Dormi 3 horas e depois mais 3 horas, nada mau.
Pelas 7h e pouco, estou com os três na sala. O mais velho bebe biberão ao meu colo. O mais novo está na cadeira de baloiço e brinca com o meu pé direito. De vez em quando morde-me os dedos. (Au!) O do meio bate palmas. Está na cadeirinha alta.
Faço café. Ouço o mais velho dizer ao robô verde: “Eu quero ser grande e pequenino.”
Vou cortar o cabelo ao meio-dia e meia. Andava tudo tão preocupado com os cabelos, que também marquei. Mas na verdade sinto-me bem assim. Desgrenhada. Desbocada. Desgovernada.
A verdade é que quase nunca vou ao cabeleireiro.
Uma vez um amigo manifestou o seu desagrado por eu ter dado um belo corte na trunfa. Olhou para mim, tentou explicar: “É que o teu cabelo fazia parte da tua personalidade”.
Entro no cabeleireiro, desinfeto as mãos, ponho a máscara das cornucópias.
Estou agora em frente ao espelho e acho que as minhas fuças também fazem parte da minha personalidade. Cada vez que ponho a máscara das cornucópias, penso na minha personalidade e acho que não me fica nada mal perder caráter.
Nunca é demais ter menos.
Nunca é demais ter menos.
A estagiária lava-me o cabelo. Os dedos da mocinha a arranhar a minha cabeça e o meu ego, a dedilhar o meu cabelo. Massaja-me as têmporas e a nuca. Há que tempos que ninguém tocava na minha cabeça. Neste momento não sou mãe de ninguém. Sou grande e pequenina.
A cabeleireira está grávida. O bebé nasce daqui a seis semanas, coitada. É um rapaz. Que bom, parabéns. Explica-me que tem muita sorte porque o marido vai poder assistir ao parto. “Antes não podia.” Credo. Agora já pode, mas depois não pode sair. Como assim, não pode sair?
Entra com a mulher e sai com a mulher e com o filho. Não pode sair a meio, nem sequer para ir a casa. A cabeleireira explica melhor: Poder, pode, mas já não o deixam voltar.
Fico a pensar que em quase tudo na vida é assim. Podes sair, mas já não podes voltar.
A cabeleireira pergunta-me. “Você tem imensos filhos, não é?” Eu digo: “Três rapazes.” A pergunta do costume: “E não vai tentar a menina?”
Quando anunciei que os gémeos eram rapazes, um amigo disse-me: “Andas a reforçar a sociedade patriarcal.”
Ri-me bué.
Entro no parque. Está quase vazio. Uma miúda tenta subir o escorrega ao contrário. Corre pelo escorrega acima. Nunca consegue chegar ao topo, mas não desiste. Escorrega até ao chão, dá uns passos atrás para ganhar balanço, atira-se ao escorrega, sobe sobe sobe, mas lá em cima começa a deslizar, cai para a frente e escorrega toda esparramada até cá abaixo. Sobe outra vez. Tem oito ou nove anos. Não vejo nenhum adulto com ela. Olho para a miúda a subir o escorrega ao contrário e penso nesta pandemia, penso na sociedade patriarcal, penso no pedregulho do Sísifo a rolar montanha abaixo, penso naquelas coisas da eternidade e do absurdo, e aceito o castigo.
Começo a trabalhar amanhã. Estou tão gorda, tão farta, tão desorientada.
Os gémeos fazem hoje nove meses. As pessoas dão-me os parabéns. Penso nessa manhã de agosto. O médico entrou na sala à hora marcada. Disse “Bom dia” e cortou-me a barriga. Não foi assim um grande feito.
Sou uma autêntica fraude. A escrever. A traduzir. A amar. A viver. Até a parir. Não dou uma para a caixa.
Felizmente cortei uns centímetros à minha personalidade. Estou ligeiramente mais leve. Existo menos. Durmo menos. Vivo menos. Mas lá vou subindo o escorrega.
Vou rematar este texto com uma frase do meu querido sogro: “Até aqui chegámos nós.”