Coitada da Ana Pessoa. Está para ali assim, vagarosa e inchada. Tão duplamente grávida. Já nem consegue respirar até ao fundo de si própria. Não consegue andar até ao fundo da rua. Mete muito dó.
Até a Ana Pessoa tem pena de si própria. Só lhe apetece escrever um texto a começar assim: “Coitada da Ana Pessoa”. Felizmente tem alguma noção de si e dos outros, por isso não vai escrever esse texto.
Faz hoje 37 anos, mas podiam ser muito mais. Está pesarosa e pesadona. Um feliz aniversário, Ana Pessoa. É o que eu te desejo.
Antes a vida era mais ligeirinha, não era? Liam-se umas páginas de um livro e havia uma certa beleza nas horas. Depois o corpo virava-se para o lado e adormecia.
A Ana Pessoa lembra-se dessa vida e tem saudades de si própria, da pessoa original. Da pessoa sozinha que, a bem dizer, já era bastante. Mas ultimamente, coitada, a Ana Pessoa confunde-se. Já não sabe bem onde começa a sua pele nem onde acaba a sua existência.
É uma pessoa ao cubo. Tem três cabeças, três corações. O ego triplicado, cheio de varizes e estrias, o umbigo virado do avesso.
Coitada da Ana Pessoa.
Nunca sentiu tanto com tanta intensidade. Nunca ocupou tanto espaço. Nunca pesou tantos quilos.
E isso, na verdade, talvez queira dizer que a Ana Pessoa nunca existiu com tanta força, com tanta pujança. Nunca a sua existência foi tão pronunciada. Toda ela é uma abundância que só visto. Uma presença inegável. E portanto, ouçam: não tenham pena dessa tal Ana Pessoa. Anda por aí fértil e generosa a largar óvulos em dose dupla.
É bem feito. Ovulasse menos. Com recato e moderação, que é o que se espera de uma mulher.
Quem diria, Ana Pessoa.
Logo tu, que durante tanto tempo acreditaste que a maternidade não era para ti ou que tu não eras para a maternidade porque o universo te dizia precisamente isso, que tu e a maternidade não eram feitas uma para a outra, e portanto andavas tão ocupada a fazer outras coisas na vida, como, por exemplo, a ser tu própria ou, pelo menos, a tentar ser e estar neste mundo, como toda a gente.
Agora, olha, vais ter a casa cheia de homens, que até te lixas toda.
Um marido e três rapazes.
É obra, Ana Pessoa. Coitadinha da tua existência. Vais passar as passinhas do Algarve, deixa-me que te diga.
É da maneira que começas a falar baixinho e a existir um pouco menos. Só te fica bem, Ana Pessoa. Pode ser que fiques mais pequena, mais frouxa, mais razoável.
E durante essa tua subtração a caminho do desaparecimento, pode ser que algo bom aconteça. Pode ser que te caiam umas respostas em cima da tola quando o teu ego escorregar pelo ralo da banheira. Pode ser que compreendas, por exemplo e por fim, que as mães são culpadas de tudo.
Que não há volta a dar.
E pode até ser que nessa existência minguante passes a escrever alguma coisa de jeito, Ana Pessoa.
Imagina. Isso é que era bom! Uma prosa sem ego. Sem merdas. Sem estrias. Era mesmo muito bom. Tu não achas, Ana Pessoa?
Eu acho.
Doem-me muito as pernas.
Dói-me esta existência triplicada.
Mas cá estamos todos, eu e eles, para dar a volta a isto.
Quero o meu umbigo de volta.
A minha pessoa.
O meu ego original.
Ilustração de Bernardo P. Carvalho para “O Caderno Vermelho da Rapariga Karateca” |