terça-feira, 30 de novembro de 2010

Jovens Criadores '10

No outro dia fui tirar sangue. Coisas da medicina do trabalho. Não penso muito sobre isso, faço o que mandam. Urinei logo de manhã para uma caixinha redonda muito engraçada que daria imenso jeito para guardar clipes e vim para o trabalho em jejum. A única diferença entre esse dia e os outros dias foi ter feito xixi para a tal caixinha e não para a sanita. De resto, vou sempre em jejum para o trabalho ou quase sempre. Cheguei ao 9.º andar e entrei na salinha de espera. A salinha de espera é tão pequenina que faz lembrar a caixinha do xixi, mas não é redonda portanto não é nada parecida com a caixinha do xixi. Na sala de espera há lugar para umas cinco pessoas e parece-me que, se todas forem espadaúdas como, aliás, o são as pessoas desta terra, haveriam de roçar os joelhos umas nas outras. Felizmente só cá está uma pessoa e eu sento-me ao seu lado, discreta e caladinha como nos meus melhores dias. Nessa altura, olho para o lado e qual não é o meu espanto quando vejo encostadinho a mim aquele tipo da unidade de tradução inglesa, parecido com o valter hugo mãe. A coincidência desceu sobre mim como uma revelação de Nossa Senhora e eu fiquei muito quietinha a observar o valter hugo mãe: está a ler um livro velho com um ar zangado. É estranho que esteja a ler com um ar zangado. As pessoas não costumam ler com um ar zangado. O valter hugo mãe é especial. Está tão metido consigo que dá vontade de lhe dar uma festinha na cara ou de lhe fazer coceguinhas no queixo. Acorda, palerminha.
A enfermeira interrompe-nos e o valter hugo mãe desaparece para sempre. Observo a caixinha onde me encontro: há cartazes nas paredes anunciando eventos antigos a que eu não fui por falta de paciência para a União Europeia fora do horário de expediente, Deus me perdoe. Aposto que o tipo da unidade de tradução inglesa também não foi a nenhum destes eventos, tem o ar mais desinteressado do mundo e, ainda por cima, lê livros com ar zangado, aposto que não liga nenhuma à União Europeia. Gosto dele, mas não por isso.
A enfermeira chama-me. Deito-me na marquesa bem-disposta e a enfermeira vai sugando o meu sangue enquanto eu conto piadinhas sobre as pessoas que correm à chuva com fatinhos de licra. Rimo-nos as duas das pessoas que correm à chuva com fatinhos de licra, já não sei onde começou esta conversa. No final, a enfermeira oferece-me uma maçã e eu mordo-a. Vou trabalhar muito contente por causa do tipo da unidade de tradução inglesa que é parecido com o valter hugo mãe, uma parvoíce.
Ora, nesse mesmo dia tomei conhecimento de que ganhei os jovens criadores. Não é primeira vez que concorro e nunca levo nenhuma bicicleta. Desta vez não foi assim. Fiquei ainda mais contente. Leio a comunicação até ao fim e fico ainda mais contente, porque o valter hugo mãe fazia parte do júri. O valter hugo mãe de verdade, não este clone foleiro, com ar de pessoa importante que não faz xixi de manhã.
Estas coisas deixam-me assim, sem pinga de sangue.
Sou tão mimalha às vezes.