terça-feira, 6 de agosto de 2019

Rui Gonçalves

O Rui Gonçalves morreu.
Era um homem muito alto e muito magro. Vivia sozinho num apartamento em Oeiras. Não tinha filhos nem cães nem gatos.
Era amigo dos meus pais e também meu amigo. Ligeiramente louco. Profundamente preconceituoso. Homofóbico. Racista. 
Andava sempre armado. De manhã à noite. Dormia com a pistola debaixo da almofada. Mas não era um homem violento. Era até doce na sua loucura varrida.
Fazia paraquedismo. Não comia queijo. Contava histórias incríveis do Ultramar, mas só as que davam para rir no fim. Nós ríamos sempre no fim.
Durante a minha infância trazia-me prendas a toda a hora. Coisas pequenas e banais, que ele apresentava com grande pompa. Fazia introduções enormes a esses pequenos tesouros. Podiam ser berlindes. Lápis de cor. Borrachas. Pouco importava. Tinham uma história. Eram valiosos. 
Sempre que me dava um desses tesouros, o Rui fazia questão de esclarecer que aquela prenda era uma exceção. Que não ia estar sempre a trazer-me prendas quando nos viesse visitar. Ora essa, comentavam os adultos, claro que não. Os miúdos depois habituam-se, já se sabe. Mas a verdade é que o Rui me trouxe sempre prendas. Sempre sempre sempre.
Uma vez, eu e a minha vizinha Aurora estávamos sentadas no chão da sala a rir às gargalhadas. Não me lembro por que razão nos ríamos, mas sei que nos ríamos muito. O Rui observava-nos em silêncio, com aquela alegria triste dos adultos que perderam a infância. A certa altura virou-se para a minha mãe e disse: “Se há coisa que estas miúdas vão poder dizer é que tiveram uma infância feliz”. E depois virou-se para mim e para a Aurora - que ele tratava por “Orora com O grande” - apontou o dedo e disse: “Nunca se esqueçam que tiveram uma infância feliz”. Eu e a Aurora parámos de rir. Um pedaço da nossa infância talvez tenha chegado ao fim naquele momento. E foi uma infância feliz realmente, graças também ao Rui Gonçalves, que me trazia prendas sempre que ia lá a casa e fazia umas entradas muito cómicas nas minhas festas de aniversário: primeiro chegava a voz dele e depois talvez um braço ou uma perna e só depois ele inteiro.
Conheci-lhe algumas namoradas e também uma esposa, com quem casou duas vezes. Se bem me lembro, ele dizia “esposa”. Não dizia “mulher”. Eu adorava esta história dos noivos que se casaram duas vezes.
O Rui nunca gostou de nenhum dos meus namorados. Tratava-os com frieza e desdém. A semanas de me casar, foi até bastante indelicado com o meu futuro “esposo”. Inquisidor, severo, desagradável. Na altura levei a mal, mas agora levo a bem.
É que o Rui Gonçalves gostava à brava de mim. Nunca tive dúvidas disso. E não há muita gente de quem se possa dizer isto assim, sem reservas: que gostam à brava de nós.
Durante a minha adolescência, dizia-me coisas espantosas. Por exemplo, que eu devia sentir gratidão por ser uma pessoa normal e saudável, que a normalidade e a saúde eram preciosas, que o melhor que me podia acontecer na vida era ter uma relação como os meus pais tinham, uma relação para toda a vida, com intimidade e amor e sexo e família como ele nunca tivera. Também me dizia: “Promete-me que não te vais casar com um preto” e eu ficava sempre muito envergonhada e indignada com aquele pedido. Não podia prometer tal coisa. Como não? Claro que não. Ele desafiava-me: “Eras capaz de casar com um preto?” Claro que era. Que disparate. O Rui muito desgostoso. A insistir: “Por favor, não te cases com um preto.” E eu com a certeza adolescente de que me ia casar com um preto lindo de morrer, porque o destino é mesmo assim: mete sempre a pata na poça.
Volta e meia, perguntava-me pela “Orora com O grande”. Eu respondia sempre a mesma coisa: que nos tínhamos afastado, que eu não sabia nada dela. E o Rui ficava sempre assim, com aquela alegria triste das pessoas sem infância, a pensar na vida.
Durante uma fase da adolescência interessei-me pela implantação da República. Não sei por que raio, mas queria escrever qualquer coisa sobre essa época. Até já tinha um protagonista: um rapaz que fumava beatas do chão e ganhava uns tostões a trabalhar como ardina.
O Rui entusiasmou-se muito com a ideia. Durante meses trouxe-me fotocópias de livros que ele encontrava nas bibliotecas: imagens de ardinas, páginas sobre a revolução de 5 de outubro, apontamentos sobre o Partido Republicano Português. Infelizmente, nunca escrevi nada sobre a implantação da República, mas lembro-me muitas vezes do rapaz ardina. Era uma boa personagem. Talvez venha a existir um dia. Talvez se venha a chamar Rui.
No meu aniversário, o Rui telefonava-me e dizia-me apenas isto: “Saúde saúde saúde”. Eu dizia obrigada e perguntava-lhe se estava bem. O Rui nunca me respondia. Repetia “Saúde saúde saúde” e eu ria-me. Gozava à farta com aquela frase: “Saúde saúde saúde”. Se ele estivesse em casa, talvez me dissesse que estava a olhar para as fotografias que tinha na parede, que eu estava em várias dessas fotografias e que só me desejava “Saúde saúde saúde”.
Nos últimos anos desfez-se de tudo. Vendeu o apartamento, ofereceu o conteúdo da casa a este e àquele. Depois zangou-se com toda a gente. Depois adoeceu. E depois morreu um pouco mais sozinho do que antes, parece-me.
Neste último ano, enviou-me algumas cartas e recortes de jornais, incluindo artigos sobre os meus livros que ele encontrava aqui e ali. Agrafava uma
folha em branco à capa da publicação e explicava tintim por tintim onde e quando encontrara o artigo. Sublinhava algumas palavras a vermelho. Da casa do Rui herdei uma saladeira de porcelana que era dos pais dele. Uso-a muitas vezes. Tem um bom tamanho para saladas de fruta.
Nunca me vou esquecer do mantra “Saúde saúde saúde”. 
Nunca me vou esquecer que tive uma infância feliz. 
Nunca me vou esquecer do meu amigo Rui, esse homem improvável, louco e racista que andava sempre armado.
Parecia uma personagem de ficção, mas era um homem de verdade.