No outro dia choveu, e bem.
Lá vínhamos nós a rastejar pela vida, eu e o meu barrigão. Calçávamos umas sandálias de cortiça que escorregavam na água.
A certa altura atravessámos a passadeira. O meu barrigão à frente e eu atrás.
“Eu sou Eu Sei”, Madalena Matoso |
De repente, a meio da passadeira, entre uma poça de água e outra, para nosso grande espanto e indignação, levámos com uma buzinadela nas trombas. Eu, o meu barrigão e as sandálias de cortiça até andámos de lado.
Dentro do carro buzinador estava um homem branco e gordo, sessenta e tal anos, as duas mãos ao volante.
Parámos ali mesmo, no meio da passadeira. Tirámos o capuz do impermeável, apontámos para a barriga. Para que não restassem dúvidas.
O homem gordo sacudiu os ombros e a cabeça naquele jeito impaciente dos homens brancos, que sabem tudo sobre a condição humana e não estão para choradinhos.
Pelo amor da Santa, a grávida que saia da frente. A grávida e os outros todos também, dizia o homem gordo de si para si, as mãos sapudas ao volante.
Anda tudo com as mulheres ao colo hoje em dia, já repararam? E com os paneleiros e os ciganos e os pretos e os imigrantes e os velhos e sei lá mais o quê. Estou pelos cabelos com essa gentinha.
Ali estava ele, o homem branco todo-poderoso, protegido da chuva e da lentidão pela sua caixa de metal com quatro rodas. Cheio de urgência e virilidade. Tão desiludido com a vida. Tão cansado das minorias e das suas queixinhas menores. Gente feia e zangada. Sempre a apontar o dedo. Parecem umas crianças. “Ó mãe, olha ele!”
O homem gordo dá uma buzinadela geral às pessoas chatas. Saiam todos da frente.
Ali estava ele, o homem branco - gordo por opção e não por fecundação - a olhar com desprezo para os fracos de espírito e de corpo.
É curioso e meio esquisito. Durante a juventude, o homem gordo até era de esquerda. Lutou e acreditou na igualdade e na democracia. Mas entretanto a vida passou-lhe por cima e o homem gordo esqueceu-se desse sonho. Já não pode ouvir falar em coitadinhos. Nem em reivindicações e lamentos.
Que mal fez ao mundo este homem branco, que até paga os impostos e é bom pai de família? Lá porque nunca foi oprimido nem vítima de abusos. Lá porque nunca foi excluído nem discriminado. Lá porque os homens brancos antes dele andaram por aí no bem-bom durante séculos a excluir e a oprimir cada um.
A culpa agora é deste homem barrigudo por acaso? Só por ser homem, branco e gordo? Vão discriminá-lo por causa do seu género, da sua orientação sexual e da cor da sua pele? Tenham paciência. Já ninguém faz isso.
A grávida que se puxe à calma. Já ninguém é misógino, minha senhora, e a minha mãe teve cinco filhos e não fazia queixinhas. Deixem-se lá de protestos e dessa mania das injustiças. Saiam da frente.
E, por favor, parem de dizer que o homem branco é um privilegiado, porque eu cá não tenho privilégios nenhuns. Na verdade devo ser o único não privilegiado. Reparem que não existe um Dia Internacional do Homem Branco nem ONG para defender os meus interesses de homem branco nem ajudas especiais ou quotas para os homens brancos.
Tenham dó do branco barrigudo. A vida não está nada fácil para ele: espera-se tanto do homem branco e tão pouco dos outros todos.
Eu e o meu barrigão temos muita vontade de fazer um manguito prolongado ao homem gordo, mas neste momento não há pilinha que nos valha, porque também não é bem uma piça que queremos mostrar ao senhor. O que gostávamos de gesticular ao homem gordo era precisamente o contrário de uma pichota. Era um gigante par de ovários ou de mamas. Uma vagina obscena para mandar abaixo esta visão do mundo tão masculina e sobranceira e simplória ao mesmo tempo. Infelizmente, esse gesto de fêmea enraivecida nem sequer existe. O poder da pichota continua a ser supremo, até mesmo na comunicação gestual.
Ó homenzinho branco, meu patego a dar com pau. Ainda não percebeste nada. Este mundo foi feito à tua imagem, mas já não é teu. Este mundo agora é de todos. E esta estrada também não te pertence. Esta estrada é de quem andar nela. É dos velhos e dos seus cãezinhos, é das grávidas e dos deficientes e dos outros todos.
Não fiques assim, com esse arzinho amuado e contrariado. Há muita coisa que tu não entendes. Na verdade, a maior parte das experiências humanas estão-te vedadas. Nunca saberás o que é ser um preto no meio dos brancos, nunca saberás o que é ser um imigrante ilegal, nunca saberás o que é ser uma grávida de gémeos a duas semanas do parto. Por isso, puxa-te tu à calma, homenzinho gordo. Um pouco mais de empatia e humildade, por favor.
Não buzines nas passadeiras. Não continues a oprimir os mais fracos. Sobretudo, não venhas com conclusões e generalizações sobre vidas que desconheces. Tu já não mandas nisto tudo.
Devias levar com um par de ovários nos olhos, mas toma lá um abracinho. Sei bem que a sociedade espera isso de mim e de todas as mulherzinhas: empatia e candura; e não agressividade e rebeldia.
Enfim. Eu e o meu barrigão respiramos fundo e avançamos pela vida, ligeiramente desequilibrados por causa das sandálias e da nossa indignação. Estafermo do homem gordo e de todos os que me fizeram razias nas passadeiras e me ultrapassaram nas filas e não me deram lugar no elétrico nem no autocarro. É que não foram assim tão poucos. Foram bastantes. Homens, mulheres, velhos e novos. Mundo cruel, este, que não cuida dos que precisam.
Tenham dó da mulher grávida, pá. A vida não está fácil para ela: vai passar os próximos tempos a lavar pichotas.
Uma buzinadela geral para vocês todos, que ficam desse lado a rir e a fazer o que vos apetece.
Uma buzinadela e um maguito também, sim?