No outro dia encontrei um amigo na rua. Ele ia para cá, eu ia para lá. Um metro e meio de distância. Então, como vai isso? Eu disse: “Estou tão farta.” E ele disse: “Estou tão bem”. A sério? A sério. Ele disse: “Eu gosto é do silêncio e das ruas desertas, não se vêem carros, não se vê vivalma, uma maravilha”.
Explica-me que as pessoas o cansam, que a vidinha o cansa, marcações, roupa, conversas, reuniões, pessoas, pessoas, pessoas.
Se há coisa que esta epidemia me deu de mão beijada e desinfetada é a constatação cruel de que eu preciso muito mais dos meus amigos do que eles precisam de mim. Sou esta figurinha espaçosa e expansiva, mas faço amizade com egos solitários e confinados. É pena.
Eu cá odeio este silêncio. É um silêncio falso. É um silêncio de abandono e desânimo. É o silêncio das coisas mortas. Não é um silêncio bonito das serras e das florestas. O silêncio da natureza é um silêncio habitado, é um silêncio de rios e pássaros e brisa, e pedras e folhas, e cães e sapos.
Onde há vida, há som. Li isso no outro dia num livro lindo sobre a paisagem. Fiquei a saber que tudo isto é paisagem, eu, esta janela, este prédio, aquele pinheiro gigante, a praceta lá em baixo, a rotunda. Tudo o que vemos e também tudo o que ouvimos.
Às seis da manhã, os pássaros não se calam e eu fico a ouvi-los.
Eu gosto de sons e de vozes. Gosto de chinfrim, de chilreio, de murmúrios. Eu sou toda ouvidos. Eu sou toda garganta.
Ultimamente tenho-me especializado em sirenes e motores. O meu filho mais velho grita: “É a polícia!” E eu corrijo-o: “É uma ambulância.” Ele vai até à janela aos gritos: ti-nó-ni, ti-nó-ni. Eu explico-lhe que o som está a ficar cada vez mais baixo, que a ambulância está muito longe. Ele repete: “Está loooooooonge”. Sem querer, ensinei-o a escutar. Um carro passa, um camião, uma mota. Ele pergunta: “O que é?” e eu encosto a mão ao ouvido. Digo: “Estou a ouvir” e fico a ouvir. O meu filho faz igual: mão no ouvido, ar compenetrado, “Estou a ouvir”. Os dois quietos e calados, a ouvir.
Por esta altura sabemos distinguir os camiões das carrinhas. Conhecemos as diferentes sirenes. Sabemos dizer se estão longe ou perto, se estão a aproximar-se, se vão passar nesta rua.
Às sete da manhã passa o camião do lixo. Ele corre para a janela. Ficamos a ver os homens a empurrar os caixotes. Depois o camião vai-se embora e lá vem novamente o silêncio. Um ou outro carro ao longe. O meu filho a ver a rua. Diz: “Não há ninguém!”. Encostamos a mão ao ouvido. O meu filho: “Não ouve nada”.
Não tenho saudades dos carros, mas tenho muitas saudades da vida. Estou tão farta.
Acabou-se o silêncio. Que bom.
Venha daí a Covid.
“Estou a ouvir.”