Não compro livros desde o Natal. E ofereci tudo o que comprei.
Por acaso não é bem verdade. Adquiri uma coletânea de contos no Kindle através de um clique, mas esse livro não é bem um livro. É um documento eletrónico sem consistência física, que comprei na amazónica Amazon.
Por acaso não é bem verdade. Adquiri uma coletânea de contos no Kindle através de um clique, mas esse livro não é bem um livro. É um documento eletrónico sem consistência física, que comprei na amazónica Amazon.
Tenho lido pouco. À segunda página adormeço. E logo a seguir acordo estremunhada e releio a mesma página. Só então adormeço de vez, exatamente no mesmo parágrafo.
No outro dia entrei na Candide só porque sim. É uma das livrarias aqui do bairro, onde moram pedaços de sol e pequenas preciosidades. Foi o meu objetivo do dia: ir até à Candide ver as vistas.
Além de não ter comprado nada, bati com o carrinho em várias pilhas de livros. Fui dizendo Desolée nas curvas e contracurvas. Ainda peguei naquele livro noturno da Kitty Crowther. No Natal comprei dois exemplares e não ficou nenhum cá em casa. Quero um exemplar só para mim, mas não tenho pressa.
Quando saí da Candide disse Au revoir, mas devia ter dito Desolée. É uma afronta sair da Candide de mãos a abanar.
Foi o senhor da Candide que me apresentou Annie Ernaux. Foi na Candide que descobri Julie Delporte. O senhor da Candide dá-me marcadores de livros e bons conselhos. Pergunta-me se prefiro a edição de bolso, que é mais barata. Demora-se nos embrulhos. Entusiasma-se: Se gosta desse, então vai gostar deste. Um pouco ao estilo da Amazon, mas nada a ver com a Amazon. Eu sou feliz na Candide por causa do senhor da Candide, que fala um francês muito delicado e me pergunta quantos meses tem a cria.
Eu não vou à Candide comprar livros. Eu vou à Candide respirar, interromper o dia. Interagir, vasculhar. Eu vou à Candide viver.
Moro num bairro onde o comércio tradicional persiste. Há mercearias, padarias, cafés, sapateiros, talhos, queijarias, livrarias. Neste inverno tão duro, em que dou os primeiros passos no mundo contraditório da maternidade - que é uma solidão a dois - são estas lojas que me salvam. As pessoas das lojas, as vitrines onde paro, os diálogos curtos.
A senhora da farmácia ri-se porque me esqueci da carteira. Digo Desolée. Ela responde-me que as mães também precisam de descanso. Durma quando ele dorme. Eu digo: Mas ele não dorme. Ela dá-me conselhos. Faça assim, faça assado. Compro café aqui e pão ali. Vou à senhora das tartes. E depois vou até ao parque ouvir os pássaros. A cria ri-se muito com o barulho dos pássaros. Pio pio, pio pio.
Sento-me num banco de jardim. Respondo às mensagens do WhatsApp, envio fotografias aos avós, vou ao Facebook, escrevo no blogue. Porque o mundo da tecnologia e da comunicação também me salva. Quero ler os textos da Ana Cássio Rebelo sobre a Índia e os da Maria João Lopes sobre a Maria Rita. Ouço a Biblioteca de Bolso através do iTunes. Eu quero viver no mundo real do meu bairro e também neste outro mundo das apps e das hiperligações. Não são mundos inconciliáveis. Mas são antagónicos.
O mundo real é humano. É carente. Precisa de mimos. Precisa de tempo. Precisa de mim.
A senhora da farmácia ri-se porque me esqueci da carteira. Digo Desolée. Ela responde-me que as mães também precisam de descanso. Durma quando ele dorme. Eu digo: Mas ele não dorme. Ela dá-me conselhos. Faça assim, faça assado. Compro café aqui e pão ali. Vou à senhora das tartes. E depois vou até ao parque ouvir os pássaros. A cria ri-se muito com o barulho dos pássaros. Pio pio, pio pio.
Sento-me num banco de jardim. Respondo às mensagens do WhatsApp, envio fotografias aos avós, vou ao Facebook, escrevo no blogue. Porque o mundo da tecnologia e da comunicação também me salva. Quero ler os textos da Ana Cássio Rebelo sobre a Índia e os da Maria João Lopes sobre a Maria Rita. Ouço a Biblioteca de Bolso através do iTunes. Eu quero viver no mundo real do meu bairro e também neste outro mundo das apps e das hiperligações. Não são mundos inconciliáveis. Mas são antagónicos.
O mundo real é humano. É carente. Precisa de mimos. Precisa de tempo. Precisa de mim.
Cada vez que uma livraria fecha, sinto que a culpa é minha. E é mesmo.
Se a Candide fechar, atiro-me a um poço. Ou a Ptyx. Ou a livraria da Flagey das bandas desenhadas. A propósito, ainda não fui à livraria portuguesa que abriu há umas semanas.
O que será deste mundo sem livrarias nem mercearias? Ruas sem lojas, sem caras, sem diálogos, sem filas.
O que será deste mundo sem livrarias nem mercearias? Ruas sem lojas, sem caras, sem diálogos, sem filas.
Andamos cada vez mais sozinhos com os nossos botões eletrónicos.
Olho para a minha cria e apetece-me pedir-lhe desculpa. Desolée, pequeno ser humano. O mundo está cada vez mais próximo. Mas as pessoas estão cada vez mais distantes.
E de quem é a culpa?
É minha, claro.
E de quem é a culpa?
É minha, claro.