de uma mulher, já não é de todo assim. 

És dona da tua casa, do teu empreendimento, do teu capital, mas de súbito já não és dona do teu corpo. O corpo de uma mulher, no país das oportunidades, é agora altamente legislável, altamente controverso. O corpo de uma mulher é propriedade pública.

Nos Estados Unidos da América o que deveria ser público é privado. O que deveria ser privado é público. 

Eu não sou nova-iorquina. Vivo em Bruxelas há anos e não sou belga. Saí de Portugal demasiado nova e também já não sou bem portuguesa. Ainda assim, prefiro mil vezes um prego a um hamburguer.

Para que interessam as fronteiras, as bandeiras, as nações? Raios partam o imperialismo americano, o imperialismo russo e todos os demais imperialismos com os seus ideais muito retrógradas de expansão, domínio, conquista e progresso.

Sou europeia, sou carnívora, sou fadista até mais não. Sou mulher. Tenho uma boca calada e outra tagarela.


O que se passou nos Estados Unidos é uma afronta à democracia, à humanidade e à liberdade.

As vaginas não falam, mas sentem. Não há um nova-iorquino em todas as cidades, mas há uma mulher em todos nós.

A luta continua. Ainda temos muito para andar.